Serge Abramovici Faculdade de Letras da Universidade do Porto
– E PARA O «CO» NÃO VAI NADA? Substituímos o diálogo pelo comunicado. A. Camus 1. Falando de comunicação, convém desde logo distinguir a actividade de comunicação — actividade humana cujo modelo implícito continua a ser comunicação oral interpessoal —, os meios de comunicação — objecto de estudos que se foram desenvolvendo a partir do momento em que a comunicação mediatizada e instrumentalizada adquiriu uma importância social tal que se tornou necessário controlar os mecanismos que a regem — e a comunicação enquanto disciplina universitária que produz um discurso teórico sobre a actividade e os meios de comunicação. Tratase duma disciplina recente. Contrariamente à maioria das novas «ciências» que eclodiram no decorrer deste século, a delimitação do seu campo não se traduz por urna redução especializada dentro ou na confluência de disciplinas já estabelecidas, mas espraia-se por quase todos os sectores das ciências humanas, da linguística à pedagogia, passando pela sociologia, pela antropologia, pela psicologia, etc. 2. A extensão do campo da comunicação enquanto disciplina, que engloba comunicação social, comunicação pedagógica, comunicação audiovisual, etc., é notável: sob este conceito encontram-se reunidas a quase totalidade das actividades do sector dito terciário. Nessa perspectiva, o alargamento do conceito leva-o a confinar com o seu sentido original de comércio. Todavia, a sobreposição do campo da comunicação com um sector social considerado, do ponto de vista materialista, parasitário ainda no século passado — as análises marxistas devem hoje ser integralmente repensadas dada a expansão, que Marx não previra, deste sector terciário, a ponto de constituir a principal área de actividade social da nossa civilização contemporânea — fornece-nos um primeiro indício sobre a função do discurso elaborado pela nova disciplina: qualquer especialista de comunicação é obrigado a afirmar a necessidade da sua actividade, i. e. justificar através de razões de interesse social a mediatização que lhe garante a sua própria existência social. 3. Ora, paradoxalmente, o discurso sobre a comunicação, dentro de cada sector, refugia-se numa justificação já admitida do próprio sector — a comunicação publicitária no marketing, a comunicação didáctica na pedagogia — que lhe permite furtar-se a uma descrição das formas reais de comunicação, a qual poderia pôr em causa o seu próprio objecto. Estamos assim perante um discurso cujas boas intenções nos são apresentadas como factos e que, repetindo as fórmulas das quais resta provar que correspondem efectivamente a uma pragmática, perpetua um modelo inicialmente concebido para outras finalidades. Convém pois, por um lado situar esse modelo no seu contexto de aparecimento, compreender a sua dinâmica e a sua evolução, por outro questionar a natureza dos factos de comunicação ocultados pelo discurso. 4. Foram os progressos tecnológicos que no princípio levaram, pela introdução de novos instrumentos, novos códigos, novos comportamentos derivados da sua utilização, à necessidade duma elaboração teórica sobre sectores definidos que a noção de comunicação abrange: semiologia — com o desenvolvimento de técnicas de comunicação não-verbais (cinema, imagens publicitárias) —, telecomunicação — com o aperfeiçoamento de técnicas de transmissão à distância —, informática — com a capacidade de codificar qualquer informação, verbal ou não —, etc. Os esquemas da comunicação foram primitivamente estabelecidos para dar conta duma comunicação mediatizada, posto que os novos instrumentos revelaram a importância das actividades de
codificação e descodificação. A generalização desses esquemas à actividade de comunicação não é óbvia. 5. O modelo «canónico» da comunicação foi de início concebido para dar conta das diversas fases dum sistema de telecomunicação. Desenvolve-se entre emissor e receptor e particulariza as funções instrumentalizadas de codificação e canalização. O primado atribuído à emissão corresponde a uma especificidade das comunicações de massas que constituem já o modelo oculto da comunicação na época em que o esquema foi idealizado. Curiosamente, foi o aproveitamento desse esquema por Jakobson, com o objectivo preciso de distinguir a propriedade duma função poética da qual definirá o campo dentro do domínio da linguística e da literatura e a partir da qual lançará as bases duma disciplina autónoma — a poética (é preciso realçar que a fática ou a conativa não engendraram disciplinas independentes muito embora as modalidades de estabelecimento de contacto ou de obtenção duma reacção pareçam fundamentais para aprofundar os mecanismos de comunicação enquanto actividade — que contribuiu mais fortemente para o processo de «canonização». 