Encontro com jean rouch

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ENCONTRO COM JEAN ROUCH SAGUENAIL — Lembro-me de já ter ouvido o relato do teu primeiro contacto com a África e de como começaste a rodar filmes. Gostaria que nos falasses da passagem do olhar do antropólogo sobre algo que estavas a descobrir para um cinema ligado às técnicas do gesto (citando Xavier de France). Nos últimos filmes que vi, tu circulas rigorosamente no meio daquilo que filmas; temos a impressão de estar perante um trabalho próximo da actividade do contador de histórias, daquele que dá conta do mundo à sua volta. JEAN ROUCH — É mais ou menos isso. Para voltar ao ponto de partida, é preciso recordar um contexto que a tua geração ignora e do qual dantes eu também não me apercebia: nos tempos da minha juventude todas essas coisas andavam misturadas. Entre 1920 e 1940, os cineastas, os músicos, os pintores, os cientistas, os matemáticos os engenheiros, etc., faziam parte do mesmo grupo de criadores. Em todo caso, aqueles que se apreciavam mutuamente. E essa conjuntura aconteceu em Paris por razões misteriosas. Descobri muito recentemente que nos Estados Unidos e na Inglaterra, as pessoas conhecem muito melhor uma aventura como a do Artaud do que nós em França. E isso deve-se ao facto de os americanas e os ingleses terem imensos ciúmes do papel que Paris desempenhou no desenvolvimento das artes. Um papel único... Ora, os americanos e os ingleses têm a teoria de que os sobreviventes de uma guerra atroz se encontravam reunidos em Paris e que viviam num país que fora ocupado; atribuem o fenómeno a esse facto singular que não aconteceu em mais parte nenhuma. Todos os surrealistas vieram da guerra. E o importante era estar vivo, logo tudo era permitido. Isso não poderia ter acontecido nem na Inglaterra nem nos Estados Unidos, como não voltou a acontecer em França depois da libertação. Aliás, depois da Libertação, a conjuntura tinha acabado, já só restavam as sequelas do passado. Todas os grupos tinham mudado de rumo. As deportações tinham deixado a marca da destruição. O espírito já não era o mesmo. Eu tive a sorte de entrar na Escola dos «Ponts et Chaussées» em 37. Era a época da exposição internacional. Lembro-me muito bem da minha entrada para a escola de engenharia — que ficava na rua des Saints-Pères, portanto em pleno bairro de Saint Germain des Prés — e de ter visitado a exposição internacional, cujo interesse era porventura discutível, mas no qual havia o novo Museu do Homem e o novo Museu de Arte Moderna. Em frente à Torre Eiffel, encontrava-se o pequeno pavilhão da Catalunha (que era o da Espanha Republicana) com a «Guernica» do Picasso, rodeado pelos edifícios dos alemães e dos soviéticos, entalado entre a foice e o martelo e a cruz gamada. No Teatro dos Campos Elíseos, tinham dado carta branca aos surrealistas que faziam sessões de leitura dos seus poemas. Assistia-se a uma verdadeira explosão poética e artística. Por último, havia a Cinemateca que a gente frequentava e que, nessa época, era por cima do «Marignan». Descobri o Langlois na mesma altura. A sala tinha à roda de cinquenta lugares e as sessões contavam com uma média de vinte pessoas. Se, por acaso, uma pessoa chegava atrasada, podia sentar-se no escuro ao lado de André Gide. Os espectadores não eram muitos mas pertenciam ao mesmo grupo. Há dez ou quinze anos, realizei um pequeno filme na Holanda com o Joris Ivens e o Henri Storck. Nesse filme, perguntava ao Joris como é que eles se consideravam quando tinham rodado os primeiros filmes, BORINAGE, LE PONT, OSTENDE. Perguntei-lhe se eles se consideravam cineastas. O Joris Ivens respondeu-me: «Éramos membros da vanguarda». E o que é que significava a vanguarda? Queria dizer os arquitectos, os músicos, os pintores, os bailarinos, os poetas, os escritores, os cientistas. E citava nomes: começava com o Painlevé e acabava com Le Corbusier. Era uma espécie de grupo internacional que fazia filmes que só passavam nos cineclubes. O cineclube do Joris Ivens chamava-se «A JANELA ABERTA»: uma janela aberta, mas às correntes de ar. Os filmes eram projectados para esse pequeno grupo que se reunia naquele local. Foi assim que nasceu o cinema do entre duas guerras. Lembro-me da surpresa que tive — as memórias são um pouco descosidas mas assim é que deve ser — quando organizámos na Cinemateca uma homenagem ao Marcel Carné que se queixava de que nos esquecíamos sempre dele. Pedimos-lhe que escolhesse um filme para a sessão de abertura. Ele escolheu o NOGENT ELDORADO DU DIMANCHE com a condição que fosse projectado à velocidade exacta, ou seja a 19 imagens. Mostrámos então esse filme que ele tinha rodado sozinho


com a mesma câmara que o Boris Kaufman utilizara com o Jean Viga para o À PROPOS DE NICE, a mesma que o Ivens e o Storck utilizaram para o BORINAGE. O Carné contou-nos que tinha começado a montar o filme com os russos, no «Albatros», mas depois tinha arranjado uma moviola nos Campos Elíseos onde trabalhava durante a noite. Na sala de montagem ao lado estava o René Clair. O Carné era crítico de cinema na altura e tinha obtido um prémio a esse título. O René Clair conhecia-o e ficou um tanto espantado: «Com que então agora fazes cinema!?». Então o Carné mostrou-lhe as imagens que estava a montar e o Clair disse-lhe: «Não está mal...». Os encontros deste género eram perfeitamente possíveis. Fazíamos parte da mesma família, uma família muito estranha que, nos anos 30, estava completamente dilacerada pela questão seguinte: «Era ou não necessário inscrever-se no Partido Comunista?». O André Gide tinha voltado da URSS e escrito o livro dele. Eu, que sou de origem catalã, estava absolutamente ao corrente do que acontecia em Barcelona. E o grande movimento de esperança da FAI e da CNT foi desmantelado por quem? Pelo Franco, claro, pelo Mussolini, claro, pelo Hitler, claro... e pelo Staline. Já não havia lugar para pessoas como nós. A partir de 1938, o único militantismo possível era na Federação Anarquista que justamente recusa o militantismo. Éramos aquelas criaturas inquietas que por vezes lamentavam que o Aragon tivesse passado para o outro lado. Soube muito recentemente de uma história paradigmática: no dia da inauguração da lápide de homenagem na casa do Georges Sadoul, o Aragon tinha perdido os papéis, então, improvisou um discurso em que teceu um elogio rasgado ao André Breton — «... o meu único amigo...». Estranhíssimo. E acabou a intervenção com um episódio maravilhoso: durante a Libertação, chegou-lhe aos ouvidos que o Maurice Chevalier tinha umas chatices; como ia participar num meeting, resolveu levar o Chevalier; telefonou aos responsáveis pelo meeting para os prevenir de que chegava com o Maurice e os tipos pensaram que o Maurice em questão era o Maurice Thorez! Este espírito de cumplicidade reinava mesmo nos meios mais fechados como as altas esferas do Partido Comunista. No entanto, partir de 38/39, todos sabíamos que «os amanhãs não cantariam». Costumo dizer que tive a sorte de perder a guerra aos vinte anos. Ora tanto em casa como na escola, tinham-me ensinado que o exército francês era invencível... Apanhámos uma derrota esmagadora e ao mesmo tempo uma grande lição. E dissemos para nós próprios: «Já nada é verdade, portanto tudo é possível». Depois foi o reinado do horror. Acabei o terceiro ano da Escola de Engenharia num Paris ocupado pelos alemães. Eu e um grupo de colegas fomos presos pelos alemães na Bretanha durante um passeio cujo objectivo era comer peixe com pão, manteiga e batatas. Aconteceu em Douarnenez, perto de Quimper. Os soldados julgavam que queríamos fugir para Inglaterra. Fomos salvos por um detalhe revelador: tínhamos fatos de banho molhados com água salgada nas bagagens. Libertaram-nos. Mas depois deste episódio desagradável, decidimos partir para as colónias. Trabalhar nas colónias como engenheiro era conhecer um mundo terrível. Mas foi assim que eu descobri a África. Um ano mais tarde, fui de novo bafejado pela sorte: fui expulso por um governador partidário de Vichy precisamente na altura do desembarque dos americanos. A verdade é que eu já tinha começado a descobrir a África, em condições excepcionais porque a minha missão era construir pontes num país indescritível. Um dia, tive de assistir a um ritual muito importante: a purificação de um fulminado numa das obras de construção que andava a dirigir. Estávamos na era dos «trabalhos forçados» e aconteceu na abertura de uma estrada a alguns quilómetros de Niamey. À minha volta, ninguém queria lidar com o assunto porque é proibido tocar num homem fulminado... Um rapazinho que trabalhava nas Obras Públicas, chamado Damouré Zika, disse-me: «Esse assunto é com a minha avó!». E, de repente, eu penetrei num mundo maravilhoso onde assisti a um dos rituais mais extraordinários e mais horríveis que me foi dado ver: a avó do rapaz purificava os fulminados cuspindo leite para os cadáveres calcinados; logo a seguir, organizava um ritual de possessão no decorrer do qual se perguntava «porquê» ao Génio do Trovão. E eu fui imediatamente acusado porque estava a construir uma estrada que passava pelo «caminho do Dongo, o Deus do Trovão». Não me tinham ensinado nada sobre aquilo na Escola dos Ponts et Chaussées. Era mais do lado do Peter Ibbetson ou para as bandas da Cinemateca que eu podia pescar qualquer coisa. Era no domínio do imaginário que eu podia achar algo parecido. E foi assim que eu assisti a um ritual que me revelou o segredo do teatro: pessoas que mudavam efectivamente


