Dever de memória

Page 1

DEVER DE MEMÓRIA Desde então houve Shoah — que nos fez compreender que aquela imagem dos carris paralelos que só se cruzam no infinito é um engano, que todos os caminhos-de-ferro levam a algum lado, que o infinito pára no cais de Auschwitz; que também nos deu a entender que os carrascos não se arrependeram, que estão dispostos a recomeçar, certos da colaboração passiva das testemunhas. E houve Schindler's List (Lista de Schindler) — que nos colocou perante o facto de que a vida se conta em unidades. E houve La Vita é Bela (A Vida é Bela) — onde não se compreende que aquilo que era irremediável e sistematicamente atacado nos campos era precisamente a dignidade humana. Mas antes houvera Nuit et Brouillard (Noite e Nevoeiro), que já não passa nos ecrãs, e que continua a ser insuportável porque nos fala acima de tudo da nossa amnésia. Noite e Nevoeiro, um filme sobre o rasto, a mancha impossível de apagar — o tecto de betão das câmaras de gás foi profundamente arranhado pelos asfixiados —, a mancha que no entanto se vai apagando. O rasto, o horror, é a preto e branco. Foi tapado pela erva, pela cor — o oposto exacto da mancha vermelha da menina do gueto de Varsóvia, única mancha de cor da Lista de Schindler. Os barracões continuam de pé, ao abandono, desertos, nem sequer parecem assombrados pelos nove milhões de vítimas que nos esforçamos por esquecer. Um filme sobre a necessidade da memória. Porque desde então houve os boat people, o Líbano, a Bósnia, o Ruanda, a Tchetchénia... O campo é descrito do ponto de vista da organização do território, à imagem de um bairro — como Barthes reconstitui a organização social de "Sade, Fourier, Loyola". Bairro construído não para lá se viver mas para lá se morrer, ora lentamente, de fome ou de doença, ora rapidamente — na câmara de gás. Os homens — a palavra "judeu" nunca é pronunciada — são reduzidos a um número — tatuado — e a um código que determina uma hierarquia — do "direito comum" e do "político" (isto é, os habitantes convencionais dos locais de detenção, sendo, aqui, os primeiros promovidos a guardas) a este misterioso "Nacht und Nebel" que dá o título ao filme e designava os antecipadamente riscados da li la da vida. O texto de Jean Cayrol é forçosamente um texto de sobrevivente, eu diria antes o texto de um homem que julgava possuir o direito à vida e que subitamente o viu ser-lhe negado. Fazendo pessoalmente parte daqueles cuja vinda ao mundo se deve, em parte, às falhas da máquina de exterminação — fuga, esconderijo, mudança de nome —, extasio-me sempre perante a certeza quanto a esse direito: sem falar dos pogroms e dos campos, as imagens das crianças vietnamitas queimadas com napalm, ou dos biafrenses mais magros do que os sobreviventes dos campos, bem cedo me fizeram compreender que esse direito, já que obviamente não é universal, não existe. Alguns, Cayrol, Resnais, abriram os olhos, procuraram os rastos e afirmam, obrigando-nos a olhar para o horror, um dever de memória. Saguenail


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.