6. A contestação ou a preocupação de aperfeiçoamento do esquema (por exemplo graças à revisão de C. Kerbart-Orecchioni) situa-se já no quadro dum discurso que toma por objecto não uma pragmática mas um outro discurso. Ao reforçarem a simetria entre emissor e receptor, através da atribuição de competências e determinações virtualmente equivalentes, os novos esquemas tendem a dissimular a mediatização que estava na origem do esquema inicial e modelava a pragmática da comunicação, a negar as relações hierárquicas estabelecidas no decorrer do processo de comunicação, a criar uma ficção da comunicação, a acentuar o desfasamento entre teoria e pragmática — a recente substituição terminológica de receptor por alocutário (como, em pedagogia, de aluno por «formandos») labora no mesmo sentido; mediante uma imagem «politicamente correcta» neutraliza-se a gravidade dum funcionamento social baseado na desigualdade e no condicionamento. 7. Mais concretamente, as teorias da comunicação nascem no seguimento da Segunda Guerra Mundial. São encomendadas pelas autoridades militares do Pentágono — que anteriormente haviam encomendado, com vista à invasão do Japão, os primeiros métodos «audiovisuais» de aprendizagem duma língua num período de tempo extremamente curto por «imersão total» — envolvidas na maior guerra de todos os tempos — a guerra «fria» — que durante duas décadas vai orientar todos os sectores de actividade política e económica do planeta. O mundo assistira, com a formidável expansão dos regimes fascistas na Europa, às inconcebíveis provas de eficácia das «comunicações de massas». É aliás nessa mesma época que o cinema americano assume definitivamente unia função de propaganda — em prol da invencibilidade do exército americano, da riqueza americana, do modelo de vida americano, da ideologia da livre concorrência. 8. Os objectivos pragmáticos são simples: redução do tempo de reacção — aumento da velocidade da comunicação — e universalização do campo de acção — condicionamento das massas segundo um modelo único, económico, político e comportamental. Se por um lado estes objectivos se inspiram no exemplo da utilização das comunicações pelos regimes fascistas, estes últimos são por outro, no tocante à ideologia e aos métodos, eles próprios produtos do desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação no princípio do século e duma modificação profunda que elas provocaram ao nível dos actos de comunicação mais simples. Em 1956, E. Morin abre os seus estudos sobre O cinema ou o homem imaginário caracterizando o século XX pelas duas invenções que marcam o seu advento: o avião e o cinematógrafo, i. e. a velocidade e a universalização das comunicações. As manifestações de massas no século XX espectacularizaram-se. Ganham imagem na ópera, retrato de grande figuração e, desde os primórdios do cinema (seu herdeiro directo), nos peplum italianos que tanto influenciaram o imaginário de Mussolini e Hitler. O cinema substituiu o discurso verbal por uma semiologia da imagem e do movimento que o fascismo saberá explorar.
9. Hitler teve pelo menos um antepassado e um modelo: Napoleão Bonaparte. E talvez seja imprescindível voltar à época da Revolução Francesa para perceber como o desenvolvimento dos primeiros meios de comunicação social, nomeadamente da imprensa, é acompanhado por uma inflação e por uma desvalorização do discurso verbal. A imprensa e a sua difusão no decorrer do século XIX assume, com a caução da ideologia republicana, a ocultação duma tomada do poder por uma Classe privilegiada que utiliza o «povo» como instrumento dessa conquista. A perspectiva histórica tem a vantagem de revelar um certo funcionamento numa altura em que os objectivos ainda eram visíveis e proclamados. A acumulação do discurso e a evolução das formas tende a apagar esses objectivos que todavia não mudaram: trata-se sempre duma manutenção ou dum derrube do poder. 10. O conceito de literatura e o seu aparecimento nos finais do século XVIII são neste aspecto significativos: o conceito e a disciplina nascem precisamente no momento em que, com o florescimento da imprensa, se desenvolve um novo tipo de escrita que desempenha novas funções. O campo delimitado pela literatura enquanto disciplina de estudo começa justamente por eliminar as primeiras produções de técnicas de comunicação de massas, embrionárias daquilo que se viria a transformar numa verdadeira «cultura de massas». Tal rejeição é reveladora: oculta-se o fabrico duma cultura com um papel de condicionamento quando só o crescimento quantitativo desta última justifica o desenvolvimento da disciplina literária. A literatura, ao elaborar o seu discurso, inventa para si um objecto distinto daquele que alimenta a sua existência. 