de personalidade. O que é preciso fazer, que meios são necessários para dar conta dum espectáculo como aquele? Fiquei literalmente estupefacto mas compreendi logo que só um filme podia registar essa «mudança a olhos vistos» de alguém que se transforma noutra pessoa em condições tão dramáticas como aquelas. O ponto de partida do meu trabalho é essa interrogação. Comecei a interessar-me pelas pessoas que via e que trabalhavam comigo. As Obras Públicas foram condenadas ao sacrifício de um touro preto pelo Génio do Trovão porque tinham invadido o seu território. Eu não percebia o que tudo aquilo queria dizer. O que significava «o caminho do Dongo»? Fiquei com vontade de saber mais sobre o assunto. Quando cheguei a Dakar, dirigi-me a Théodore Monod que era o responsável pelo Instituto Francês da África Negra e me tinha oferecido asilo no Instituto onde havia uma grande biblioteca. O Monod aconselhou-me a leitura d uma série de livros. É evidente que eu já tinha visitado o Museu do Homem e conhecia as obras do Griaule... mas o mundo com que eu tinha deparado era completamente singular. Tivera o cuidado de redigir uma pequena nota sobre uma outra cerimónia que ocorrera depois da primeira, à beira-rio; dessa vez a vítima fora um pescador e ninguém sabia se ele tinha morrido afogado ou fulminado. Também tinha tirado umas fotografias que enviara ao Griaule, para o Museu do Homem, por intermédio do editor dele. Isto passou-se no mês de Agosto de 1942. Um mês depois, recebi uma carta do Griaule em que ele me fazia a seguinte pergunta: «Se a vítima fosse um afogado, teria o umbigo e as narinas cortadas?». Voltava a mergulhar no imaginário... Fui visitar a avó do Damouré Zika que me respondeu: «Se sabes tantas coisas, porque é que me vens fazer perder tempo?». Ora, eu sabia que o Griaule só tinha trabalhado na região de Mopti, o que implicava que a questão que ele me colocara era pertinente a mais de 1000 km de distância do seu local de observação. Significava que havia no domínio das ciências humanas, sistemas de pensamento que nos escapavam completamente. E ainda hoje estou sem saber por que é que os afogados haviam de ter o umbigo e as narinas cortadas. A avó do Damouré tinha-me contado uma história para me abrir algumas perspectivas: uma das serpentes do Génio da Água tem uma cauda com uma espécie de garra; essa serpente enfia a sua língua bífide nas narinas do afogado para lhe chupar o sangue agarrando-se com a tal garra caudal ao umbigo para penetrar. Pronto: é racional, é notável! Mas não explica nada! Em todo o caso, o cinema não podia desempenhar papel nenhum no respeitante ao umbigo e às narinas. E no entanto vinha na linha directa do testemunho do Joris Ivens sobre a vanguarda dos anos vinte que misturava descaradamente a ciência, a poesia e o imaginário. Profundamente absorvido por estas descobertas, fiquei em Dakar a preparar a segunda etapa da guerra. O Monod era enciclopédico! Não era nada a área dele, ele era ictiólogo, mas tinha fundado um Instituto. Pouco a pouco, durante aquele ano de preparação da guerra, fui adquirindo uns certos conhecimentos de etnologia. Depois de ter desembarcado no sul de França e de ter construído uma ponte sobre o Reno — tínhamos treinado em Saint Louis quando lançámos uma ponte de barcas sobre o rio Senegal, o que só prova que o imaginário voltou a ser útil —, fui parar a Berlim em Agosto de 1945 e fui desmobilizado em Outubro. O Paris do pós-Libertação era um lugar horrível. A França tinha sido libertada por um exército de mouros e de pretos. Houvera uma mobilização geral na África Negra e no Maghreb. O De Gaulle tinha previsto apenas dez divisões francesas; logo, o grosso das tropas fora reunido nos países árabes e negros. Da minha geração oriunda da Escola dos Ponts et Chaussées éramos vinte. Dois morreram na guerra, três foram levados como prisioneiros e só quatro participaram na Libertação. Os nossos camaradas, bem instalados na vida, perguntavam-nos: «Que raio é que vocês foram fazer para África?» Procurei trabalho como engenheiro junto dum antigo aluno da Escola e ele quis saber o que é que tinha feito durante quatro anos. Respondi-lhe: «Andei na guerra!». Que tempo perdido! E nós próprios sentíamos que estávamos um pouco perdidos. Foi aí que eu e os tais companheiros com quem tinha sido detido na Bretanha decidimos só fazer aquilo de que gostávamos. Resolvemos passar uma licenciatura de filosofia porque achávamos que éramos um bocado ignorantes nessa matéria e voltámos a partir para África com o projecto de descer o rio Níger de piroga. E foi assim que começámos a fazer cinema. Não sabíamos bem no que nos estávamos a meter... comprámos uma câmara — uma Bell Howell na feira da ladra — e


passámos nove meses no Níger. Para sobrevivermos, inventámos uma personagem imaginária chamada Jean Pierjan que era um «grande repórter». A três escrevíamos os textos. O Jean Sauvy procurava nas revistas americanas os temas para os artigos. Eu imaginava a encenação e o Pierre Ponty, que tinha uma boa pena, escrevia. Rapidamente, o Jean Pierjan começou a ter muito sucesso. Tínhamos um contrato com a A.F.P. (Serviço de Features da France-presse) e por toda a parte do mundo (talvez mesmo em Portugal) os nossos artigos eram publicados. Falávamos de temas tão diversos como «Será necessário construir barragens?» ou «Avarias de electricidade em Paris» ou «O contrabando no Piemonte» ou ainda «O Carnaval de Nice» com uma desenvoltura notável... e a receita funcionava. Quando decidimos descer o Níger, partimos com um grupo que existia no Museu do Homem — apadrinhado pelo Leroi-Gourhan e pelo Griaule — chamado «grupo Lyotard» da sociedade dos exploradores. Tínhamos conseguido junto do Tillon, ministro da guerra, dois aviões militares para transportar os jovens extravagantes até África — é exactamente a história que o Jacques Becker contou em LES RENDEZ-VOUS DE JUILLET. Esse filme somos nós. Os camaradas que abalaram para a terra dos Pigmeus tinham grandes ideias para realização de filmes... eram terrivelmente profissionais. Levaram com eles um dos primeiros aparelhos de gravação em disco mole Pyral para registar a música dos Pigmeus. E o Dupont, que acabara de sair do IDHEC, tinha escrito um argumento sobre os Pigmeus que nunca vira. Quando os Pigmeus matavam um gorila, os bons rapazes não queriam filmar porque a cena não estava prevista no argumento. Mas apesar de tudo, no fim da aventura trouxeram um filme com o primeiro som real gravado na África Negra... Nós só dispúnhamos de uma câmara pequena que não gravava som, mas tínhamos uma vantagem sobre eles: um contrato com a AFP que comprara a exclusividade dos nossos artigos. Durante nove meses, vivemos da nossa pena e das nossas fotografias. E tínhamos adquirido material rudimentar de revelação. Púnhamos a película a secar na ponta de um pau comprido para evitar as moscas e os mosquitos. Possuíamos também um aparelho para ampliar que funcionava com pilhas. Revelávamos as fotografias, batíamos os textos à máquina e mandávamos um artigo de dez em dez dias. Éramos generosamente pagos. Com esses rendimentos, vivíamos como príncipes quando toda a gente nos tinha dito que era impossível viajar assim. Beneficiávamos da protecção do Instituto Francês da África Negra para o qual éramos personae gratae. Realizámos uma reportagem e, ao mesmo tempo, descemos o Níger. Foi assim que escolhi o meu terreno de observações, no norte da curva do Níger onde já tinha trabalhado. O Jean Sauvy estudava Geografia Humana, preparava uma tese muito interessante intitulada «Níger, artéria económica»; o Pierre Ponty tirava fotografias e eu escrevia... Infelizmente o nosso grupo desmembrou-se por razões alheias à nossa vontade. O desgraçado do Ponty teve um abcesso nos dentes em Tombuctu e foi preciso expatriá-lo dum dia para o outro. Ao descermos os rápidos no norte da Nigéria, a tese do Jean Sauvy que estava entalada no tecto de palha da piroga caiu à água. O meu companheiro limitou-se a declarar que nunca mais faria tese nenhuma. E eu acabei por ficar sozinho com os apontamentos e as fotografias que tinham escapado. Voltámos pois para Paris, um tanto desorganizados, ao cabo de nove meses de uma viagem aventurosa durante a qual eu tinha rodado um filme. Tivemos a sorte de perder o nosso tripé nos primeiros rápidos das montanhas da Guiné, portanto fui obrigado a segurar na câmara à mão (fizemos alguns exercícios para manter uma certa estabilidade...). O único livro de cinema que eu tinha — para além do conhecimento dos filmes que o Langlois nos apresentara na Cinemateca — era «A inteligência duma máquina» do Epstein. Para rodar filmes naquelas paragens era preciso confiar mesmo na inteligência da máquina. Por exemplo, filmámos uma sequência de dentro da piroga; alternámos as tomadas de vista à direita com as tomadas de vista à esquerda; no fim, o resultado era praticamente impossível de utilizar, exceptuando um bocadinho de filme em que registámos uma caça tradicional ao hipopótamo. É aqui que entra em cena aquilo a que eu chamaria o mito do «Lorientais». O «Lorientais» era uma das primeiras caves de jazz de Saint Germain onde tocava uma orquestra «New Orleans»: «Claude Luter e os seus Lorientais». Aconteceu uma coisa estranhíssima. Montei o tal filme que se intitulava CHASSE À L'HIPPOPOTAME AU HARPON; durava 30 minutos em 16mm preto e branco. Mostrei-o no Museu do Homem às pessoas com quem andava a preparar a minha tese (havia o


