E tudo o vento trouxe

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E TUDO O VENTO TROUXE E o relincho do branco cavalo Aurora Victor Hugo Há filmes em que a paisagem, ou um elemento da paisagem, parece uma materialização dos sentimentos das personagens e adquire um valor simbólico que ultrapassa a sua mera visibilidade: o deserto de sal onde as personagens de Greed (de E. von Stroheim) vão matar-se uma à outra, é fiel imagem da secura dos seus corações. Esse simbolismo pode aliás variar no decorrer de um filme — assim o Rio de Ouro, de Paulo Rocha, acompanha, na alegria como na fúria, a evolução dos sentimentos de Carolina, a guarda-cancela... Em The Wind (O Vento) a paisagem é reduzida a um único indício, que simultaneamente a representa e apaga, o vento. Com efeito, há bastante poucas vistas do exterior e as que existem são amiúde nocturnas: o vento, que forma como que uma cortina em frente às imagens, está omnipresente mas não é propriamente visível. Contra as vidraças, mãoscheias de areia vêm bater, figurando efémeros fantasmas; a areia incrusta-se e penetra por toda a parte, no soalho que as personagens varrem incansavelmente, nas roupas que o sedutor sacode com a ponta dos dedos a fim de afirmar o facto de não pertencer àquele lugar, até mesmo na comida... A areia vê-se, mas é pelos ouvidos que temos a percepção do vento ao longo do filme, assobio insistente que nos é transmitido não pelo olhar de Lilian Gish, mas pela sua fixidez: ela não vê o vento, ouve-o. Nunca o cinema mudo foi tão sonoro como neste filme. Mas parece-me que Sjöström vai ainda mais longe: o vento, nesta obra, é nitidamente uma concretização das forças inconscientes — medo e desejo — exteriorizadas que habitam Lettie. O objecto desta atracção-repulsa não deixa lugar para dúvidas: trata-se do contacto físico, da relação sexual. A mulher do primo não se engana e o seu ciúme só parece excessivo por causa do verniz de boa educação que envolve Lettie, boneca de porcelana no país dos elefantes, e que o vento porventura eliminou nos habitantes daquela região. Toda a progressão do filme assenta nessa relação de Lettie com o seu próprio desejo, com as forças que a assombram e que, aos poucos, ela aprenderá a já não temer e até a amar. Julgando preservar-se ao recusar-se ao marido, Lettie acabará por se confrontar com a essência do desejo e, violada durante o seu desmaio, por matar à queimaroupa o violador "civilizado". A verbalização do sentido metafórico do vento — definitivamente assimilado ao contacto físico no decurso da noite de núpcias e instintivamente percebido por Lige: "Não tenhas medo... nunca mais te tocarei" — proporciona ao espectador uma percepção física do vento. Não é tanto pelos ouvidos que ele penetra mas pela pele. As rajadas de areia agridem-nos como batem nas janelas da casa, envolvem-nos como abraçam as personagens do filme mal a porta se abre. O vento varre uma terra estéril — à qual se opõem as verdes pradarias evocadas da Virgínia donde vem Lettie —, uma terra onde aparentemente não cresce nenhuma planta. Ora estes valores vão rapidamente inverter-se: aquela terra e aquele vento mais não são do que a outra face da "virgindade" de Lettie. O vento não foi domado pela visita que Lettie fez ao sedutor no seu quarto da cidade, pois se a virgindade lá foi perdida, a única proposta de resgate consiste num retorno ao passado: levá-la de volta para a Virgínia. Lettie só poderá ultrapassar a ambivalência do seu desejo graças ao amor. Assim, o casamento com Lige ficará por consumar até o amor nascer. E é isso que o sedutor não compreende, ele que acredita que a violação, a consumação física desprovida de amor, pode satisfazer Lettie. A mais notável qualidade deste filme é levar-nos para o terreno das paixões — no sentido original, cartesiano, de forças que submetem passivamente a razão — primitivas: aquela terra pertence aos índios e é habitada por um cavalo branco do qual o vento é a alegoria. Os preconceitos da moral puritana não vigoram ali: Lettie desposa Lige sem remorso depois de ter descoberto que o sedutor é casado. Lige nem sequer se dá ao trabalho de procurar o cadáver do violador que o vento, por fim domado, doravante só terá de apagar. Porque o sedutor é ele mesmo, virtualmente, um fantasma — eventualidade que é expressa pelo seu piscar de olhos quando Lettie vem observar o ferido (nos contos infantis, o papel era desempenhado pelo lobo, e o vento substituído por uma floresta).


Filme simbólico, O Vento consegue oferecer-nos imagens de sentimentos que as palavras dificilmente exprimiriam e ultrapassar os limites físicos da imagem, atingindo o espectador através de outros sentidos que não a vista. Ao longo de todo filme, a luz parece emanar de Lilian Gish/Lettie; é ela que ilumina a cena e se projeta nos olhos do espectador, acompanhada por esse vento que, de tanto soprar, varre o conforto da cadeira onde, blasés, julgávamos estar protegidos dos nossos medos e desejos primitivos. É preciso ver O Vento para revirginizar a cabeça. Saguenail


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