Diogo dória entrevista

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DIOGO DÓRIA ENTREVISTA Regina Guimarães — Já trabalhaste como actor em vários filmes do Manoel de Oliveira. Gostava que nos falasses da forma como o Manoel de Oliveira apresenta os projectos aos actores. Diogo Dória — Posso dizer que, em relação ao NON, tudo começou com a leitura do texto. Aliás, fizemos mais do que uma. Fizemos duas ou três leituras do texto à mesa. Ele ouviu e corrigiu logo os pormenores de tom e pontos que ele achava menos nítidos. Nesse aspecto, o Manoel de Oliveira é extremamente directo e primário. É capaz de dizer ao actor: «Não se está a ouvir bem. Pronuncie melhor». Às vezes até exageradamente, para uma outra coisa, nessas três leituras que fizemos. Depois conversa, ou à hora das refeições ou quando tem alguma ideia que o persegue em relação à personagem. Fala directamente a cada um de nós. Mas digamos que não é propriamente por uma grande clareza, nem por uma direcção detalhada que a intenção passa. É mais «dar» a personagem. Sobre a FRANCISCA, por exemplo, o Jorge Silva Melo escreveu: «do corpo não quer saber...»; referia-se à qualidade da minha representação e dizia que não sabia se era boa ou não porque «do corpo não quer saber, da voz também não». Ou seja, eu atiro-me para o filme. E atiro-me em cada plano, a representar o papel só com a minha ideia da personagem e com o veneno que o Oliveira injecta em conversas que temos sobre aqueles temas. Sobre o tema do amor, da paixão, da relação homem/mulher, enfim sobre os temas que o obcecam. De alguma maneira, eu penso que ele é grande quando consegue filmar as suas obsessões. Há vários momentos desses na FRANCISCA. É de vez em quando... quando ele é cru. Tenho pena que o Manoel de Oliveira não faça tanto assim nestes últimos filmes. É aquele lado que domina, por exemplo, quando ele quer filmar uma peça do autor de O passado e o presente; trata-se duma história estranhíssima duma mulher que arranca um seio por ter um cancro, com passagens violentíssimas... ela põe e tira o seio na casa de banho; penso que ele fazia esse filme muito bem. Talvez neste momento de consagração, ele possa perder um pouco esse lado mais vital. Claro que eu acho que esse lado continua a existir e é fortíssimo. O Manoel de Oliveira é um cineasta que se define sobretudo no momento da filmagem. Está sempre pronto para realizar o projecto de forma completamente diferente. Não recorre a truques. Prepara mas define-se no acto. R. G. — É consabido que o Manoel de Oliveira tem grandes preocupações em relação ao texto. Não me espanta que ele obrigue os actores a falar mais alto ou a articular melhor porque se sente nele a preocupação de tornar o texto perceptível. Às vezes é tão perceptível que ganha numa dimensão de irrealidade e abstracção. Transforma-se quase numa energia estranha que percorre o filme. Em conversa, à saída da estreia, dizias tu que ele é extremamente rigoroso no enquadramento. Mas, independentemente da latitude de que o actor dispõe conforme a abertura do quadro, o Manoel de Oliveira dá indicações ao nível de pormenores de gestualidade, postura, tensão de olhar, etc.? Estou a pensar concretamente no plano em que tu tiras o boné no fim da réplica. D. D.— Não. Aí, por exemplo, foi uma proposta minha. Fizeram-se várias tomadas. Primeiro, levantei só a pala. Quis dizer-lhe que estaria enganado em relação à imagem que tinha de mim, no fundo. Foi uma coisa que nasceu assim. Mas já no caso da FRANCISCA todos os gestos, posições de mão, na mesa, etc., planos que ele depois aproxima, são marcados especificamente. Ele vai dando maior liberdade ao actor a partir do momento em que o conhece melhor ou em que trabalham mais vezes juntos. Isso é normal. Mas nessa cena que tu citaste, a proposta foi minha. R. G. — Tu fazes parte daquilo a que se poderia chamar a casta de actores do Manoel de Oliveira. Tens alguma explicação para isso? D. D. — Há pouco falei-te dessa relação que se aprofunda e que cria uma admiração mútua. Chegase a um ponto em que esse lado brutal de Manoel de Oliveira prende. O Miguel Guilherme é um actor que acabou de chegar e ficou logo preso a ele. Acontece isso, naturalmente, às pessoas que se relacionam com ele. Foi muito criticado por isso. Às vezes é brutal, mas é a maneira dele se aproximar e de querer chegar mais perto de uma ideia. Aliás, é tanto melhor quanto vive dessa contradição da carne com o espírito, da religião católica com o corpo. Os actores têm de perceber