Griaule, o Leroi-Gourhan, o Lévi-Strauss, o Leiris, etc.). E eis que o Leroi-Gourhan decidiu organizar no Museu os primeiros encontros internacionais de filmes de geografia e etnografia. Seleccionou o meu trabalho e propôs que o fôssemos projectar ao «Lorientais» porque o filme mostrava uma dança de possessão. Os jovens dançarinos frequentadores do local ficaram encantados. Aconteceu um milagre: o pianista, Christian Azzi, veio ter comigo para me dizer que o pai dele era director das «Actualités Françaises» e talvez estivesse interessado no nosso filme. Fomos ver o papá do pianista que visionou o filme e emitiu o seguinte comentário: «Isto é feito com os pés mas parece-me interessante. Não é possível montá-lo porque é em 16mm!». Eu tinha colado as imagens umas a seguir às outras num pequeno laboratório do Ministério da Agricultura. Não havia moviola; colávamos à mão; nem sequer dispúnhamos duma visionadora; depois de coladas, as imagens eram directamente projectadas com um velho aparelho de 16mm (e foi aí que eu descobri as sequências impossíveis de montar por causa da alternância direita esquerda); trabalhei com uma excelente montadora, uma senhora velhota que fazia filmes sobre o cultivo dos tomates no Aveyron... O director das Actualités Françaises sugeriu que ampliássemos o filme para 35mm. Depois, montou as imagens, sonorizou-as, mandou redigir um comentário a partir dos meus apontamentos; escolheu o acompanhamento musical e o título. Ao material que eu lhe forneci, acrescentou ainda elementos que foi buscar à Cinemateca. Ofereceu-nos 40% das receitas. Óptima surpresa! Perguntámos-lhe se nos podia conceder um adiantamento. Acedeu ao nosso pedido e avançou-nos uma soma jeitosa para a época. Ficámos inchados de vaidade, mas não nos foi permitido assistir à montagem. O filme chamava-se AU PAYS DES MAGES NOIRS com um comentário off no estilo da volta à França em bicicleta. Que vergonha! Nunca me atrevi a mostrar esse filme em África mas o que é certo é que aquele trabalho de amador passou no circuito comercial... quando me lembro, acho que foi um milagre. O milagre da música da Nova Orleães. E o mais inconcebível é que o produto teve êxito como complemento de programa do STROMBOLI. E foi assim que o Rossellini descobriu a África. Em 1951, decidi voltar a fazer esse filme, rodado em 1947. Portanto voltei a filmar uma caça ao hipopótamo, quatro anos mais tarde, que se intitula BATAILLE SUR LE GRAND FLEUVE. Entretanto passei do preto e branco para a cor e utilizei Kodachrome. Não podia deixar de repetir aquele trabalho. Avancei a minha tese. Voltei em missão para África donde trouxe outros filmes a cores que apresentei no Museu do Homem. Na sessão estava presente o Doniol-Valcroze que era amigo do Gilbert Rouget; andava a preparar o Festival do Filme Maldito em Biarritz, com o Jean Cocteau e o Henri Langlois, e seleccionou um filme chamado INITIATION À LA DANSE DES POSSÉDÉS. Durante a projecção, eu próprio fazia o comentário. O filme obteve o prémio do documentário, o grande prémio foi atribuído a LE DEUIL SIED À ÉLECTRE de Dudley Nichols. Foi em Biarritz que me encontrei lado a lado com pessoas da família do cinema como o Bazin (acompanhado por um rapazinho chamado François Truffaut), como o Braunberger e como o Tacchella. Vimos os primeiros desenhos animados de MacLaren. Havia o René Clément... cruzamentos bastante curiosos. O Clément ficou particularmente excitado com o meu documentário porque, depois da guerra, tinha começado a rodar, em 16mm Kodachrome, um filme sobre a rainha de Sabá... Com o meu primeiro trabalho sobre a caça ao hipopótamo tinha sido aceite pela família dos antropólogos. Em Biarritz passei a fazer parte da família do cinema de vanguarda. O Cocteau, que aliás ainda não tinha visionado o meu filme, apresentou-o nestes termos: «Graças a este jovem, ides ver pela primeira vez a África a cores». Para continuar a responder à vossa pergunta, preciso de voltar um pouco atrás. O meu primeiro documentário foi escolhido pelo Rossellini; como não tinha podido assistir à montagem descobri AU PAYS DES MAGES NOIRS ao mesmo tempo que o STROMBOLI O resultado era medonho — tinham acrescentado panteras, leões, elefantes, etc. —, mas o filme estava muito bem montado pelos tipos das Actualités Françaises... Sobretudo tinham feito uma opção interessante: puseram a cena da possessão no fim. A colocação da cena tornava-a muitíssimo dramática. Foi uma grande lição para mim, tanto mais que a montagem era o aspecto que eu menos dominava. Imaginem que o Langlois assistiu à estreia do meu filme com o Roberto Rossellini e que toda a turma da rua d'Ulm estava naquela sala!


A princípio, o meu trabalho foi marcado por meandros aventurosos e por uma forte intervenção do acaso. Mas eu tinha escolhido uma área que me era de certo modo familiar. Todas as pessoas da minha família fotografavam e pintavam. Pintavam coisas porventura abomináveis mas... havia o gosto pelo desenho. E os nossos hábitos de leitura estavam muito enraizados. Eu devorei «O Surrealismo ao Serviço da Revolução» e visitei as exposições do grupo surrealista. No Dôme, dávamos de caras com um tipo de bigodes arrebitados: era o Salvador Dali. Em Paris senti-me parte integrante dum pequeno grupo que parecia partilhar os mesmos gostos, as mesmas paixões. Era o grupo que ia ouvir o Louis Amstrong à sala Pleyel que estava quase às moscas, um bando de sujeitos bizarros. Mais tarde, na Escola dos Ponts et Chaussées, as pessoas que nos ensinavam consideravam que uma ponte é uma obra de arte. E diziam-nos: «Vocês chegaram tarde demais. Já foi tudo descoberto. Não podem inventar nada, só podem aplicar os nossos métodos». Em 1937, no meu primeiro ano, conheci um tipo maravilhoso, um professor de matemática: o Albert Caquot. Era o ano da inauguração da ponte do Golden Gate em S. Francisco. O Caquot, que era o campeão da resistência dos materiais, disse-nos: «Esta ponte americana é a mais bela do mundo e, ao mesmo tempo, a mais conseguida. É um exemplo da arte do engenheiro que consiste em utilizar o mínimo de materiais para obter o máximo de resistência». E era isso que nos ensinavam. E acrescentou: «0 nosso método é sempre o mesmo: procedemos por aproximações sucessivas. Há demasiadas incógnitas. Portanto quando fazemos cálculos para conceber uma ponte teórica, apercebemo-nos de que não funciona». Nessa época não havia computadores, trabalhávamos com gabinetes de estudos e o processo demorava meses. A ponte americana foi calculada para tornar realidade o projecto de um engenheiro louco, com histórias terríveis à mistura de vento, de marés e tempestades... Um dia o Albert Caqui foi chamado aos Estados Unidos como conselheiro porque havia uma pequena ponte suspensa que fora prevista para uma carga útil de 10 toneladas e sobre a qual, durante vários anos, passaram camiões de vinte e cinco toneladas. Os americanos não sabiam se haviam de a demolir ou de proibir a circulação. Ao analisar o caso, o Caquot apercebeu-se de que tinha sido um processo gradual: começaram por passar camiões de onze toneladas, depois de doze e assim por diante. Então, um dia estava ele no hotel em pleno devaneio, inventou uma teoria: talvez a matéria submetida a esforços alternados e crescentes se habituasse a resistir, como os desportistas que melhoram progressivamente as suas performances. E contou-nos — não sei se é pura verdade mas é tão bonito... — que tinha ido comprar arame e uma caixa de pesos para fazer uma experiência. Com 5 kg o fio partia. Portanto ele experimentou com 4 kg, depois com 4,5 kg... gradualmente foi subindo na escala dos pesos e, por aproximações sucessivas, conseguiu encontrar uma explicação racional para o «mistério» da ponte suspensa. Esta teoria do Caquot marcou-me profundamente. Eu monto os meus filmes por aproximações sucessivas. E muitas vezes começo pelo fim como ele. Primeiro constrói-se a ponte, depois calculase. Se não ficar bem, volta-se ao princípio. Este tipo de raciocínio não é apanágio duma certa casta profissional. Eu adorava o Matemática. O meu sonho era entrar na Escola Normal Superior. Porém não fui admitido nessa Escola aliás admirável. Mas gostava muito de ter estudado Matemática porque o estado de espírito é o mesmo. O meu forte eram as demonstrações, as soluções elegantes para os problemas. Os meus colegas, pelo contrário, eram muito marrões... Infelizmente, não tinha qualidades suficientes para passar o Concurso da Escola Normal Superior... tive que optar pela Escola dos Ponts et Chaussées. E, no fim de contas, foi óptimo porque tive a oportunidade de conhecer o Mestre Caquot. S. — Gostava de te colocar outra questão de ordem geral mas que talvez nos permita encadear. Desde que te conheço, vejo-te um pouco como o Africano na Europa. Mesmo a ideia de tratar, com o Edgar Morin, um grupo social europeu com um olhar próximo daquele com que o especialista descreve o quotidiano em África... Ou ainda aquela cena inesquecível no PETIT À PETIT... J. R. — A dos dentes? S. — Exactamente. Como é que se deu essa viragem?


