Dialogar com o leitor Serge Abramovici*
I. O corpus Existem duas versões destes contos: a primeira foi publicada em 1944 e a segunda vinte anos mais tarde. Além disso, encontra-se na Casa da Achada - Centro Mário Dionísio um exemplar da primeira edição no qual o autor anotou as correcções manuscritas que pretendia introduzir com vista à reedição do texto. Há mesmo dois conjuntos de correcções, umas a preto, outras a vermelho, acrescidas de alguns raros retoques a azul. Pelo que é possível comparar grosso modo quatro versões de cada conto da primeira edição – a segunda intitula-se: O dia cinzento e outros contos, anunciando já no título o adicionamento de alguns contos inéditos. Na sua «Evocação em forma de prefácio», Mário Dionísio não esconde os retoques introduzidos, todavia não lhes atribui outro motivo que não a preocupação de «perfeccionismo» e só se estende sobre o primeiro conto, «Nevoeiro na cidade», para explicar que razões evidentes de censura o tinham levado, na primeira edição, a escolher Paris sob a ocupação alemã como cenário para justificar a actividade clandestina que constitui o esqueleto do enredo, e que, tendo essa precaução deixado de se justificar, a narrativa passou a situar-se no seu verdadeiro contexto, lisboeta, e as personagens retomaram os seus nomes portugueses originais. Ora, quer-nos parecer que o autor pretendeu assim camuflar o profundo trabalho de reescrita a que se dispôs em prol dessa reedição. Por um lado, a deslocação geográfica em relação ao primeiro conto tem tãosomente uma incidência onomástica – os cenários, interiores como exteriores, são descritos da mesma maneira, com os mesmos adjectivos, situando o conto num meio urbano mais indefinido do que na maioria dos contos –, por outro, as correcções de natureza lexical e sintáxica são em número tão elevado que não é possível aceitar como satisfatória a explicação que decorre da preocupação de «perfeccionismo». Na verdade, embora a construção global das narrativas permaneça inalterada, em certos contos mais de metade das frases foram retocadas, ou até totalmente reescritas, bastando pois um simples levantamento do tipo de correcções introduzidas para traçar os vectores que orientam, para lá dessas emendas, a «nova» concepção da escrita narrativa de Mário
*Doutorado em Lettres Modernes pela Université de Provence, escritor e cineasta.
Dionísio nos anos sessenta do século XX. Logo à partida, constata-se que o número de supressões é sensivelmente equivalente ao número de acrescentos ou de transformações. Cada um desses tipos de correcções nos esclarece acerca da preocupação do autor e nos permite compreender o valor ideológico do seu «perfeccionismo». Mário Dionísio alude também à influência dos autores americanos de short stories. Curiosamente, omite referir-se a certas polémicas nas quais participou, a propósito do «neo-realismo» português e do «novo romance» francês, quando na realidade elas nos elucidam sobre o sentido das modificações estilísticas introduzidas no seu texto.
II. A análise O acesso a quatro estados do texto permitiria porventura elaborar, com base nas modificações introduzidas de uma versão para outra, uma análise da evolução estilística do seu autor e detectar os critérios de «perfeição» ou pelo menos de melhoramento passível de justificar as suas escolhas de reescrita. Esse não é contudo o nosso propósito. As correcções manuscritas serão aqui consideradas tão-somente como indícios de um trabalho inconsciente que conduz a uma mudança profunda de atitude tanto no que diz respeito ao funcionamento da narrativa, ou até do papel da literatura, como no que concerne a tarefa atribuída ao leitor, numa relação com o texto e com a cultura que exclui o simples «divertimento». O método adoptado é, num primeiro tempo, estritamente comparativo, e destinado a medir a diferença entre a primeira versão e a outra, definitiva – ficou inalterada quando uma terceira edição em formato de livro de bolso foi lançada em 1978 –, de 1967, bem como a apurar quais as linhas principais que orientaram os retoques, sem nos determos nas propostas e hesitações que as correcções manuscritas revelam. Trata-se de, mui escolarmente, agrupar e quantificar os tipos de modificações introduzidas. Debruçar-nos-emos, antes de mais, sobre o primeiro conto, «Nevoeiro na cidade», pois é sem dúvida aquele que recebeu mais retoques e sofreu modificações mais profundas – em especial no respectivo final no qual, depois de simplificada a descrição do café, com os seus bufos sentados no lugar habitual, o autor acaba por suprimi-la pura e simplesmente, deixando um desfecho aberto e trágico (chegada ao café e personificação do destino pelo relógio) que o leitor haverá de completar – e os outros só serão examinados na medida em que corroborarem ou completarem os traços descritos. Num segundo tempo, a partir das conclusões tiradas, esforçar-nos-emos por mostrar de que modo, através da utilização particular de duas figuras das teorias linguísticas
contemporâneas – a modalização e o discurso indirecto livre –, Mário Dionísio define uma nova posição para o autor e uma nova tarefa para o leitor, que correspondem a uma nova função da narrativa e uma nova responsabilidade da escrita. Por fim, enquadrando o trabalho de Mário Dionísio no seio de uma evolução biográfica e de uma dinâmica histórica e política, tanto da sociedade portuguesa como dos movimentos literários e estéticos pelos quais o autor se interessou, procuraremos situar essa escrita no contexto do campo literário ocidental do século XX.
