Encontro com a morte

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ENCONTRO COM A MORTE Já no seu primeiro filme, THE ELEMENT OF CRIME, Lars Von Trier situa o seu enredo num forade-lugar onírico (que o cineasta torna «desreal»), não tanto ao nível do cenário construído como acontecia com Tarkovski, por exemplo — a relação entre ambos é nula, excepto no tocante à omnipresença da água — como através do tratamento a que submete a imagem — viragem monocromática. Esta postura de rejeição lapidar da estética realista que, desde a introdução da cor nos filmes, parecia fazer parte integrante da própria essência do media enquanto reprodução fiel do objecto colocado frente à objectiva, é suficientemente rara — exceptuando realizadores que continuam a utilizar o preto e branco, tomando como referência um estado anterior da história do cinema, os cineastas que «trabalham» a imagem no aspecto químico contam-se pelos dedos, de Serge Bard a Raul Ruiz — para chamar logo a atenção. A permanência desta opção nos filmes seguintes, EPIDEMIC e EUROPA, constitui indubitavelmente uma proposta estética inovadora. Ao objecto registado na película acrescenta-se uma dimensão estritamente icónica — quase gráfica — que duplica o sentido da imagem — é o caso do sangue em EUROPA. A dimensão «realista», colocada em paralelo com esta segunda dimensão, perde a prioridade: o processo é flagrante quando o comboio de EUROPA é confrontado com o seu duplo em maquette. O espaço teatraliza-se, ou melhor apaga-se, em proveito do significado dos objectos. Curiosamente, o tempo sofre uma distorção simétrica, em consequência do próprio tratamento da imagem: o fora-de-lugar engendra um fora-de-tempo, i.e. um tempo cujo desenrolar só obedece à progressão dramática, não referenciado pela experiência que dele temos — EUROPA decorre numa noite quase ininterrupta. Ora esta sujeição absoluta do tempo e do espaço aos parâmetros dramáticos traduz-se por um desregulamento da diegese, desorganizada e reorganizada segundo um novo espaço e um novo tempo. Assim, a errância dos dois argumentistas de EPIDEMIC acompanha, sem que eles tenham consciência disso, o alastramento da epidemia de que são simultaneamente testemunhas e agentes. Da mesma maneira, a hesitação do protagonista de EUROPA obriga-o a viver sucessivamente os dois desenlaces possíveis. O princípio é sempre o mesmo: as personagens são movidas por forças que ignoram porque estas são sustentadas pelas suas convicções. THE ELEMENT OF CRIME inspirava-se — embora a fonte não figure no genérico — numa novela de Borges, intitulada A Morte e a Bússola, em que a descoberta de dois crimes e de uma fórmula hermética levam o detective a conceber a hipótese de uma série geométrica de sacrifícios, hipótese que verifica ao descobrir a terceira vítima; esta previsão conduz o protagonista a adivinhar um quarto e último crime, num sítio e a uma hora calculáveis: chegado ao local para evitar o derradeiro sacrifício, percebe que foi vítima duma armadilha inventada a partir da revelação pública da sua hipótese elaborada com base em elementos reunidos por simples acaso, mas que ofereciam ao inimigo a possibilidade de cumprir a sua vingança; em suma, compreende que é a última vítima da sua própria especulação. Este esquema muito abstracto ganha um sentido político fortíssimo em EUROPA ao permitir analisar a cegueira perante a sobrevivência do fascismo e sobretudo das condições socioeconómicas que o engendraram — o filme desenrola-se no fim da segunda guerra mundial como WELCOME IN VIENA (cf. o artigo de Regina Guimarães in A Grande Ilusão nº 10), mas em vez de se debruçar sobre as origens e as consequências históricas dum estado de derrota e de compromisso, como o austríaco Axel Corti, constrói-se sob forma de parábola e projecta a referência histórica na actualidade. Ao fim do percurso — todos os filmes de Trier se apresentam um pouco como «road movies» em que as personagens se deslocam constantemente de tal modo que a deslocação se toma mais marcante do que os lugares, e acaba mesmo (lembremos o comboio de EUROPA que remete para todos os comboios de SHOAH) por se materializar num espaço autónomo —, as personagens vêem-se confrontadas com a sua própria morte. O tratamento da imagem transforma cada objecto num indício a interpretar; o visível é pois mostrado como um enigma a decifrar, mas as personagens só captam aquilo que corresponde às suas expectativas — a «projecção» do espectador, que não pode antecipar-se à da personagem, não coincide necessariamente com ela, nem é sequer mais completa, devido ao sentimento de estranheza, a um hipotético hipnotismo, à obscuridade das emoções para as quais se apela: em EUROPA, o «exame» a que é submetida a personagem perturba


o processo de identificação do espectador que passaria do lugar de juiz à situação de ser julgado (esta posição infantilizante, mais forte do que o julgamento em tribunal, é sempre penosa; recordemos o exame em OS MORANGOS SILVESTRES de Bergman); o desfasamento entre a lógica dos acontecimentos exteriores e a lógica das previsões da personagem só pode ser colmatado com a morte desta última. A morte é justificada do ponto de vista metafísico como a liberdade de sacrificar a ilusão ingénua da nossa consciência cega a uma intervenção directa na trama de uma história cujos fios são manipulados pelos outros, i.e. como a revelação assumida de que os crimes à nossa volta organizados implicaram a nossa participação e de que o logro que nos iliba pode ser desfeito. Por outras palavras, a morte das personagens de Trier convida-nos directamente a rever a nossa percepção do real, a nossa interpretação dos nossos actos. O tratamento da ficção de Trier coloca duma forma muito complexa o problema da responsabilidade. S.


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