J. R. — É muito simples. Depois da catastrófica aventura da II Guerra Mundial, fui parar a África. A minha descoberta da África tinha sido interrompida pelo regresso a França na Libertação. Cheguei a Paris e percebi que não estava em sintonia com as pessoas da minha geração, excepto com a gente que trabalhava no Museu do Homem e com a que frequentava a Cinemateca. Mas não tinha propriamente vontade de me «lançar» no cinema... parecia-me um bico-de-obra. Portanto voltei para África, naturalmente, para fazer uma tese. E continuei o meu trabalho de descoberta sempre no mesmo lugar. Levei a minha câmara e rodei pequenos filmes. Em 1953, defendi tese e entrei para o CNRS. Segui o conselho do Griaule: «Quando fores doutorado, lá não corres riscos. Podes pedir dinheiro ao CNRS para fazer um inquérito sobre o papel higiénico no mundo... e dão-te dinheiro com certeza». A verdade é que me davam pouco dinheiro, mas chegava para comer. Não me considero um modelo quando falo de formação de pessoas. De facto, tive a sorte de possuir uma profissão logo à partida. Nunca passei fome. Com o diploma dos Ponts et Chaussées, aos 20 anos eu sabia que nunca passaria fome. O resto eram hobbies e, se uma pessoa conseguir introduzir muitos hobbies na sua vida profissional, é o ideal... Quando escrevi a minha tese sobre os sistemas religiosos daqueles povos — sistemas esses que para mim continuam a ser assaz misteriosos — foi uma espécie de desvio... Foi o Génio do Trovão que me desviou do bom caminho. Um dos filmes que realizei — INITIATION AUX DANSES DES POSSÉDÉS — foi rodado durante uma viagem de 4000 Km a cavalo. Os meus companheiros de estrada eram os mesmo de sempre: o Zika e o Lam... Descobri a região a cavalo quando normalmente deveria ter visitado aquele território com dois camiões para construir estradas. Descobri sistemas religiosos surpreendentes e incompreensíveis. Não era de maneira nenhuma um regresso às origens, não era o Katmandu dos hippies de Berkeley. O meu velho fundo libertário e blasfematório protegeu-me. O problema quando se faz este género de pesquisa é não entrar na religião. Evitar a conversão. Foi o caso de pessoas de quem eu gostava muito, do Pierre Verger, por exemplo, que era um dos fotógrafos mais brilhantes da «Magnum». Partiu para o Brasil com o projecto de fazer fotografias na Baía e foi apanhado pelo candomblé do Xangô (o génio Toruba do Trovão). Foi seduzido por uma velhota, que era a mestra do candomblé, e converteu-se. Aliás, ficou no Brasil visto que ainda mora na Baía. A partir de então, abandonou a fotografia e — tinha feito estudos de Etnografia e trabalhava como fotógrafo para o Museu do Homem — a pesquisa etnográfica porque se comprometeu a não revelar certos segredos relativos àqueles conventos bastante fechados. E parece que está muito feliz assim. Acabou como director de investigação, reformado com uma modesta pensão do CNRS, e vive num pequeno bairro da Baía. Ou seja, continua a acompanhar as manifestações religiosas mas como participante. Eu assisti a muitos rituais religiosos sem perceber nada: nunca fui possuído. Talvez a câmara tenha funcionado como barreira protectora ou talvez o meu velho racionalismo me tenha mantido à distância. A maneira como os participantes nas cerimónias se comportavam era a meu ver extraordinária. As aventuras em que me meti, acompanhado pelos mesmos amigos de sempre, comportavam grandes riscos. A caça ao hipopótamo com arpão ou a caça ao leão com arco, por exemplo, eram muito arriscadas. Durante as rodagens, entrava no jogo. Se um tipo me dizia: «As espingardas são proibidas porque o leão sente o cheiro do ferro», eu respondia «OK, não há armas». Se me dizia «Olha aquela pedra. Se a pendurares à volta do pescoço, tornas-te invisível para o leão», respondia-lhe «Mas eu vejo o leão» e ele retorquia «O leão não vê como nós»; punha logo o colar de protecção à volta do pescoço porque, em caso de acidente, o caçador não podia acusar-me de ter desobedecido às regras. E segui esta conduta durante os seis anos que durou a rodagem do filme LA CHASSE AU L1ON À L'ARC. Não é uma atitude muito normal andar a correr atrás dos leões com flechas envenenadas mas aprendi coisas formidáveis. A minha vida foi sempre marcada pelas mesmas incidências: de facto, segui o acaso objectivo. Em Maio de 1968, andava eu atrás dum leão particularmente temível chamado «o Americano». A dada altura, matámos a fêmea desse leão. E, quando se mata uma presa, come-se a carne. Portanto os caçadores comeram a leoa e eu também, embora tivesse sido matada com flechas envenenadas. Os caçadores dizem que é óptimo contra o reumatismo. Foi a comer essa leoa que eu tive notícias pela rádio dos acontecimentos em Paris e soube que as polícias tinham invadido a Sorbonne. Então despedi-me dos companheiros de acção: «Adeus, camaradas,


vou ver o que se passa na minha terra»... Cheguei a Paris e entrei em 68 como quem entra numa caça ao leão: encantado! Depois de ter corrido mundo, descobri uma juventude francesa interessante. Acrescento, em relação ao problema da carne e das flechas envenenadas, que é exactamente como com a história da ponte do Caquot: há uma explicação racional. As sementes de estrofantos que servem para fabricar o veneno das flechas contêm um alcalóide que faz parar o coração mas que, ao mesmo tempo, pode estimulá-lo. Quando o leão é atingido por uma flecha morre em 20 minutos. Durante esses 20 minutos, o bicho não está nada contente, cheio de adrenalina e de furor. Penso — pelo menos é uma hipótese maravilhosa — que, como num verdadeiro pequeno laboratório de farmacopeia, a mistura da adrenalina com o alcalóide vai parar ao sangue do leão e ao comermos a carne do bicho a tal mistura, numa dose homeopática, produz certamente um efeito físico e mental. O que não quer dizer que eu vá matar um leão cada vez que não me sinto bem. Mas devia propor a ideia a algum especialista de farmacopeia; ir a um Jardim Zoológico, abater um leão velho com estrofanto para poder ser comido depois... ou para o vender a uns americanos meio senis... No decorrer da minha existência houve acontecimentos um pouco mágicos: o facto de ter sido detido pelos alemães em Douarnenez, por exemplo, foi determinante. E, a propósito, vou-vos contar um episódio que completa a história da detenção. Um dia fui apresentar os meus filmes a Quimper, por iniciativa da Cinemateca, no âmbito dum programa chamado «os ecrãs da liberdade». Pedi a um dos responsáveis da organização para rever a ponte de Douarnenez. Respondeu-me que íamos almoçar ao local, e eu contei-lhe a minha detenção. Ele achou a história engraçada e explicou-me que o presidente da câmara, um antigo resistente, decerto gostaria imenso de ouvir a minha aventura. Visitei a minha ponte e lá fui falar com o presidente. Expliquei-lhe que tinha sido preso por um oficial que falava bastante bem francês, mas não de forma perfeita; ele perguntou-me se o oficial se chamava Dreyfus. Estranha pergunta... Com um nome assim, não devia ser fácil fazer parte das S.S.; quando especifiquei que tínhamos sido salvos porque o oficial mandara buscar os nossos fatos de banho molhados com água salgada ao hotel, o presidente disse-me que também tida sido preso pelo tal Dreyfus. O Dreyfus estava apaixonado por uma bretã que vivia do outro lado da ponte e ajudara a salvar a maior parte dos resistentes. O pormenor da água salgada fora um mero pretexto para não ser denunciado pelo soldado. É incrível! Toda a minha vida é uma trama de encontros como este. Talvez a minha fé no acaso objectivo me tenha levado a enveredar pelas sendas que me foram aparecendo e eu tenha aproveitado todas as ocasiões para me desviar da estrada principal... Voltando à questão que levantaste: vivi muito tempo em África e, até 68, sentia-me cada vez menos interessado por tudo o que se passava em França. Quando em 1960, o Edgar Morin me convidou para realizar CHRONIQUE D'UN ÉTÉ, eu ignorava tudo sobre a minha etnia: os parisienses. Não tinha propriamente desprezo por eles (aliás apreciava muito a fila dos maus alunos da rua d'Ulm — Truffaut Godard, Rivette, Rohmer — que eram muito melhores do que eu em cinema) mas mantinha uma relação distante... O Langlois tinha-nos dito que para fazer um filme, era preciso ter visto 300 filmes. Se fôssemos regularmente à Cinemateca, podíamos ver 300 filmes num ano... Em 1960, eu tinha acabado de rodar LA PYRAMIDE HUMAINE... um filme esquisito que foi proibido. Acontece que tive uma série de filmes proibidos: MOI, UN NOIR; LES MAITRES FOUS... e isso marca, apesar de tudo... Mas nunca fui obrigado a parar porque era pago pelo CNRS. S. — O facto de proibirem os teus filmes, colocava-te automaticamente numa posição de resistência? J. R. — Olha, para falar desse assunto, preciso de abrir mais um parêntese. LES MAITRES FOUS, que eu tinha realizado em 1954, provocara um grande escândalo. Apresentei-o no Museu do Homem, numa das primeiras reuniões do filme etnográfico por nós organizadas. Fiquei dentro da cabine de projecção e improvisei um comentário. Na sala subiam rumores... uma tempestade. Quando fui ter com o público, as pessoas estavam furiosas. O meu professor, o Marcel Griaule, aconselhou-me a destruir o filme imediatamente. Grande escândalo! Na sala estava o Paulin Wyera que viria a ser o criador do cinema senegalês, produtor do Sembene Ousmane, e que fora o primeiro estudante africano no IDEHC. Também estava de acordo com o Griaule e achava que era preciso