III. Cortes Da primeira versão à versão final, Mário Dionísio fez inúmeros cortes. As supressões vão todas no sentido da concisão mas são de duas ordens distintas. Em primeiro lugar, trata-se de mudar de registo. A versão de 1944 está escrita num estilo esmerado, algo escolar, porventura mesmo académico, assumindo o autor o papel tradicional do taumaturgo omnisciente, tal como foi desenvolvido pela escrita romanesca desde os romances de cavalaria até aos frescos do realismo literário do século XIX. Mário Dionísio começa por suprimir os elementos julgados supérfluos: detalhes descritivos, proposições adjectivais e quase todos os advérbios de modo complementos de frase. Em partícular, os que possuem quatro ou mais sílabas. Paralelamente, substitui as palavras precisas de raiz erudita por termos mais genéricos e familiares, e sobretudo mais curtos ao nível do número de sílabas. Citarei como único exemplo o primeiro parágrafo do conto: Os dedos grossos passaram automaticamente no trinco da fechadura, no orifício da chave, na lingueta. Depois a mão empurrou a porta devagar e verificou se ficava fechada.
Os dedos grossos passaram no trinco, no buraco da chave, na lingueta. Só depois empurraram a porta devagar. O fecho estalou.
Supressão do advérbio «automaticamente» – seis sílabas –, manutenção do mesmo sujeito «dedos» sem atribuição de carácter humano ao respectivo membro – «a mão (...) verificou» – e mudança final de sujeito, inanimado, optando-se por uma seca objectividade aparente e deixando ao leitor o juízo ou o sentimento pois que não há sujeito humano que deles seja portador. Além disso, à palavra mais erudita «orifício», o autor preferiu o genérico «buraco».
A concisão surge aliada à fluidez e à familiaridade. De algum modo, Mário Dionísio recusa-se a restringir a sua audiência a leitores longamente escolarizados. Por outro lado, enquanto na primeira versão o autor não hesitava em lembrar certos pormenores, nem que fosse repetindo segmentos inteiros de frases, na versão final, o escritor reclama uma atenção e um esforço de memorização por parte do leitor, dirigindo-se pois a um sujeito autónomo, capaz de compreender – suprime muitas frases explicativas, contentando-se com um relato seco dos factos – e de julgar. Essa exigência é o contrário do paternalismo infantilizante de que a primeira versão, na linhagem directa dos romances do século dezanove, não estava isenta. O seguinte parágrafo do texto basta para ilustrar esta economia: Fazia sempre assim desde o dia em que a porta aparecera aberta sem se saber como. Entrara, estivera às voltas no quarto um grande bocado e de repente ouvira um ruído muito nítido no corredor. Voltara a cabeça rapidamente e vira a porta encostada. Do lado de fora, sem arrombamento, ninguém poderia abri-la. Era estranho. Percorrera o corredor com um fósforo, palpando a parede dum lado e doutro, metro a metro, sem encontrar ninguém. Era muito estranho. Desde então, os dedos passavam sempre automaticamente, na fechadura, antes de a empurrarem, e depois disto puxavam-na uma ou duas vezes a ver se a porta ficava realmente fechada.
Fazia assim desde o dia em que a porta aparecera aberta sem saber como. Entrara, estivera às voltas no quarto a remexer gavetas e papéis um bom bocado e dera com ela encostada. Que era aquilo? Percorrera o corredor de fósforo aceso, tacteando a parede dum lado e doutro. Nada. Ninguém. Deixara-a aberta com certeza. Mas, desde então, automaticamente, passava sempre os dedos na fechadura, empurrava a porta com cuidado, verificava.
