Do sintético à matéria prima

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DO SINTÉTICO À MATÉRIA-PRIMA Entre outras funções sociais, o cinema assegura, paralelamente à criação de mitos e de modelos de vida, a fixação em imagens e a invenção de uma História — cristalizada em torno de certos «períodos-chave»; nos Estados Unidos, a conquista do Oeste, a lei seca e as diferentes guerras nas quais o país esteve envolvido. Tais funções sociais, que se cumprem ao nível do inconsciente colectivo, raramente são assumidas — o papel da ficção é justamente torná-las invisíveis, ocultando-as com um biombo anedótico — pelos realizadores: a maioria das vezes, os acontecimentos são reconstituídos sem serem interpretados, e dados como pano de fundo consensual — a interpretação implica, pelo contrário, um empenhamento ideológico manifesto, cuja exposição não dispensa um certo didactismo. Os irmãos Taviani representam talvez o exemplo mais coerente dum cinema ideológico assumido — comunista «gramsciano» — que leva as suas pretensões até à aplicação dum método — a dialéctica — de análise e de encenação dos acontecimentos narrados. GOOD MORNING BABYLONIA, pelo seu campo temático conhecido — os princípios do cinema hollywoodiano —, permite talvez apreender mais facilmente a forma como os Taviani aplicam o método dialéctico e simultaneamente o transpõem — evitando a secura do puro discurso didáctico. Como fonte do argumento, um facto histórico — a participação de dois italianos, artesãosescultores de catedrais, na edificação dos cenários «babilónicos» do filme INTOLERÂNCIA de Griffith — escolhido pela complexidade simbólica das forças que concorrem para a particularidade deste «fait-divers» (este critério de opção e tratamento preside a todos os filmes anteriores). As forças em presença dividem-se em dois blocos antagónicos: Novo Mundo versus Velha Europa, papelão versus pedra, etc. Cada uma dessas entidades será, por sua vez, mostrada segundo duas facetas ambivalentes, que correspondem não à escolha de pontos de vista opostos, mas a imagens contraditórias criadas pela memória colectiva: a construção das catedrais é ao mesmo tempo uma «arte» e um trabalho miserável, a América uma terra de acolhimento e um deserto, o cinema uma profissão que pode trazer glória e uma máquina que ignora a qualidade e esmaga o indivíduo, etc. Para sublinhar a ambivalência, os irmãos Taviani elaboram a ficção de maneira a apresentar duas vezes cada objecto simbólico, tomando-o ambas as vezes numa situação de excepção ou de desvio em relação à função convencional (apesar desta última estar presente no filme de Griffith, cuja sombra reúne todos os valores em jogo): a igreja, inicialmente local de trabalho e de festa, reaparece no fim a dominar a paisagem devastada pela batalha; a câmara que, ao registar as imagens, permitirá o reconhecimento do valor dos dois irmãos escultores, no desenlace já só filma a morte irremediável — o culto e o valor do cinema, que transcendem o documento, estão reservados à obra INTOLERÂNCIA da qual só chegamos a entrever o aspecto espectacular, quer dizer «menor». Talvez mais do que nos outros filmes, o tratamento de um «fait-divers» particularmente revelador daquilo que se joga no plano da História, pode parecer frustrante. As relações de homologia entre o trabalho de Griffith e o dos Taviani são demasiado evidentes para que o apagamento relativo — inversamente proporcional ao respectivo peso — da rodagem de INTOLERÂNCIA no filme não surja como uma fuga mal dissimulada. Mas a capacidade de sintetizar numa imagem o propósito e o objecto — tal o combate às cegas na seara de trigo em A NOITE DE S. LOURENÇO, a desmultiplicação da personagem isolada na sua célula em S. MIGUEL TINHA UM GALO e neste caso, obviamente, o elefante magnífico e inútil condenado ao fogo no cenário da floresta — justifica a postura. Resta acrescentar que GOOD MORNING BABYLON1A revela um empenhamento dos irmãos Taviani na ficção a um nível mais profundo, mais despudorado — na medida em que roça necessariamente o autobiográfico — que transcende a inteligência do discurso e determina no fim de contas o preço desta anedota exemplar: para além das origens culturais (a associação entre a Itália e a «grande» tradição artesanal talvez constitua, aliás, o aspecto mais demagógico e duvidoso da fita) é a relação de fraternidade dos dois protagonistas que faz resvalar a ficção que de didáctica passa a problemática tornando-se mais viva.


São os laços de fraternidade que transformam o elefante sacrificado, entre o do alto-relevo de pedra da igreja toscana e os de papelão do cenário babilónico, num emblema simbólico da situação da obra dos Taviani. S.


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