11. É por conseguinte possível que a comunicação, enquanto disciplina de estudo, perca de vista o seu objecto por não analisar a pragmática duma comunicação de massas rejeitada por razões político-ideológicas, que continua no entanto a moldar tanto a comunicação «corrente», na televisão ou na sala de aula, como os esquemas do discurso teórico sobre a comunicação. Porventura basta evidenciar as coordenadas que o esquema não consegue dissimular totalmente para reformular um conceito de comunicação que já não corresponde à ficção que nos é apresentada. Uma verdadeira comunicação deverá então ser definida por contraste com esse modelo real que só continua a imperar porque tem vindo a ser sistematicamente ocultado. A mais sumária descrição da pragmática de qualquer comunicação mediatizada confirma forçosamente — infelizmente — as relações de poder nas quais a comunicação de massas assenta e que de há longa data pervertem toda a comunicação social, ou mesmo todo o acto de comunicação corrente. 12. Para descrever os processos efectivos das comunicações de massas, basta retomar o esquema «canónico» introduzindo as etapas de amplificação e de difusão da mensagem. Os estatutos do receptor e do emissor são imediatamente alterados: o emissor é substituído por uma imagem ampliada correspondente à amplificação da mensagem, em contrapartida, o receptor é reduzido enquanto indivíduo a representar apenas uma parcela da massa receptora. Amplificação e difusão são, no plano técnico, avaliáveis pelas relações de tamanho e de número entre os instrumentos de emissão — microfones — e de recepção — altifalantes. A própria massa não é mais do que uma imagem viva do receptor à escala da ampliação simbólica da imagem do emissor. A comunicação visa antes de tudo realizar a coesão da massa e as funções fática e conativa pesam mais do que a função referencial ou até do que a função emotiva — trata-se dum espectáculo em que o emissor desempenha um papel e é obrigado a renunciar à expressão individual. 13. O conceito de comunicação será capaz de dar conta dum processo deste tipo em que os indivíduos se anulam? A total manipulação do receptor, a unilateralidade da produção de mensagem, a desigualdade afirmada entre os dois pólos da palavra incitar-nos-iam a pôr de lado, na medida em que ela implica o reconhecimento do outro, a noção de «comum» da conceptualização. Se eliminarmos o cum de solidariedade baseada na igualdade, resta a municação, noção que
propomos para descrever o processo engendrado pelos diversos fascismos, e que, marcando uma distinção, permitiria preservar o conceito de comunicação e os valores positivos que lhe estão ligados — é possível encarar a grafia muniquação (de Munique) para o conceito a fim de manter visíveis as marcas duma origem, ou pelo menos dum modelo de referência. 14. Elias Canetti descreveu as diferentes formações de massas. Porém, os exemplos de municação de massas limitam-se a certos regimes ditatoriais, fascistas, munistas ou simplesmente caricaturais. A massa é um instrumento temível mas difícil de manipular — donde a necessidade dum treino militar — porque a concentração massiva cria uma nova entidade — a consciência de massa — ainda mal conhecida. Por isso a municação age preferencialmente por difusão junto de células receptoras fragmentadas — cujo protótipo é a célula familiar reunida à frente do televisor. Contudo, ao nível da municação social observam-se os mesmos processos de amplificação e de difusão. O emissor — o político, por exemplo — apaga-se em proveito duma imagem — que enquadra essencialmente o rosto — enquanto o receptor, no acto de municação, é substituído por um mero instrumento: a câmara, o microfone. 15. A análise da municação está por fazer. Convém questionar a concepção inicial dos instrumentos e o sentido da gestualidade que eles instauram. O desenvolvimento dos instrumentos de municação e a sua difusão pública assenta basicamente numa concepção do público como receptor — i. e. do ponto de vista económico, como consumidor. No outro pólo, seria interessante analisar a evolução dos microfones que de princípio escondiam as caras — favorecendo a criação duma imagem fantasmática — e progressivamente se foram tornando invisíveis, à medida que a publicidade foi impondo um modelo de imagem municadora. 16. A sala de aula é um lugar particular de municação. A desigualdade institucional materializa-se constantemente no espaço da aula devido às próprias condições em que se realizam os actos de palavras. Neste quadro, a municação já não é instrumentalizada, mas os dados do esquema mantêmse: imagem engrandecida e alteada do professor--emissor, amplificação da voz, difusão da mensagem no seio dum receptor colectivo, etc. O aluno, mesmo quando toma a palavra, não tem «direito» à amplificação. A municação é exercício do poder. Falar de comunicação a propósito da actividade docente é uma criação ficcional que visa ocultar os verdadeiros objectivos da docência, alimentar a «ilusão pedagógica» do professor permitindo-lhe que, na qualidade de agente duma instituição da qual aceita as directivas, desempenhe o seu papel e cumpra a sua missão social de reprodução (cf. Bourdieu e Passeron). 