destruir o filme. O Luc de Heusch, realizador e professor em Bruxelas, foi o único a defender o meu trabalho. Encorajou-me a não me deixar influenciar e a conservar o meu filme: «Daqui a dez anos, vai ser um clássico!». Apanhado de surpresa, não sabia muito bem o que fazer. O meu filme era claramente rejeitado. Eu já tinha defendido a tese mas gostava muito do meu orientador, o Griaule. Reflecti maduramente sobre o caso e percebi por que é que toda a gente condenava aquelas imagens: os africanos rejeitavam-nas porque eu mostrava africanos a matar um cão coberto de baba e sangue (imagem «negativa» da África Negra) e o Griaule rejeitava-as porque continham o retrato dele, o retrato do branco. O filme incomodava ambas as partes. Por essa altura, o produtor Pierre Braunberger, que conhecia os meus filmes e me conhecia pessoalmente, pediu-me para visionar todos os trabalhos que eu tinha realizado. Estava acompanhado pelo Jules Dassin, que era amigo dele e regressava de Nova Iorque. O Braunberger tinha-o convidado a ver os rushes «dum tipo de quem ele gostava e que acabava de chegar de África». Mostrei-lhes duas horas do JAGUAR mudo, o MAMMY WATER e LES MAITRES FOUS. As projecções eram seguidas de discussões encantadoras. Visionávamos dentro dum armazém onde tínhamos improvisado uma sala de projecção e depois saíamos e discutíamos ao sol. O Dassin perguntou-me o que eu ia fazer com o JAGUAR na medida em que não havia diálogos; achava que não se podia resolver o problema introduzindo um comentário... Respondi-lhe que ia voltar a África, projectar os filmes para as pessoas e pedir-lhes para improvisarem um comentário... A opinião dele era que o MAMMY WATER era bom, que era preciso guardar o JAGUAR durante dez anos, e principalmente que era imprescindível conseguir fazer de LES MAITRES FOUS um grande filme. Só que não conseguia imaginar muito bem como é que eu ia montar o material. O Braunberger propôs-me ampliar as imagens para 35 mm e arranjar uma boa montadora. Nenhum plano durava mais de 25 segundos e era preciso reconstituir uma continuidade. Regina Guimarães — O mais espantoso é que as imagens desfilam perante os nossos olhos e nunca temos a impressão de uma acção lacunar. Temos mesmo a sensação de estar a assistir ao ritual. J. R. — Trabalhei com a Suzanne Baron que tinha acabado de montar AS FÉRIAS DO SENHOR HULOT com o Tati. Todo o material foi ampliado para 35 mm e o som foi transcrito. Seguindo a ordem do som, tomando por referência o barulho da câmara e examinando atentamente a acção, reconstituímos a sucessão dos planos. Íamos buscar um bocadinho de som antes ou depois. Montámos respeitando a ordem cronológica da rodagem — visto que o filme foi rodado durante um dia — e acrescentámos uma apresentação e uma conclusão. A bem dizer, reconstruímos a sequência utilizando ruídos reais mas que não eram verdadeiramente síncronos. E chegámos a uma duração de 1 hora aproximadamente. Nessa altura, a Suzanne Baron fez-me notar que as pessoas falavam e expliquei-lhe que se exprimiam em língua Haouka. Eu tinha tentado traduzir o que as pessoas diziam mas o Haouka não é propriamente uma língua, é uma glossolalia. É uma língua de «Pentecostes», uma língua artificial. Monkayla-du-sel, «o homem tranquilo», garantiu-me que era capaz de traduzir tudo o que era dito. De facto, interpretava. E interpretou-nos as frases das quais tomámos nota: toda a torrente de palavras, o telegrama-carta, a «round table conference». O comentário era uma interpretação do que as pessoas diziam. Com esses elementos montámos o filme seguindo o esquema da tradução. O milagre da Suzanne Baron foi ter conseguido reconstituir a continuidade. No fim, só faltava gravar o famoso comentário. Eu conhecia bem o filme porque tinha trabalhado nele plano a plano, palavra a palavra. Decidi gravar directamente à medida que visionava. Levei um texto escrito mas estava tão à vontade que podiam ter apagado as luzes. Gravei 50 minutos sem interrupções. Só parámos a projecção para voltar a carregar. Disse literalmente o filme em cima duma glossolalia. Com um medo terrível de me enganar nos nomes das pessoas e pormenores desse género. Tinha receio de dar erros de pronúncia e de cometer incorrecções linguísticas mas fui ajudado pela emoção. Só na parte final é que meti um bocado os pés pelas mãos. Fizemos uma transcrição para 35 mm e, a partir do comentário gravado, trabalhámos de novo a montagem até o filme chegar à sua duração definitiva. LES MAÎTRES FOUS acabou por sair e teve um prémio em Veneza. O Braunberger fez do filme o complemento de programa de A NOITE DO CIRCO do Bergman que estreou no cinema La Pagode.


R. G. — Estiveste sempre em boa companhia... J. R. — Mas, quando o filme estreou comercialmente, voltou a provocar escândalo. O filme foi sempre estranhamente recebido. A causa da rejeição permanecia: as pessoas não podiam aceitar aquela imagem de si próprias. Mantive-me sempre em contacto com a gente do cinema. Sempre tive boas relações com a família do cinema. A estreia de LES MAÎTRES FOUS foi particularmente marcante na medida em o filme mostra uma cultura vista por outra cultura. Em relação à cultura francesa adquiri o «olho negro». Foi por isso que o Edgar Morin me pediu para fazer a CHRONIQUE D'UN ÉTÉ. E nessa época descobri com prazer e espanto o grupo de pessoas que participam no filme. A princípio, o Edgar queria fazer um fresco sociológico. Eu apercebi-me rapidamente dos estreitos laços de amizade que o ligavam aos seus protagonistas. Não se tratava de maneira nenhuma de uma amostra aleatória: eram os amigos dele. Ele era uma espécie de padre daquela freguesia. Mas é verdade que os nossos «actores» eram personagens estranhas. Não tardámos a mudar de rumo porque o que se revelava interessante era o percurso de cada um. Tínhamos partido do princípio que a guerra da Argélia ia acabar durante aquele verão. E isso também não aconteceu. Portanto o projecto passou a ser a crónica de um verão. A rodagem foi um momento absolutamente singular porque a vida de cada personagem foi de todo em todo perturbada pelo filme. Completamente modificada. A montagem foi muito difícil de levar a bom termo. A aventura da rodagem apaixonou-me: por um lado, entrei pela primeira vez no «verdadeiro» cinema posto que o nosso produtor era o Anatole Dauman; por outro, descobri personagens diferentes. O Dauman queria que rodássemos em 35 mm mas eu preferi filmar em 16 mm e apercebi-me rapidamente de que os operadores de imagem franceses eram incapazes de andar com uma câmara a mexer. Tinha conhecido um cineasta canadiano Michel Brault num seminário Flaherty em Los Angeles. O Michel tinha-me contado como trabalhava e em especial como utilizava os novos microfones. Pedi-lhe que viesse filmar para mim, convite que muito perturbou os técnicos franceses: mandar vir um canadiano porquê? Ora ele introduziu imediatamente métodos de rodagem que nós ignorávamos como a utilização de «grandes angulares» e de «microfones de lapela». O primeiro plano que filmámos com o Michel foi o plano da Marceline a caminhar na praça da Concórdia e a falar da deportação. Era para nós uma maneira extraordinária de trabalhar: a Marceline tinha um microfone de lapela e o gravador dentro dum saco; nós estávamos a cinco metros dela, não a ouvíamos, não sabíamos o que ela estava a dizer... mas o som era síncrono. O plano mais extraordinário, que nos valeu aliás imensos aborrecimentos, é aquele que rodámos no velho mercado Les Halles: o plano em que a Marceline caminha e conta o seu regresso da deportação. O Michel teve uma ideia maravilhosa: colocar a câmara na parte de trás de um 2 CV. Não enquadrámos com rigor; filmávamos com uma grande angular, empurrávamos o carro e deixávamos o veículo parar sozinho. A Marceline avançava, nós empurrávamos o 2 CV mais ou menos à mesma velocidade... O assistente de produção pensou que o Rouch e o operador tinham perdido o juízo porque estávamos a rodar e não havia ninguém atrás da câmara. Tínhamos transgredido todas as convenções: ninguém controlava o som e ninguém controlava a imagem. Na primeira projecção de rushes — eu estava ausente porque tinha ido filmar outra sequência com o Michel — o Dauman achou aquele plano detestável, mal enquadrado... o Edgar não sabia o que pensar. Quando, no regresso, eu e o Michel vimos o plano, ficámos encantados! Era formidável porque era uma invenção... Para mim, todo o CHRONIQUE D'UN ÉTÉ foi uma experiência artesanal. À medida que rodávamos o filme, inventávamos a nova câmara Éclair. Tínhamos trabalhado com o Coutand que andava a preparar uma câmara pequena e fabricou para nós a primeira máquina leve, não completamente insonorizada nem totalmente síncrona, mas que nos permitia trabalhar. Foi a câmara que o Chris Marker utilizou depois para o JOLI MAI e foi com ela e com o Michel Brault que a Marie Ruspoli rodou nas Cévennes LES INCONNUS DE LA TERRE, IMAGES DE LA FOLIE, etc., o que correspondeu à invenção da maravilhosa fórmula: «cinema directo», um cinema que lida com a realidade. O cinema tornara-se moderno. O nosso trabalho de pesquisa foi, de certa form,a equivalente ao do Leacock, do Pennebaker e de toda a equipa do Drew na rodagem do PRIMARY sobre as eleições primárias do Kennedy. Esta revolução fez as suas