Supressão do advérbio «sempre». Eliminação da audição do barulho revelador – elipse a colmatar pelo leitor – mas precisão – acrescento da acção que se desenrola no quarto. Eliminação do movimento de cabeça e sobretudo das especulações quanto à abertura da porta. O «Era» é incompatível com o discurso indirecto livre sobre o qual adiante nos debruçaremos, sendo, pelo contrário característico da posição do narrador omnisciente, simultaneamente solidário da personagem – sentimento de estranheza – mas exterior a ele – narração impessoal no passado. Por fim, supressão da descrição da gestualidade de verificação e restituição da acção ao sujeito humano e não à sua sinédoque digital. Por muito realistas que sejam os detalhes suprimidos, o autor doravante julga que eles constituem uma distracção que atrasa o desenvolvimento do tema principal, tema
central aliás obscuro e mais nefasto do que os seus motivos: o medo. Mas, desde os primeiros parágrafos, compreende-se que os retoques efectuados não decorrem apenas do estilo ou do «perfeccionismo», antes traduzem uma mudança estética e política mais profunda.
IV. Modalizações e discurso indirecto livre Talvez seja útil recordar a definição dessas noções desenvolvidas pela linguística: um modalizador traduz a apreciação que um locutor faz do seu próprio enunciado: os advérbios ou locuções adverbiais como sejam decerto, talvez, certamente, etc. são modalizadores. O condicional também pode ser considerado um modalizador, na medida em que marca a incerteza do enunciador relativamente ao seu enunciado. A modalização manifesta a subjectividade. Quanto ao discurso indirecto livre, tecnicamente é uma transcrição sem vocábulos introdutores – verbos locutórios – das palavras pronunciadas, escritas ou pensadas, e sem que o locutor seja identificado de maneira explícita. A voz da personagem e a do narrador «entretecem-se» de tal modo que nunca se sabe ao certo se quem está a falar é o narrador ou a personagem. Flaubert, por exemplo, empregou abundantemente este modo de enunciação. Uma célebre polémica foi desencadeada nos anos sessenta por Pier Paolo Pasolini 1 que defendia que a narrativa cinematográfica devia oscilar constantemente entre um ponto de vista impessoal e distante e uma solidariedade para com as personagens passível de justificar a própria distorção dos acontecimentos encenados, sem nunca cair no cliché da «câmara subjectiva», postura que ele assimilava ao discurso indirecto livre, cuja função, a seu ver, é levar o espectador a compreender o ponto de vista da personagem salvaguardando contudo a distância necessária ao julgamento. O cineasta opunha a sua concepção à utilização desse recurso estilístico por Alberto Moravia e acusava este último de fazer batota ao manter o mesmo registo de língua – e a ideologia correlativa – na narração impessoal e no discurso indirecto livre, pelo que as personagens de operários nos seus romances falavam como burgueses e todas as figuras moravianas não passavam de uma réplica do autor, da língua do autor e do universo do autor. Pier Paolo Pasolini, Empirismo herege, «Intervenção sobre o Discurso Indirecto Livre», Lisboa, Assírio e Alvim, 1982, Edição 152, p. 63 a 80. 1
Ora entre a primeira e a segunda edição de «O dia cinzento», detecta-se efectivamente o apagamento dos verbos introdutores do discurso subjectivo e o recurso quase sistemático ao discurso indirecto livre. Modalizações e discurso indirecto livre concorrem para injectar subjectividades diversas na narrativa. A importância quantitativa dessas alterações e a originalidade da sua utilização por Mário Dionísio – que não recorre a elas por solidariedade para com as suas personagens, nem por ironia na visão que delas apresenta (são esses os valores mais correntes do emprego das já citadas figuras de estilo) mas nunca cai na armadilha egocêntrica denunciada por Pasolini – justifica que multipliquemos os exemplos e aprofundemos a sua análise. Com efeito, graças a essa figura, Mário Dionísio vai alterar o papel atribuído ao leitor, e por conseguinte o contrato de leitura no seu fundamento. Significativamente, esse emprego particular justifica porventura acrescentos quantitativamente superiores às supressões na reescrita de certas passagens. Detenhamo-nos em alguns exemplos simples para apreciarmos a subtileza do mecanismo: No conto «Assobiando à vontade», a