17. O discurso pedagógico é em grande parte pura maquilhagem — máscara sincera que mais não faz do que reforçar uma ilusão, considerando efectivas as intenções e lidando cegamente com os factos, ou melhor silenciando-os consensualmente. Os dados foram viciados à partida. O modelo da municação impregna de tal maneira os nossos comportamentos que também condiciona o discurso sobre a comunicação. Através dos artigos de vulgarização, é possível observar como os docentes se dirigem a receptores--leitores minorados — infantilizados —, reduzindo assim o objecto da sua pesquisa — omitindo por exemplo as aplicações formalistas que Jakobson propôs para o seu próprio esquema, ou os desenvolvimentos da teoria da enunciação — e autopromovendo-se inconscientemente — amplificação mediante a acumulação de referências que servem de caução. É interessante observar que os especialistas da comunicação e da pedagogia são na maioria dos casos professores que abandonaram o meio escolar — e logo o contacto directo e a pragmática — e têm doravante de salvaguardar a sua promoção sócio-profissional que lhes permite escapar aos controlos institucionais e apanhar algumas migalhas da autoridade concedida aos «emissores». Vítimas consentidoras e recompensadas da mistificação, transformam-se nos seus melhores agentes. 18. As teorias da enunciação — ao privilegiar o acto locutório, o termo recusa implicitamente a ilusão da comunicação — foram elaboradas na sequência duma extensiva análise de discursos,
essencialmente publicitários e políticos — protótipos da municação. Cullioli evidenciou uma vontade de se dizer que prevalece sobre a vontade de dizer. O recurso às teorias psicanalíticas pode revelar a dose de investimento libidinal na muni-cação. A figura do emissor não sai ilesa desta problematização. O discurso sobre a comunicação responde a urna preocupação, por parte do docente emissor, de se preservar — os jogos de poder e de sedução intervêm mesmo nos enunciados escritos de carácter «científico» dos quais é útil comparar as estratégias, da multiplicação das perguntas retóricas à utilização exclusiva da forma afirmativa (por exemplo em artigos do número anterior desta mesma revista). 19. A descrição dos processos efectivos de municação é necessária na medida em que só o seu conhecimento possibilita urna transformação. O horror do holocausto parece ainda hoje cegar-nos quanto à natureza profunda do fascismo, desenvolvimento paranóico e monstruoso de processos e de comportamentos próprios da nossa civilização e que lhe pré-existiam. Ora os genocídios não desapareceram. Ao abandonar as manifestações de massas, voltando a formas sociais admitidas — a pretexto de informação e de distracção — a municação tornou-se modelo dominante. O condicionamento que sofremos é tanto mais eficaz quanto o fascismo dos nossos regimes se vem mostrando mais «ordinário». A ilusão espalhada pelo conceito de comunicação é acompanhada por uma recusa de ter em conta as condições reais de vida — como não fazer intervir na descrição da aprendizagem da linguagem por uma criança pequena as modificações do meio onde está a crescer (redução do tempo de relação com a mãe, introdução da televisão, etc.) que alteram a sua percepção do papel da linguagem em si? 20. A comunicação será então puro engano? Não se deve confundir abusivamente relacionamento e comunicação. Durante muito tempo postulou-se uma função de comunicação da linguagem. G. Steiner, posteriormente corroborado por outros linguistas como C. Nadège, lembraram oportunamente que a função inicial da linguagem consistia na distinção dos grupos humanos — donde a multiplicidade das línguas, por vezes em territórios muito limitados — e que este instrumento só se desenvolveu graças ao poder duma das suas potencialidades: a mentira. A comunicação é porventura possível mas está por construir. Possuímos modelos — não raro ficcionais — de comunicação. A pedagogia assenta, no método dialogal socrático, essencialmente na comunicação; todavia o modelo socrático é obsoleto na instituição escolar tal como hoje existe já que esta desempenha outras funções sociais. A comunicação deve continuar a ser uma referência e um objectivo: como passar da municação à comunicação? O problema fulcral que uma teoria da comunicação tem de resolver, ou pelo menos descrever, coloca-se não ao nível da enunciação mas da alternância dos papéis de emissor e de receptor, não da transmissão da mensagem, mas da circulação da palavra, ou seja do poder.