Disfarces

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DISFARCES Mais do que da moda e dos seus criadores, patrões e escravos, PRONTO-A-VESTIR Fala-nos de elites e de vida mundana. Embora Altman tenha tratado a sua picaresca ficção em jeito de documentário — com abundante participação de fashionable nomes da fashion —, o filme não retrata o meio da moda como universo à parte, criando bem pelo contrário a impressão de que, a diferentes níveis, se poderia estar a falar das esferas da política, da cultura, da arte. E, apesar de um aparente caos, ora mimético da reportagem — roubo de imagens — ora reminiscência dum cortejo felliniano — oferenda de imagens —, o trabalho de realização é conduzido com graça, leveza e desenvoltura. O mosaico organiza-se de tal forma que todos os episódios — alguns menos felizes como a história um pouco déjà vue de Tim Robbins e Julia Roberts, outros francamente conseguidos como o reencontro Marcello Mastroianni/Sofia Loren — se respondem e se iluminam como rimas cansadas. Numa pirueta que revela antes de mais génio de produtor, Altman vende, no ecrã, personagens do mundo «real» — todos eles com passado, fama, reputação — provenientes do star system e do fashion system e, à maneira de Godard, transforma-os numa galeria de fantasmas de si próprios, deixando ao espectador o cuidado de lhes encontrar, ou não, alguma réstia de charme. Protegido pela aura e pela trama da ficção, o cineasta americano prendeu as personalidades célebres na armadilha das suas próprias imagens públicas, construindo um efeito de ponto de vista que, a todo o momento, sugere, ou melhor sugestiona, uma incursão nos bastidores, no privado. O resultado equaciona brilhantemente a falsidade da própria oposição entre vida individual e vida social e, com extrema delicadeza, dado que nunca se cai numa caricatura injuriosa, explica a necessidade íntima e pública das máscaras. Não conheço as reacções dos participantes na fita mas calculo que não andarão longe dos comentários que ouvi de alguns espectadores: um certo desconcerto, um quase mal-estar. Demasiado longo para parecer uma «boutade» o filme de Altman embacia os dourados, os espelhos e as lantejoulas, desenvolve-nos uma Kim Basinger american míddle-class e uma Sofia Loren velha senhora digna a tender para megera. Os apontamentos sobre a França — a TV insone e sonolenta que conta carneirinhos e o sandwich assassino comprado no aeroporto — são breves mas inteligentes como só os estrangeiros sabem esboçar com talento e acuidade. A solução do desfile de nus, aparentemente pouco sofisticada, tem o seu corolário indispensável e esclarecedor na cena do cemitério, que acaba com a câmara apontada para um grande «outdoor» contendo uma imagem publicitária de nu e apelando para o «regresso ao natural» (um natural cultural que aglutina e recupera qualquer veleidade de provocação ou despojamento expressos pela nudez). O vazio de sentido da moda é, de facto, o esvaziamento do processo criativo em si: assim como os tailleurs Chanel são usados por «travestis» que lembram britânicas burguesas de salão de chá, os quadros do suicidado Van Gogh são, por hipótese, admirados por respeitosas filas de burocratas japoneses engravatados. O filme de Altman fala de fake e explora o fake através duma forma híbrida e ambígua: um documentário sobre a ficção da moda, disfarçado de ficção, ficcionado como um documentário. R. G.


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