aquela intensidade. É uma questão de a fazer passar e tu ou respondes ou não. Se responderes, passa a ser o teu cineasta, a pessoa com quem tu gostas mais de trabalhar, independentemente do desafio, independentemente de surgirem por vezes guerras. Há um respeito por parte dele, quando vê que a pessoa está a dar a melhor de si. Houve uma vez, na FRANCISCA, em que um plano me correu mal. E o Paulo Branco, o produtor, impôs que se fizesse o plano seguinte. Eu fiz o plano seguinte, emocionado no mau sentido da palavra; ou seja, não consegui dominar a minha emoção. Tinha raiva de não ter conseguido fazer o plano como eu achava que podia. O Manoel de Oliveira apercebeu-se disso e, no fim, prolongou o dia de trabalho para voltar a filmar o tal plano. Percebeu que era mesmo fundamental para mim e adivinhou, porque eu não voltaria a filmar no dia seguinte sem fazer de novo aquele plano. Ele compreende esse radicalismo porque ele também é assim. E portanto ele pede isso das pessoas. E quando as pessoas lho dão, ele fica reconhecido. Não é só com os actores, penso que é geral. Todas as pessoas que trabalham com ele — desde os aderecistas à gente do guarda-roupa e ao resto da equipa — tornam-se fãs da sua maneira de trabalhar. Por muito que ele possa ser brutal e extremamente egoísta. Diz que o filme é o mais importante. Pode morrer tudo à volta. É querer muito. Numa cena que se rodou deste filme, houve um problema de maquilhagem que estava incompleta e ele tinha que filmar naquele momento. O sangue não estava na cara do Luís Miguel, quando devia estar. Ele atirou o chapéu para o chão e gritou alucinado: «Vocês estão a brincar com a minha vida!». Gritou mais do que o Rui de Carvalho no NON. Ele podia morrer ali, tendo a idade que tem e berrando daquela maneira, completamente fora dele. Mas é realmente a vida dele. Isso é que é forte. Aliado ao grande humor que é outra característica dele. S. — Na continuidade daquilo que estás a dizer, queria fazer-te outra pergunta. Tal como apresentas a questão, quando vais para um filme do Manoel de Oliveira, vais sobretudo filmar com ele... Independentemente do argumento ou quase. D. D. — Perfeitamente! Por acaso recusei um papel que ele me ofereceu neste próximo filme. Recusei porque há momentos e há etapas na vida dum actor. Não queria repetir o papel que tive no NON neste próximo filme. E era um papel um bocado idêntico: colocar questões ao Luís Miguel Cintra para ele falar. Eu disse que não, porque já tinha feito esse papel e por conseguinte não ia voltar a fazer, apesar de ser o Manoel de Oliveira. Mas sempre esperando que ele me desse outro papel. Porque, no fundo, tens completamente razão. Exceptuando em casos extremos, desde que seja exequível trabalhar com ele, nunca recuso. Eu não sou um caso isolado, é o mesmo com os outro actores. O Luís Miguel, com certeza, jamais recusará trabalhar com ele, desde que tenha essa possibilidade. S. — O Manoel de Oliveira fala muito do projecto, em termos globais, com os actores? D. D. — Não. Fala mais em termos de personagem. Nada do resto. De resto, exceptuando aos actores principais, ele não gosta de dar o guião a ninguém. É muito cioso do que é dele. S. — Seis meses de rodagem é muito tempo, apesar de tudo. E vocês acompanharam toda a filmagem... Retrospectivamente, vendo o resultado, o que é que achas? D. D. — Vendo o resultado, constato que há coisas de que eu gosto mais, mas isso é normal. Gosto mais da parte final do filme. Não gosto do episódio da mula. Se as batalhas tivessem beneficiado de outras condições de produção, poderiam ser melhores, penso eu. No geral, gosto do filme. Acho que é um filme do Manoel de Oliveira, que os desafios estão contornados, pelo menos no que toca às pessoas que trabalharam comigo. Gosto bastante das cenas do Luís Miguel no hospital, de tudo quanto é relacionado com o alferes Cabrita, das partes da batalha em África, dos soldados. Aí, o resultado foi como eu esperava. Em contrapartida, custa-me um bocadinho a cena do decepado porque julgo que devia ser um actor a fazer e não é. Mas isso são problemas que atribuo à produção. S. — A minha pergunta visava mais o facto de a rodagem ter sido mais demorada do que é costume. D. D. — Mas, para nós, mesmo assim, não foi muito, porque a parte mais concentrada foi África. Até África, nós praticamente só tínhamos feito figuração. Estamos lá, mas o realizador faz apenas uns grandes planos; no fundo o que ele filma é a batalha. África é que foi concentrado. Ainda por cima, no meu caso e no do Luís Miguel, com uma forte dose de paludismo. Há cenas em que estou completamente atacado de paludismo. Na refeição, eu estou com um ar perfeitamente esgrouviado. É da personagem e do paludismo. Estivemos mesmo muito mal nessa altura.


