Deste mundo e do outro

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DESTE MUNDO E DO OUTRO Toda a gente (ou quase) conhece os magníficos retratos que o fotógrafo Edward S. Curtis nos deixou de um bom número de índios norte-americanos. Apesar da sua perturbante frontalidade (decorrente de uma certa concepção do retrato como género) essas fotos (reproduzidas em milhares de T-shirts e postais) encerram não só os encantos de um mundo desaparecido como o mistério a ele concêntrico, à imagem do que acontece com as oblíquas mulheres de Vermeer. IN THE LAND OF THE WAR CANOES (Na terra das canoas de guerra), realizado em 1914, é obra consistente (e única) desse conhecido artista, também da imagem em movimento. A sua execução implicou três anos de permanência no domínio ocupado pelas tribos cuja vida o filme documenta nas ilhas de Vancouver. A trama dramática do filme urde-se à volta dos amores (violentamente) contrariados de Motana e Naida e, embora o fascínio de Curtis pelas artes e costumes dos KWAKIUTL seja óbvio, a ficção não declina o cliché do bom selvagem. Aliás, é curioso sublinhar que o filme, restaurado em 1972, mudou de título graças à pressão de grupos particularmente sensíveis à "incorrecção política" do primeiro — IN THE LAND OF THE HEAD HUNTERS (Na terra dos caçadores de cabeça). A mobilidade (relativa mas precisa) da câmara de Curtis e a extraordinária modernidade das composições (ângulos, enquadramentos, escolha de perspectivas e de primeiros planos) e, sobretudo, uma surpreendente adequação da linguagem fílmica ao desejo de documentar gestos (e fragmentos da gesta) de um povo desconhecido transformam o visionamento desta obra na feliz descoberta de um genial pioneiro do cinema etnográfico, tal como o Jean Rouch o praticará e teorizará. A necessidade de registar o rasto de um mundo em vias de extinção condiciona e orienta o argumento e a encenação, tanto mais que Curtis reconstitui alguns ritos e práticas já caídos em desuso na época da rodagem. A valorização dos aspectos etnográficos — planos descritivos de danças, torneios, pesca, navegação, totens, máscaras, fatos, pintura de canoas, etc. (que levaram talvez Jim Jarmusch a "voltar ao lugar do crime" no seu DEAD MAN) — em detrimento da qualidade e da clareza do "découpage ficcional", lembrou-nos, por contraste, a perfeita harmonia que a conjugação desses dois tipos de elementos atingirá, pela mão da dupla Flaherty/Murnau, em TABU. No fundo, as personagens principais do filme de Curtis são porventura essas figuras de sonho e pesadelo — o Pássaro do raio, o Urso colossal ou o Bailarino do fogo — cuja aparição tanto pode interagir com o nosso saber como com o nosso sentir. E é seguramente pelo diálogo dos imaginários que os povos melhor se ouvirão e entenderão. Nós todos cinéfilos e cineastas delirantes gostaríamos de pensar que se as guerras dizimadoras dos índios aconteceram foi também porque o cinema não nasceu a tempo de as evitar. Não largaremos mão desta utopia. Regina Guimarães


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