Don juan em sua companhia

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DON JUAN EM SUA COMPANHIA Um texto para teatro, com Molière, Baudelaire e António Patrício, com a voz do Saguenail, com a madrasta literatura, com o meu pai e a minha mãe confundidos. Estreado pelo Teatro Só em Novembro do ano 2000, no Porto.

Caixa negra. Um círculo de luz ilumina as mãos de Don Juan que seguram tremulamente um sapato ou uma bola de cristal. Don Juan (olhando para o sapato / bola de cristal) - Não posso ter nascido dum sintoma. Não apenas. Não posso ter escorrido pelas pernas abaixo como um visco vermelho que anuncia a crise da carne e a apoteose musical da alma. Devo a mim próprio uma explicação. O círculo de luz começa a aumentar de raio, muito lentamente. Don Juan - Não hei-de morrer de olhos fechados e abertos, nem preciso de morrer enquanto os meus membros ocuparem tanto espaço. Bendito estorvo. Nasci velho e, como os velhos, vivi o corpo sob forma de cedência. Nula arrogância, nenhuma transparência... pudera eu lamber todas as pequenas feridas que nele se fazem maiores cada dia. Não querer o querer. Não querer esquecer-me da pele, nas suas planuras e engelhas, nas suas doçuras e asperezas, máquina de beleza inacabada. Não querer o querer desenriçar a meada das minhas noites e a longa cabeleira da vida eterna. Ou da sua promessa. Ou da sua traição. Não querer pairar sobre a vida como um sintoma de desejo saciado, aquele que fecha os olhos aos mortos quando cessa o bafo e se escondem os espelhos. Don Juan pousa a bola / sapato no chão. O seu corpo está doravante inteiramente iluminado. Don Juan - Quem beijou os pés do príncipe do desejo e nada menos... E os trincou também, tenros rebentos, e os engoliu como bichinhos vivos, acabados de nascer? Quem assim foi por breves instantes, ainda que por breves instantes, não pode aspirar senão à eterna mudança que faz com que os eleitos permaneçam. E cada eleito de cada eleito. Suspira. Don Juan - Sujeito a confirmação... Entra Dona Elvira, no negro. Traz nas mãos uma bandeja que só se tornará visível quando a luz voltar a subir. Dona Elvira (no negro) - Inveja. Pura inveja. Invejaste as tremuras dos velhos, esse vacilar entre o sono mais leve e o mais pesado, a arte de andar perdido na junção da carne que se cala com a carne que grita. E eu, aflita, consolei-te, convidei-te a devastar-me, preparei-me para te receber como um sepulcro e escavei a campe rasa que havia em mim. Noite após noite. Uma luz dourada e matinal começa a subir. Dona Elvira - Segura de que nenhuma manhã romperia, nenhuma claridade iluminaria essa tremura de vela, vista dos meus lábios e do meu sexo infinitamente magoado. E, no entanto, vi-te partir e corrigir à pressa a versão da manhã, a versão do meu corpo entregue à história como uma página branca, virgem antes e depois de ser violada. Deixa-me abrir-te os olhos, gazela míope, deixa-me proibir que durmas, que cerres os olhos e vejas o que há dentro de ti e depois acordes desse sono sem culpa formada. Deixa-me procurar na gaveta onde as sementes guardadas deram frutos de outra espécie. Deixa-me propor um epicentro para esse abalo do corpo gelado. Pois a terra não mais tremerá.


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