dado momento, quando protagonista se senta ao lado da passageira na parte da frente do eléctrico, Mário Dionísio acrescenta uma pequena frase: «Ao que uma pessoa está sujeita!». De quem é esta fala ou este pensamento? A quem se dirige? Na verdade apenas se dirige ao leitor, embora emane da personagem da passageira. Nem solidária nem irónica, este reparo faz com que o leitor seja forçado a tomar posição em relação à recriminação da passageira, a comprometerse, a tomar partido, a responder-lhe mentalmente. No final do conto «A lata de conserva», a personagem feminina, uma mulher à janela, arrepende-se de ter sentido compaixão por um garoto ladrão. Na segunda versão, Mário Dionísio acrescenta a seguinte frase: «Que iria acontecer-lhe por causa de um garoto qualquer?» O «lhe», pronome da terceira pessoa do singular, é aqui ambíguo, e aparentemente designa a jovem mulher – ponto de vista do narrador que se dirige ao leitor e lhe coloca uma questão retórica – mas, de facto, remete para a criança que ela traz na barriga – discurso indirecto livre que formula a deslocação dos pensamentos da personagem de uma criança para outra e traduz uma atitude de medo egoísta. A gravidez da mulher já fora rapidamente mencionada e o leitor, apanhado em flagrante delito de falta de atenção, tem de reagir Atentemos num derradeiro exemplo colhido no primeiro conto, «Nevoeiro na cidade»:
Não é verdade que era um embolozito, um simples parafuso duma máquina enorme? Um simples parafuso e nada mais. Parafusos e não meninas sentimentais, pensou friamente. Parafusos que não se deixam roer pela ferrugem. Parafusos apenas. Pôs-se em pé e começou a andar agitadamente pela casa. O quarto era muito pequeno. Em três passadas engolia-o. Por isso andava para a frente e para trás, para a frente e para trás.
Um parafuso. Aí está o que tu és, o que tens de ser, o que deves querer ser. A Luísa rira da comparação infeliz. Um parafuso não pensa, não resolve nada. Pois não. Mas que seria duma máquina a que faltassem parafusos? O seu mal era precisamente pensar de mais, não ficar no seu lugar, querer ser mais que um parafuso. Parafusos e não meninas sentimentais, pensou com profundo desgosto de si mesmo. Parafusos. Apenas. E pôs-se a andar dum lado para o outro, entre a porta e a janela, cinco passos para a frente, cinco passos para trás. Um bicho na jaula, às voltas.
O autor acrescentou uma série de frases curtas que correspondem aos comentários trocistas proferidos por Luísa. Mas quem neste diálogo rememorado terá anuído: «Pois não»? Opera-se um curioso choque temporal e enceta-se um diálogo entre o presente e a ausente, na continuidade de uma narrativa em que o desfasamento temporal não se encontra marcado por uma mudança de tempo verbal. Assim, a segunda pessoa do singular, no início do parágrafo, só pode remeter para a personagem que lança contra si mesmo censuras eivadas de desprezo. Quando Luísa intervém, emprega a terceira pessoa do singular. Mas é na situação presente – narrada no passado – que ele lhe responde. Antes de o narrador retomar a palavra, falando de si na terceira pessoa e propondo ao leitor a imagem do animal enjaulado. Então, contrariamente à primeira versão, a atribuição da síntese «Parafusos. Apenas.» é impossível de determinar. A fragmentação desta frase nominal em dois segmentos na segunda versão vem prolongar o jogo dialógico instaurado entre o autor e as suas personagens, entre os presentes e os ausentes. Mais uma vez, esta conclusão é proposta ao leitor, é ele que é instado a dar a sua aprovação ou a sua condenação. À medida que recorria ao discurso indirecto livre, Mário Dionísio suprimiu os comentários explicativos e sobretudo as notações psicológicas. O autor já não tem de explicar os comportamentos, deixa as personagens falar ou pensar por elas mesmas. Na maior parte dos casos está em desacordo com elas mas não exprime a sua posição, nem pela refutação, nem pela ironia. Pois é com o leitor que o diálogo foi encetado, ele é que tem de se declarar de acordo ou em desacordo. Porque aos olhos do autor escrita e leitura constituem apenas o preâmbulo de um entendimento com vista a uma acção futura. De 1944 a 1967, de uma primeira para uma
segunda versão destes contos, Mário Dionísio manteve-se fiel aos seus ideais e posições, mas a sua situação mudou e as suas escolhas estéticas evoluíram.
