Dialogar com o leitor

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Dialogar com o leitor Serge Abramovici*

I. O corpus Existem duas versões destes contos: a primeira foi publicada em 1944 e a segunda vinte anos mais tarde. Além disso, encontra-se na Casa da Achada - Centro Mário Dionísio um exemplar da primeira edição no qual o autor anotou as correcções manuscritas que pretendia introduzir com vista à reedição do texto. Há mesmo dois conjuntos de correcções, umas a preto, outras a vermelho, acrescidas de alguns raros retoques a azul. Pelo que é possível comparar grosso modo quatro versões de cada conto da primeira edição – a segunda intitula-se: O dia cinzento e outros contos, anunciando já no título o adicionamento de alguns contos inéditos. Na sua «Evocação em forma de prefácio», Mário Dionísio não esconde os retoques introduzidos, todavia não lhes atribui outro motivo que não a preocupação de «perfeccionismo» e só se estende sobre o primeiro conto, «Nevoeiro na cidade», para explicar que razões evidentes de censura o tinham levado, na primeira edição, a escolher Paris sob a ocupação alemã como cenário para justificar a actividade clandestina que constitui o esqueleto do enredo, e que, tendo essa precaução deixado de se justificar, a narrativa passou a situar-se no seu verdadeiro contexto, lisboeta, e as personagens retomaram os seus nomes portugueses originais. Ora, quer-nos parecer que o autor pretendeu assim camuflar o profundo trabalho de reescrita a que se dispôs em prol dessa reedição. Por um lado, a deslocação geográfica em relação ao primeiro conto tem tãosomente uma incidência onomástica – os cenários, interiores como exteriores, são descritos da mesma maneira, com os mesmos adjectivos, situando o conto num meio urbano mais indefinido do que na maioria dos contos –, por outro, as correcções de natureza lexical e sintáxica são em número tão elevado que não é possível aceitar como satisfatória a explicação que decorre da preocupação de «perfeccionismo». Na verdade, embora a construção global das narrativas permaneça inalterada, em certos contos mais de metade das frases foram retocadas, ou até totalmente reescritas, bastando pois um simples levantamento do tipo de correcções introduzidas para traçar os vectores que orientam, para lá dessas emendas, a «nova» concepção da escrita narrativa de Mário

*Doutorado em Lettres Modernes pela Université de Provence, escritor e cineasta.


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