S. — Apesar dos meios nunca serem suficientes, este filme teve mais meios do que é hábito em Portugal. Como é que isso se sente do ponto de vista do actor? D. D. — Não sentes muito. A relação com ele é a mesma. Pronto, ganha-se melhor numa produção destas, mas não sentes uma grande diferença. O fundamental estava lá. O Manoel de Oliveira tem mais uns anos. Sente-se um pouco o peso dos anos. Claro que da FRANCISCA para cá, sente-se imenso. Na FRANCISCA, o Manoel de Oliveira parecia um miúdo a correr pelos montes do Douro. E agora tem 82 anos e, para ele, podia ser muito grave qualquer doença em África. A gente andava um bocado preocupada. Talvez pela primeira vez, sente-se o peso dos anos. R. G. — Eu sei que a explicação parece muito evidente, mas talvez não seja assim tanto. Alguma vez discutiram a razão pela qual a narrativa histórica acaba em Alcácer-Quibir? E o Manoel de Oliveira não é decerto um cineasta de evidência. D. D. — Não. Não faço a menor ideia da razão. Nem sei por que é que ele põe o D. Sebastião no fim. Para mim, até é de um gosto um bocado duvidoso. Eu estive um tanto afastado dessas questões. Com o sebastianismo não tenho muito a ver. Mas é a visão dele. Ele é que poderia esclarecer esses pontos. São os filmes dele. É uma história antiga, não é uma história para as pessoas aprenderem. R. G. — Eu também não acho o filme didáctico. Pelo contrário apela-se para uma relação extremamente emotiva. Quando o Manoel de Oliveira diz que isto não é uma lição de história, penso que está mesmo a falar a sério. Eu já ouço falar deste projecto há muitos anos. Da boca do Manoel de Oliveira, seria um filme sobre as batalhas perdidas da história de Portugal. Talvez a ideia de situar a narrativa na África colonial seja relativamente mais recente. Aliás é uma das habilidades do filme, baralhar o centro da acção e os motores da história. Quais são os mais vivos? S. — O filme fala imenso da «Pátria», afinal. É uma interrogação sobre a Pátria. Durante as filmagens, o realizador fala disso? D. D. — Não. R. G. — Pois, mas há uma grande irrisão em relação a essa ideia de Pátria. D. D. — Claro. Um dos problemas que o filme teve foi não ter sido apoiado pela Comissão dos Descobrimentos. R. G. — Se te parece! Aquele diálogo formidável em que se diz que a máquina do mundo é um pito, depois do episódio da Ilha dos Amores, é capaz de chocar os patriotas. O que fica da recompensa máxima do Gama é o pito. D. D. — Mas isso foi das coisas que mais gozo deu filmar. Alegria mesmo. R. G. — A alegoria é tratada com uma crueza que ninguém ousaria... D. D. — Na Ilha dos Amores, há também aquelas meninas que são escolhidas duma maneira incrível. São as possíveis. É a maquilhadora, a alentejana que estava ali mais à mão... E como ele consegue tirar disso um efeito de estranheza incrível. A primeira vez, tive imensas dúvidas. Hoje, já vi melhor. E da próxima vez, sei lá... R. G. — Essa dimensão inverosímil é um traço constante. Não são as divindades que se imaginam sequer. Nem os cupidos, nem nada... S. — E as batalhas são ao mesmo tempo tão emblemáticas... e irreais. Não parecem batalhas. D. D. — É isso que ele pretende. De Toro ele quer o desfraldar a bandeira. R. G. — Há montes de efeitos de tesoura na batalha que perturbam a legibilidade. S. — Mas há mais efeitos de tesoura no camião. Há um cruzamento de sentidos. Não há sentido da História. D. D. — É propositado, com aquelas grandes tiradas de texto... S. — São as leis desnecessárias do cinema. Mas quando são infringidas, criam um efeito notável. Com as tesouras, já não se sabe para onde vai o camião. O resultado é forte. R. G. — O mesmo acontece com os diálogos que em geral são muito pesados no filme. Quando, de repente, se tornam frívolos, surtem um efeito muito expressivo. Lembro-me da excelente frase «vamos ter de dar uma voltinha» depois daquela retórica pomposa sobre o passado. É a impossibilidade de chamar pelo nome o risco de morte que se corre. Então fala-se por diminutivo. D. D. — Essas chamadas súbitas ao real são magistrais. A história do negro com as tripas foi uma coisa que lhe contaram.


R. G. — É a África inteira a gritar. Quando os soldados voltam a metralhar, a primeira impressão que sentem é que atiram sobre o nada, é só para cobrir aquele grito que vem do outro lado. Do outro lado não há nada e aquilo é perfeitamente insuportável. S. — O filme tenta revelar qual pode ser o sentido trágico daqueles soldados no meio do mato. Não podem ser filmados da mesma maneira que nas grandes batalhas cuja imagética já está fixada. Mas, apesar de distanciado, o sentido trágico é o mesmo. Entrevista conduzida por SAGUENAIL e REGINA GUIMARÃES.


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