vítimas, evidentemente, entre as quais os maravilhosos operadores de câmara e engenheiros do som da grande escola do documentário francês do pós-guerra. Mas mesmo esses acabaram por reconhecer aquilo que o Brault nos ensinara, por exemplo a arte de caminhar com uma câmara. O sistema do Michel possibilitou-nos planos extraordinários como o da Marilou a descer as escadas com o companheiro — era o Rivette — em que a câmara acompanha as mãos. Corríamos riscos enormes, verdade seja dita. O Edgar andava um tanto aterrorizado com o desenrolar da rodagem. Mas, sobretudo, ficou completamente desconcertado — por um triz abandonávamos o projecto — quando mostrámos o material às pessoas que tinham participado e a maioria dos interessados — com algumas excepções apesar de tudo — não conseguiam aceitar a sua própria imagem. Essa projecção marcou-o profundamente. Ele pensava que a reacção negativa vinha do facto de nós termos tratado problemas demasiado pessoais. Ora não havia outra maneira. Efectivamente realizei o filme com o meu olho africano à descoberta duma tribo parisiense. Durante a filmagem do plano com a Marilou, em que ela diz que nem sequer tem o direito de se matar, estávamos em casa da Marceline em frente a uma janela. A dada altura, fiz um sinal ao assistente para que estivesse pronto a saltar porque a tentação podia ser forte demais: filmamo-la e ela atira-se pela janela abaixo... Isto é, um suicídio em directo. Foi ao mesmo tempo terrível e fascinante a descoberta da juventude francesa dos anos 60. Um mundo revelado por pessoas que também estavam a ser modificadas pelo filme. O Régis Debray foi-se embora por causa do filme. No fim, como a montagem se arrastou durante algum tempo, o Dauman pediu a alguns amigos que viessem dar-nos opiniões e conselhos: o Leenhardt achou que não estava mal; o Storck disse que devíamos ficar por ali; o Ivens perguntou-nos quem era aquela rapariga fantástica (a Marceline...) e casou-se com ela. Veio para nos aconselhar e acabou por se casar. Trabalhámos sobre algo que valia a pena. Ao rever o filme hoje em dia, a gente dá-se conta que é um dos primeiros a anunciar Maio de 68. As pessoas estavam ali, inteiras. E nós prontos a tudo, com elas... R. G. — O que me tocou foi a maneira como as pessoas se expõem. São muito generosas e o filme também é generoso para com elas. J. R. — A propósito do plano rodado nas Halles, a Marceline dizia que tinha representado. E dizia isso porque queria mostrar que era capaz de representar uma cena... porque queria ser actriz de cinema. Mas foi capaz de representar uma cena que lhe dizia respeito duma forma tão dramática que nunca mais teria sido capaz de representar um papel daqueles noutro filme. Quer dizer que representou realmente a cena... e depois foi-se embora com o Joris. S. — Ontem à noite, vi pela segunda vez teu filme sobre Ispahan. Tu disseste-me que tinhas vontade de trabalhar com o Manoel de Oliveira. O que me parece evidente — pareceu-me evidente ontem — é que vocês ocupam, os dois, lugares extremos e completamente opostos. O Manoel de Oliveira coloca a câmara de tal maneira que o espectador sente-se sempre espectador. A câmara está no lugar do espectador. Não está no meio da acção, está sempre um pouco distante. Contigo é exactamente o contrário. Em nenhum momento podemos pensar que somos nós que vemos. Porque és tu que vês e nós vemos-te ver sem te ver... visto que só te vemos através do que tu vês. Nos últimos filmes é ainda mais nitidamente esse olhar de alguém que se vê. Como é que esses dois extremos podem encontrar-se? J. R. — Encontram-se numa cidade. Quando disse que queria rodar um filme com ele sobre a arquitectura, foi porque ele me pediu para fazer parte do júri quando foi doutorado. Como sou engenheiro da Escola dos Ponts et Chaussées, sou automaticamente arquitecto. Fiquei contentíssimo por ter descoberto esse homem encantador que fez um filme sobre o Porto e o rio — DOURO FAINA FLUVIAL — que me maravilhou. Foi talvez por isso que vim ao Porto. A Faculdade de Arquitectura do Porto é excepcional em termos de qualidade e de pesquisa. A diferença entre as imagens que eu havia de filmar e as dele seria que ele as mostraria realmente como espectador, encenando-as, e eu deixaria a encenação a cargo da câmara. De uma câmara difícil, ou seja de uma câmara à procura daquilo que eu procurei na mesquita de Ispahan. A descobrir uma vida e um urbanismo ao circular. O Manoel de Oliveira decerto havia de construir travellings muito elaborados e urna data de efeitos bem calculados. Pelo meu lado, o aspecto mais elaborado da minha abordagem seria a utilização de um helicóptero para estar alhures: o espectador veria aquilo


que a cidade olha, o céu. E veria também o que se vê do céu. Gostaria de criar uma imagem reflectida desta paisagem surpreendente à volta do rio. Talvez não passe de um sonho porque é muito difícil de realizar. É praticamente impossível obter uma autorização para sobrevoar uma cidade a baixa altitude e fazer «statifs». Seria preciso seguir o Douro à flor da água, passar debaixo das pontes, a dez metros do nível do rio. Já uma vez fiz isso quando rodei um filme sobre um quebra-gelo; parti do quebra-gelo que era um navio enorme com seis andares, filmei o navio a avançar, a ir socorrer os barcos que se encontravam bloqueados pelo gelo, e fiz um contracampo do olhar sobre o exterior, de helicóptero, ao mesmo nível, sobre a mesma janela, descendo muito lentamente e depois aproximando-me, também lentamente, para descobrir a parte da frente do monstro a uma distância de três metros do gelo. A princípio — eu queria rodar a coisa em dois dias —, toda a gente me dizia que era impossível, mas eu estava convencido do contrário. Uma filmagem deste tipo no Porto resultaria muito bem. Não sei se será possível fazer travellings à mão nas ruas com escadas porque os degraus são temíveis... Pronto, mas a ideia é essa. Só me interessa enquanto «bifilme» sobre a cidade, se tiver acesso à chave, ou seja se ele me deixar ver o filme que fez sobre a casa onde vivia. O filme «proibido» que talvez pudéssemos ter visto aqui... embora eu já saiba que o vou ver porque o Oliveira respondeu-me que fosse a Lisboa onde há sempre lugares vagos para os verdadeiros amigos do cinema. O nosso trabalho é muito diferente, claro está, tirando talvez A CAÇA. S. — E o ACTO DA PRIMAVERA ao nível do olhar; a distância de que eu falava nos filmes do Oliveira construiu-se aos poucos, de obra para obra. J. R. — O meu projecto seria um filme «a dois olhares», «a quatro olhos». Eu teria o olhar negro do bárbaro e ele o olhar do indígena. Sei perfeitamente que ia acabar por filmá-lo a filmar. E ele talvez me mandasse executar um bailado de helicóptero, um «Pas de Deux». A experiência tenta-me porque é extremamente difícil fazer filmes assim. Eu quis fazer um filme sobre o Arco da Défense antes de ter sido acabado. O Frank Hamoutten, que instalou o último andar, foi o arquitecto escolhido para transformar o Palácio de Tóquio (abaixo do Trocadero). A experiência do quebragelo foi um pouco idêntica... A princípio, era um projecto que tinha sido organizado por um sujeito do Ministério dos Negócios Estrangeiros: compreendia três filmes — o meu sobre o quebra-gelo, um trabalho feito pelos estudantes de Estocolmo sobre a vida dum marinheiro nesse quebra-gelo e uma fita de ficção a ser realizada pelo Raoul Ruiz. Infelizmente, durante uma tempestade o Raoul Ruiz partiu um braço e só filmou depois. Eu tinha combinado com o Raoul que entrava na rodagem dele — era uma espécie de introdução à aventura que ele ia contar. E é um sonho possível, é preciso experimentar... Mas voltando ao Arco da Défense: tinham-me dito que o arco tinha sido construído um pouco de esguelha para não ficar naquilo a que eles chamam o eixo sagrado de Paris. Visitei as obras e pensei que devia ser formidável filmar, de helicóptero, seguindo o grande eixo e enquadrar em «statif», na moldura da abertura, a perspectiva sobre Paris. Pedimos as autorizações necessárias para rodar. Precisávamos dum bom piloto para filmar recuando sempre para trás e subindo lateralmente. A ideia era partir do Arco do Carroussel, passar por cima do Arco do Triunfo, pelos Campos Elíseos, pelo Sena, entrar por baixo do Arco da Défense, às arrecuas e parar rectificando o enquadramento. Gostaria de rodar uma aventura deste género com o Manoel de Oliveira. Um pequeno filme de vinte minutos. Talvez também incluísse um encontro durante o qual discutiríamos o tema da arquitectura. S. — Fala-nos da tua faceta de universitário — a que eu conheci — e do teu trabalho com os estudantes. J. R. — Durante o Festival de Dinard, houve um colóquio sobre «o ensino do cinema». A nossa geracão foi formada pelo Langlois e nunca aprendeu cinema numa escola. A princípio, a maioria dos cineastas eram críticos de cinema. Nas escolas de cinema como o IDHEC é preciso formar uma centena de alunos para descobrir um realizador. Depois de 68, propusémo-nos criar uma formação cujo objectivo fosse simplesmente dar aos estudantes meios para se exprimirem. Em Nanterre, eu sugeri que convidassem o Langlois para montar uma actividade lectiva um pouco marginal em relação à instituição. O Conselho da Universidade aprovou o projecto e portanto eu anunciei em Dinard que, no ano seguinte, íamos abrir um curso de cinema, com o Langlois, em Nanterre. Um


