ENCONTRO COM JEAN ROUCH SAGUENAIL — Lembro-me de já ter ouvido o relato do teu primeiro contacto com a África e de como começaste a rodar filmes. Gostaria que nos falasses da passagem do olhar do antropólogo sobre algo que estavas a descobrir para um cinema ligado às técnicas do gesto (citando Xavier de France). Nos últimos filmes que vi, tu circulas rigorosamente no meio daquilo que filmas; temos a impressão de estar perante um trabalho próximo da actividade do contador de histórias, daquele que dá conta do mundo à sua volta. JEAN ROUCH — É mais ou menos isso. Para voltar ao ponto de partida, é preciso recordar um contexto que a tua geração ignora e do qual dantes eu também não me apercebia: nos tempos da minha juventude todas essas coisas andavam misturadas. Entre 1920 e 1940, os cineastas, os músicos, os pintores, os cientistas, os matemáticos os engenheiros, etc., faziam parte do mesmo grupo de criadores. Em todo caso, aqueles que se apreciavam mutuamente. E essa conjuntura aconteceu em Paris por razões misteriosas. Descobri muito recentemente que nos Estados Unidos e na Inglaterra, as pessoas conhecem muito melhor uma aventura como a do Artaud do que nós em França. E isso deve-se ao facto de os americanas e os ingleses terem imensos ciúmes do papel que Paris desempenhou no desenvolvimento das artes. Um papel único... Ora, os americanos e os ingleses têm a teoria de que os sobreviventes de uma guerra atroz se encontravam reunidos em Paris e que viviam num país que fora ocupado; atribuem o fenómeno a esse facto singular que não aconteceu em mais parte nenhuma. Todos os surrealistas vieram da guerra. E o importante era estar vivo, logo tudo era permitido. Isso não poderia ter acontecido nem na Inglaterra nem nos Estados Unidos, como não voltou a acontecer em França depois da libertação. Aliás, depois da Libertação, a conjuntura tinha acabado, já só restavam as sequelas do passado. Todas os grupos tinham mudado de rumo. As deportações tinham deixado a marca da destruição. O espírito já não era o mesmo. Eu tive a sorte de entrar na Escola dos «Ponts et Chaussées» em 37. Era a época da exposição internacional. Lembro-me muito bem da minha entrada para a escola de engenharia — que ficava na rua des Saints-Pères, portanto em pleno bairro de Saint Germain des Prés — e de ter visitado a exposição internacional, cujo interesse era porventura discutível, mas no qual havia o novo Museu do Homem e o novo Museu de Arte Moderna. Em frente à Torre Eiffel, encontrava-se o pequeno pavilhão da Catalunha (que era o da Espanha Republicana) com a «Guernica» do Picasso, rodeado pelos edifícios dos alemães e dos soviéticos, entalado entre a foice e o martelo e a cruz gamada. No Teatro dos Campos Elíseos, tinham dado carta branca aos surrealistas que faziam sessões de leitura dos seus poemas. Assistia-se a uma verdadeira explosão poética e artística. Por último, havia a Cinemateca que a gente frequentava e que, nessa época, era por cima do «Marignan». Descobri o Langlois na mesma altura. A sala tinha à roda de cinquenta lugares e as sessões contavam com uma média de vinte pessoas. Se, por acaso, uma pessoa chegava atrasada, podia sentar-se no escuro ao lado de André Gide. Os espectadores não eram muitos mas pertenciam ao mesmo grupo. Há dez ou quinze anos, realizei um pequeno filme na Holanda com o Joris Ivens e o Henri Storck. Nesse filme, perguntava ao Joris como é que eles se consideravam quando tinham rodado os primeiros filmes, BORINAGE, LE PONT, OSTENDE. Perguntei-lhe se eles se consideravam cineastas. O Joris Ivens respondeu-me: «Éramos membros da vanguarda». E o que é que significava a vanguarda? Queria dizer os arquitectos, os músicos, os pintores, os bailarinos, os poetas, os escritores, os cientistas. E citava nomes: começava com o Painlevé e acabava com Le Corbusier. Era uma espécie de grupo internacional que fazia filmes que só passavam nos cineclubes. O cineclube do Joris Ivens chamava-se «A JANELA ABERTA»: uma janela aberta, mas às correntes de ar. Os filmes eram projectados para esse pequeno grupo que se reunia naquele local. Foi assim que nasceu o cinema do entre duas guerras. Lembro-me da surpresa que tive — as memórias são um pouco descosidas mas assim é que deve ser — quando organizámos na Cinemateca uma homenagem ao Marcel Carné que se queixava de que nos esquecíamos sempre dele. Pedimos-lhe que escolhesse um filme para a sessão de abertura. Ele escolheu o NOGENT ELDORADO DU DIMANCHE com a condição que fosse projectado à velocidade exacta, ou seja a 19 imagens. Mostrámos então esse filme que ele tinha rodado sozinho