V. Engajamento político e estético Em 1944, Mário Dionísio já é pintor, escritor e poeta, no entanto intervém sobretudo como polemista no quadro dos grandes debates ideológicos e estéticos. Membro do partido comunista clandestino, embora subscreva a ideia de que, no campo que lhe é próprio, toda a criação artística deve participar no combate e no movimento geral de libertação da maior parte da humanidade, explorada em proveito de alguns privilegiados, ainda assim recusa um dogmatismo estético que pretende impor um modelo único, uma única convenção, tanto na literatura como na pintura. Posição difícil pois, ao mesmo tempo que se alia ao movimento neo-realista, justificado teoricamente na medida em que oferece um «direito à imagem», pictórica ou literária, ao «povo» excluído das esferas do poder ou do simples conforto do qual a arte e a literatura são o reflexo, Mário Dionísio defende uma abertura estética a toda a experimentação que permite alargar o campo do representável e do exprimível. Claramente comprometido ao nível político, entra em polémica tanto com os artistas e os autores que defendem um certo isolamento do campo artístico, longe das contingências sociais e conjunturais, como com os camaradas que pretendem regulamentar a representação segundo critérios estéticos estagnados (é curioso constatar que contradições da mesma ordem agitaram os membros do movimento surrealista francês durante o curto período da sua adesão ao partido comunista, com respostas individuais divergentes que rapidamente levaram à ruptura). Mário Dionísio é um grão na engrenagem, um não-alinhado, e, enquanto tal, será objectos de rejeição mas igualmente de apoio (cf. a censura e a publicação da «ficha 14», precisamente no ano da publicação de «O dia cinzento»). Embora já na primeira edição o objectivo do livro fosse levar o leitor a uma tomada de consciência das relações sociais, conflituosas apesar de caladas, dominadas por toda a espécie de medos, do mais legítimo ao mais irracional, mas sempre mesquinhos, o autor, naquela época, apresenta os seus contos como outras tantas parábolas, outras tantas descrições exemplares, introduzindo no enredo notações psicológicas, explicações e lembretes, guiando o leitor pela mão. A intenção, generosa e sincera, não é destituída de um certo paternalismo.
Durante os vinte anos que separam as duas edições, a situação de Mário Dionísio vai conhecer profundas convulsões na sua vida: viagem a Paris onde encontra pintores e escritores cujo engajamento político não impede a experimentação artística e a procura de uma estética inovadora; começo da redacção da sua obra maior, «A paleta e o mundo», à qual consagrará quase dez anos da sua vida, pelo que interromperá, aos poucos, a sua actividade de pintor – que só retomará depois de ter acabado a citada publicação, enveredando então definitivamente por uma estética abstraccionista e fazendo da pintura, a partir de então, a sua actividade principal; distanciamento e depois exclusão do partido comunista – essa ruptura será sem dúvida uma das mais dolorosas da vida de Mário Dionísio, pois, da noite para o dia, não obstante a sua fidelidade às convicções que sempre defendeu (e não foram, como no caso de muitos outros camaradas, acontecimentos exteriores envolvendo a URSS, como por exemplo a invasão da Hungria, que determinaram o seu afastamento), os companheiros de estrada viram-lhe as costas, ou chegam mesmo a denegri-lo. Todavia Mário Dionísio nunca deixou de defender a compatibilidade, ou mesmo a unidade profunda, de estéticas aparentemente divergentes. Os adjectivos que emprega na sua conferência «Conflito e Unidade da Arte Contemporânea» para qualificar a cisão do campo artístico em posições opostas, «incompletas, artificiais, insustentáveis, caricaturais, estéreis e perniciosas» reflectem o drama interior vivido pelo autor. Neste contexto, a reedição de «O dia cinzento» reveste vários valores conjunturais: por um lado, Mário Dionísio afirma a continuidade do seu engajamento e a actualidade das suas preocupações literárias e ideológicas para além do quadro partidário, não havendo da sua parte renegação; por outro, os contos foram corrigidos, sofreram correcções essencialmente estilísticas mas que põem em causa, profundamente, o papel da literatura e da prática da leitura. Há mudança de atitude, de concepção do trabalho do escritor, em sintonia com a evolução das suas posições nos seus outros campos de intervenção.