dos jornalistas presentes, telefonou à AFP declarando que o Rouch andava a contar petas. Mas a AFP confirmou a notícia junto do Presidente da Universidade que respondeu dizendo que se o Rouch tinha afirmado aquilo era porque era verdade. O anúncio da notícia acabou por precipitar o acontecimento. E lá foi o Langlois dar aulas para a Universidade. Eram aulas incríveis que se desenrolavam no Anfiteatro Grande. Os outros professores queixavamse de que os alunos faltavam às aulas porque queriam assistir às sessões do Langlois. O Langlois contava-lhes coisas do género: «Antes da guerra de 14-18 só havia duas capitais no mundo: Londres e Paris; tudo o resto era campo. Portanto, o cinema antes da guerra era «urbano» em Paris e Londres mas «rural» nos Estados Unidos». A título de exemplo, projectava um filme supostamente «rural»... Infelizmente, a fita começava com a menção que identifica todos os filmes ingleses: «This is to certify...». Então os estudantes estupefactos perguntavam-lhe se ele estava a brincar com eles, visto que tinham reconhecido a origem inglesa da obra. E o Langlois, imperturbável, respondia-lhes: «E vocês acham que na Cinemateca temos dinheiro para comprar fita perfurada para montar no princípio do filme?!! A gente pega numa fita qualquer e toca a colar...». Era extraordinário! Toda a gente sabia que ele mentia... No entanto, conseguimos efectivamente formar um grupinho em Nanterre. E abrimos dois seminários: segunda-feira à tarde, apresentação de excertos de filmes com o Henri Langlois (quando ele se ausentava era substituído pelo Jean Douchet), e sábado de manhã, um ensino mais dirigido para as Ciências Humanas, orientado por nós. O Fulchignoni, o Xavier de France e eu adoptámos um método relativamente parecido com o do Langlois, outrora, na rue d'Ulm: projectávamos os filmes, abríamos um debate, dávamos às pessoas que tinham projectos inacabados ou em curso a oportunidade de os mostrarem, misturávamos os filmes clássicos com os filmes novos, os filmes de «ficção» com os filmes de «realidade». O objectivo era uma espécie de impregnação. Em Nanterre, abrimos este ensino do cinema às pessoas que tinham uma licenciatura (Maîtrise) enquanto que em Vincennes aceitavam pessoas que nem sequer eram bacharéis... Em Vincennes perderam rapidamente o controlo da situação por excesso de inscrições, coisa que em Nanterre conseguimos evitar estabelecendo um limite. Por outro lado, em Nanterre interessámo-nos pelo «cinema directo», pelo cinema que lida com a realidade, de uma forma privilegiada. Depois das experiências do James Blue na Universidade Houston, no Texas, com a câmara super 8, começámos a treinar os estudantes com filmagens em super 8. Um dia, a mulher do mimo Marceau apareceu-nos misteriosamente. Contou-nos que os mimos praticavam obrigatoriamente uma ginástica especial para que o rosto, que é o seu único instrumento de expressão, possa ser visto pelos espectadores sem «os cansar». O mimo tem que aprender a caminhar, sentar-se, mexer-se duma maneira amortecida, fazendo trabalhar os músculos duma forma muito particular. Esta história abriu-nos perspectivas formidáveis. Quando andamos com a câmara a filmar, estamos na situação inversa: somos nós os espectadores do «mimo», e por isso temos que adoptar esses movimentos amortecidos para que as tomadas de vista fiquem boas. No seguimento desta descoberta, arranjámos lições de ginástica com a mulher do mimo Marceau para aprender a respiração ventral e uma data de outras técnicas, um pouco ridículas, que incutiram nos estudantes a ideia de que podiam tornar-se os seus próprios film-makers (realizadores + cameramen). Era nossa convicção que, para certos filmes, em determinados meios e circunstâncias, mais valia o realizador estar sozinho com o seu equipamento. Devo dizer que, a longo prazo, o interesse por esta teoria decresceu. O nosso grupo tem actualmente poucos membros... somos uma espécie de dinossauros. Achávamos que o autor de um filme não podia transmitir ou delegar o seu conhecimento. Por outro lado, descobrimos que a qualidade dos visores tinha melhorado a ponto de um filme poder ser composto essencialmente à tomada de vista, com a sequência de reenquadramentos necessários. Eis o nosso ponto de partida. Simultaneamente, associámo-nos à Universidade de Paris I e criámos um Mestrado (Diplôme d'Études Approfondies) de Cinematografia: em Nanterre, privilegiávamos a prática do cinema; em Paris I, favorecíamos a abordagem teórica (com o Torokh, o Noguez e o Rohmer...). Ainda mantemos esta estrutura que constitui um ensino completo de Mestrado com uma opção Realização,


uma opção História do Cinema e uma opção Teoria e Linguagem do Cinema. O nosso objectivo é formar pessoas a fim de que possam utilizar o instrumento cinema para pesquisas de ordem vária e eventualmente de que se tornem realizadores. O quadragésimo ou quinquagésimo Mestrado é o da Euzhan Palcy que realizou o RUE CASES NÈGRES. Com altos e baixos, temos continuado o nosso treino em super 8 e todos os anos há mais ou menos três defesas de tese. As pessoas que chegam à tese são as que realizaram os melhores filmes. As teses em questão podem aliás conduzir a novos filmes ou a trabalhos de pesquisa sobre filmes. Esse objectivo, porventura ilusório, é bem ilustrado pelo percurso da Euzhan Palcy que actualmente está a escrever uma tese sobre RUE CASES NÈGRES, sobre a tradição escrita que é ilustrada pelo livro do Zobel intitulado «Rue Cases Nègres» e sobre a tradição cinematográfica representada pelo seu próprio filme que se passa nas Antilhas. Ao verem o filme, as crianças perguntam: «Quem é que escreveu isto?» E lêem o Zobel. Ao lerem o Zobel, não encontram a resposta, portanto vão perguntar aos avôs e às avós. Um regresso à tradição oral passando pelo filme e pela escrita. O nosso projecto é também obter uma remuneração para as pessoas na investigação no âmbito de oficinas de cinema. A Euzhan Palcy tem um posto à sua espera na Universidade de Fort-de-France: a direcção do departamento de cinema. Mas este aspecto da questão é um dos maiores problemas: as pessoas que se doutoraram connosco são quase todas professores de cinema. Ora, na Universidade os quadros estão a rebentar, não há lugar para mais ninguém. É preciso ter manha para contornar a situação e recorrer a soluções imaginativas. Eu cheguei a pensar em ressuscitar o exemplo inglês do documentário do General Post Office. Toda a experiência do Basil Wright e do Robert Flaherty foi possível graças ao protocolo com os CTT ingleses. Eles realizaram filmes de encomenda sobre a distribuição do correio (Night Mail) pelo General Post Office que financiou as aventuras ulteriores de ambos. Foi a grande escola de documentário britânico e, durante a guerra, em Montreal foi criado o Office National du Film Canadien. Este exemplo de um colégio de cineastas que encontram uma maneira original de produzir pode inspirar-nos. Eu achei que não era má ideia propor aos PTT Franceses — que, como é consabido, são uma instituição na vanguarda da tecnologia — que arranjasse postos para jovens diplomados com mestrado ou doutoramento. Esses estudantes receberiam um salário de assistentes universitários e realizariam filmes. Ao mesmo tempo poderiam ser carteiros por exemplo. A profissão de carteiro é formidável porque favorece os contactos com as pessoas. Em resumo, um emprego pago no qual o funcionário-estagiário, deveria realizar um filme ao fim de três anos... Mas o Sindicato dos Carteiros protestou porque não lhes parecia aceitável que as pessoas com uma tese fossem pagas quatro vezes mais do que eles. Seja como for, talvez seja preciso, encontrar soluções deste género. Porque a proporção é assustadora: em cem cineastas só um consegue viver da profissão... E é a mesma em todas as escolas. Claro que há a televisão, mas nesse caso já não é cinema. R. G. — Há bocado falavas do olho do leão que deixava de te ver se pendurasses uma pedra ao pescoço... Interessas-te pelas pessoas que vivem noutras partes do mundo, que pensam e vêem de forma diferente. O olhar dessas pessoas marcou a tua maneira de ver e filmar as coisas? J. R. — Não. Fala-se muito do olhar negro. Mas o olhar negro era o do Mustapha Al Hassan quando era cameraman e rodou o seu excelente filme F. V. V. A. (Femme, Villa, Voiture, Argent) que resumia a África de hoje. O olhar dele não é igual ao meu, embora eu tenha adquirido algumas características semelhantes a certos níveis: é o olho do indivíduo que conta uma história... Aprendi em África que, quando se narra uma história, o que conta é a última palavra. Porque o contador se dirige a uma audiência para transmitir uma mensagem. «Tu és a mais bela moça da mais bela cidade do mundo: o Porto!». É a palavra «Porto» que organizou toda a frase... é uma espécie de chave. O «olhar negro» atrás duma câmara, atrás do visor da câmara, é aquele que vê antecipadamente a última imagem do plano que está a rodar. E parecido com o princípio que se ensina aos cineastas amadores. Quando se roda um plano com câmara à mão, por exemplo uma panorâmica, é indispensável prever a imagem final e colocar o corpo em função dessa última imagem. É necessário que o corpo fique estável no enquadramento final. Doutro modo o movimento não funciona. Portanto: ter sempre em mente a imagemmensagem final. O olhar passeia, por vezes não capta «nada», outras vezes acontece um incidente