VI. Influências literárias Na sua «Evocação em forma de prefácio», Mário Dionísio refere a descoberta dos autores americanos como influência estilística e parentesco até então ignorado, em particular Hemingway e Steinbeck – ao que parece não terá lido Hammett – cuja concisão incisiva ele apreciava. No entanto, verificámos que a sobriedade que a segunda
versão apresenta em relação à primeira resulta antes de tudo da eliminação de certas notações, explicativas, psicológicas, postas em causa provavelmente devido ao contacto com os autores do «nouveau roman» francês, não tanto pelos textos em si mas pelos debates e polémicas que eles suscitaram. Com efeito, Mário Dionísio em nenhum momento pratica a repetição, a descrição maníaca, a supressão das personagens humanas presentes unicamente pelos rastos deixados, etc., que constituem, de algum modo, a assinatura formal desse movimento. Mas de Sarraute talvez retenha a consciência dos «tropismos» ou pelo menos dos movimentos invisíveis da psique humana, que podem desembocar numa inversão semântica das palavras pronunciadas, com a própria banalidade das frases a dissimular o drama profundo e os sentimentos exacerbados e impossíveis de exprimir. De Robbe-Grillet talvez conserve a consciência de que a aparente objectividade descritiva camufla uma curiosidade frustrada que pode alterar, por projecção ou formulação de hipóteses delirantes, a percepção do visível, acabando o insignificante por se revelar o equivalente do patético. De Butor recorda certamente a preocupação de definir sintaxicamente o lugar e o papel do leitor, mesmo que nunca se dirija directamente a ele nem procure fazê-lo vestir a consciência da personagem através do emprego exclusivo da segunda pessoa do singular como em «La modification». Sobretudo a consciência essencialmente escritural dos autores do «nouveau roman» ter-lhe-á permitido avaliar melhor o que, do neo-realismo no qual se enquadram indiscutivelmente os contos aquando da primeira publicação, continuava a reivindicar – a intenção emancipadora, a generosidade e o genuíno interesse (que não apenas literário) pelos «pobres diabos», a precisão e a atenção ao detalhe revelador – e aquilo que abandonava – a obediência ideológica, a psicologia simplista, o chavões populistas, etc. A frequentação desses autores, com os quais se liga sem perder a lucidez, rejeitando tanto a sua arrogância como a sua recusa do engajamento político num momento em que a França está no centro de conflitos coloniais que nada têm de literário, terá seguramente favorecido a sua reflexão formal e as suas escolhas estéticas. É também provável que a prática do ensino e a reflexão pedagógica tenham influído sobre a sua evolução: da primeira para a segunda edição, passa de uma escrita que poderíamos qualificar de «directiva», no sentido em que se fala de pedagogias directivas, para uma escrita mais «interpeladora» sob a fachada de uma economia e de uma neutralidade formais, em que as conclusões já não têm de ser formuladas pelo autor mas pelo leitor. Desse ponto de vista, não deixaremos de arriscar uma derradeira influência decisiva, embora Mário Dionísio nunca mencione essa figura a propósito da
sua escrita. Os textos teóricos de Brecht, embora traduzidos relativamente tarde para português tocaram, não obstante a censura e o isolamento do país, os intelectuais portugueses desde 1948, através da sua tradução em língua francesa. E foram discutidos na maior parte dos círculos. A «distanciação», que não significa distância mas sim confronto com recuo, é talvez um dos conceitos que permite melhor dar conta da exigência de Mário Dionísio para como os seus leitores. Transformando-os em testemunhas das acções das personagens, pela aparente objectividade das descrições, e dos seus pensamentos, através do discurso indirecto livre, o autor instiga-os a tomar partido, a partilhar ou rejeitar a mesquinhez que engendra o medo inominável que comanda os actores envolvidos. Muito precisamente como Brecht esperava que o espectador reagisse às contradições expostas de Shen Té, Puntila ou Groucha. A promoção do leitor, que se vê investido não apenas da faculdade mas do direito de julgar, é paralela a uma ampliação da responsabilidade do autor e implica uma redefinição da função e do funcionamento da literatura. Entre as duas edições de «O dia cinzento», entre intervenções e expulsões, fidelidades e separações, lutas e obstinação, Mário Dionísio elaborou os meios formais necessários à realização, na prática, desse projecto.