(alguém entra inoportunamente no plano...) e, nesse caso, é preciso inventar exactamente como quando se conta uma história. S. — Isso lembra-me um artigo muito curto do Vilar em que ele define a arte dramática afirmando que no teatro a última palavra é sempre excepcional. A técnica do gesto seria pois aquela que busca a última palavra. E, no sentido contrário, recorda-me o que o Jean-Claude Carrière nos disse a propósito do Buñuel. O Buñuel dirigia a encenação, continuava sempre a rodar e só cortava no momento em que sentia que a cena começava a descarrilar; depois recomeçava sob um ângulo diferente. O que contava para ele era a dinâmica, não sabia onde ia cortar. J. R. — Porque não estava atrás da câmara... S. — Sela como for, é o modo de narração contrário. J. R. — Mas o que eu estou a dizer é inerente a todas as histórias. Diz-se «uma história sem pés nem cabeça». Portanto, a cauda (os pés) vem antes da cabeça. Na montagem começa-se sempre pelo fim. A narrativa de um contador africano, o fim de uma dança em que o dançarino pára, mostram bem a que ponto o momento final é capital. É assim que funciona o olho africano: anuncia uma história mas sabe de antemão aonde quer chegar. Os africanos são excelentes a dirigir planossequência. Aliás, esta questão das coisas que começam pelo fim está ligada ao inconsciente. Percebi isso era eu ainda muito novo. O professor de retórica que me preparou para o «Bac» e que me treinou a redigir composições deu-me a chave. Exemplo: «O amor é ou não um dos temas essenciais dos romances de Balzac?». Perante um tema deste tipo, uma pessoa tem uma reacção imediata, dizia ele. Antes de começar a escrever o corpo do trabalho, deve-se fazer a introdução, aconselhava ele. Em geral, há uma certa tendência para responder espontaneamente: «Não, o Balzac interessava-se mais pelos temas sociais...». Na primeira parte, havia que abordar o assunto com alguma espontaneidade... Como a pessoa não se lembrava de todos os romances, convinha escolher uma obra que se tivesse bem presente na memória: «Le père Goriot». Etapa seguinte: perceber o papel do amor em «Le père Goriot». O amor é um tema subjacente mas não essencial. Na segunda parte, vinham as hesitações: que rumo dar ao discurso? Então, abandonava-se a segunda parte e saltava-se para a conclusão (Então Rouch? Não é bonito deixar o espectador na expectativa! Que raio de conclusão?... Rouch caído na sua própria armadilha desata a rir...), visto que a conclusão é aquilo que o examinador vai reter. Uma vez acabada a conclusão, parecia fácil redigir a segunda parte que conduzia logicamente às ilações finais e voltar a redigir a introdução para corrigir alguma falha natural. Foi assim a minha preparação para o exame que era um rito de passagem, um rito de terror mas um rito indispensável. A partir dali podia aceder às escolas superiores... Nessa época eu, que adorava a escola, partia do princípio que os mestres tinham mais experiência e saber do que nós. O trabalho deles era conseguir que os alunos passassem. Se, na turma de «première» com trinta alunos, só dois obtivessem o Bac era uma vergonha para eles. A vida dos professores era pois um exame permanente, uma vida consagrada a formar as jovens cabeças. No entanto, o professor de retórica sempre sublinhou que a receita dele era um recurso que servia apenas para preparar o exame. Não nos queria induzir em erro e de facto não nos enganou. Também nos falou muito dos versos latinos e da rima. Já não sei se foi ele que nos disse que a última palavra condiciona o conjunto do texto. Mesmo na expressão «Cadavre exquis» a formulação só funciona por causa do adjectivo «exquis». O título «Poisson soluble» do Breton só faz sentido graças a «soluble». Para responder à vossa pergunta — qual foi a influência africana na minha maneira de apreender o cinema? — posso dizer que em África redescobri essa chave, na música, nos cantos dos contadores de histórias e nos efeitos dos grandes cantadores que modulam a sua interpretação em função do final. Na literatura oral, a arte do contador é antes de tudo dizer os textos de maneira musical e depois saber terminar com a palavra certa que resume o conteúdo do que ficou para trás. Este método também está patente nas fórmulas dirigidas às divindades — é um dos temas da minha tese para o tratamento do qual foi preciso um trabalho colossal de tradução, primeiro literal e a seguir literária. O Génio do Trovão, por exemplo, é «aquele que fulmina e aquele que cura». Foi ele que me meteu nesta aventura que consiste em estar sempre adiantado em relação ao presente. Quando


filmo, atribuo uma grande importância à posição do meu corpo porque quero controlar o desenlace das imagens, (ao contrário do Buñuel) para não ser obrigado a cortar o fim da tomada de vista. A minha linguagem cinematográfica é o desenvolvimento de planos-sequência que devem conduzir a um fim certo como as frases ou as coplas dos contadores africanos. O que é apaixonante é que, para as pessoas que filmei, o Rouch-câmara fazia parte da paisagem, fazia parte do ritual. Realizei um pequeno filme sobre esta questão e publiquei um texto sobre o duplo na possessão, na bruxaria, na antropologia e no cinema. No meu texto concluí que a minha atitude num ritual é absolutamente anormal. Não é normal utilizar uma grande angular e acompanhar, a par e passo, numa pista de dança, os «cavalos dos génios» que vão ser possuídos. Perante as pessoas que participam, eu sou um interveniente um bocado especial. Não sou crente mas respeito as crenças dos outros. Como conheço o ritual, os africanos, por intuição, adivinham que eu vou filmar alguém que vai ser possuído. Adquiri neste domínio uma experiência que me permite perceber, a partir de dada altura, que a pessoa já não está ali porque está a perder o «duplo» (a alma) próprio para acolher o duplo de outrem. Os africanos julgam que atrás da câmara eu vejo o duplo e que esse duplo vai ficar registado; e que, mais tarde, um ou dois anos depois, eu restituo o duplo, que consigo até mostrar a imagem, ou seja o duplo, de pessoas mortas. Portanto aceitam a presença da minha figura singular com uma câmara ao ombro e com uma maneira estranha de se movimentar. Seguindo os ensinamentos da ginástica dos mimos, aprende-se a caminhar com a câmara como quem desliza, com as pernas ligeiramente arqueadas, avançando por vezes às arrecuas, etc. Não hesito em recuar com segurança porque o meu assistente serve-me de guia; o Tallou agarra-me pela cinta e, enquanto o meu olho direito vê a acção principal no visor da câmara, o meu olho esquerdo é o «fora de campo»; como ele também conhece perfeitamente o desenrolar dos rituais, pode orientar-me porque se apercebe de coisas que a minha visão dificilmente controla (uma mulher fora do meu ângulo de alcance que começa a entrar em transe, por exemplo); quando efectivamente vê algo de interessante guia-me nessa direcção e eu muito lentamente, aproximo-me da personagem e descubro no visor aquilo que o meu assistente detectou; se no fim de contas a acção não for tão interessante como isso, eu quedo-me uns instantes e volto muito devagar a enquadrar a personagem que anteriormente estava a filmar. Por outras palavras, introduzi um elemento essencial: o da visão multilateral. Os espectadores que observam a minha movimentação têm a impressão de que eu adivinho, que eu «vejo o invisível». Ora os grandes padres têm a reputação de ver o invisível e de estabelecer um contacto directo com as divindades... Em tempos realizei um filme — LES TAMBOURS D'AVANT — que é um plano-sequência de dez minutos durante o qual acontece uma possessão. Na altura, o meu objectivo era filmar uns tambores especiais que estavam em vias de desaparecer. Entrei na pista e comecei a acompanhar os passos dum cavalo «favorito» dos génios do velho Albeydon a quem a orquestra chamava Gandyi by. Eu caminhava com a câmara e atrás de mim tinha o meu guia. Moussa, o meu engenheiro de som, estava do meu lado esquerdo e tinha visto a minha objectiva de 10 mm portanto sabia exactamente até onde podia aproximar o microfone. Resumindo, a equipa tinha condições perfeitas para filmar. A dada altura resolvi enquadrar um dos tais tambores — um grande barril cilíndrico — e fazer um grande plano das contas que enfeitam as peles e são supostas «levar a música até ao ouvido dos génios». O zumbido que elas produzem torna-se por vezes bastante incómodo mas é precisamente o barulho que os génios conseguem ouvir porque está no comprimento de onda certo. De repente, a orquestra parou de tocar. Um dos músicos, que estava a tocar com uma grande cabaça em que se bate com as duas mãos, assoou-se porque estava constipado. Continuei a filmar apesar da paragem, levantei a câmara, ouvi um grito: era o sujeito que anteriormente eu tinha acompanhado que estava a entrar em transe no meu visor. Consegui pois o plano sequência que pretendia. Por conseguinte, quando se pretende rodar um plano-sequência sobre um ritual de possessão, é preciso começar no momento certo para que a possessão ocorra antes que a película se esgote no carregador da câmara. Neste caso, filmei o sujeito em transe ao sexto minuto, pelo que pude encadear com imagens sobre o seu comportamento daí por diante. O ritual em questão tinha sido organizado para pedir aos génios secundários, os génios negros, que não mandassem os gafanhotos e assim evitassem a destruição da colheita; tudo isto constitui uma espécie de preliminar antes de o mesmo grupo se


dirigir ao génio do trovão — Dogon — para implorar chuva. Graças ao meu assistente, não tropecei nas pedras do chão e consegui registar as conversas dos homens com os deuses até ao momento em que os génios reclamam um sacrifício. Nesse preciso instante, um segundo «cavalo do génio», uma mulher, veio colocar-se em frente à câmara e foi possuída. Aproximei-me dela e, pelo ruído do carregador, sabia que só me restavam dois minutos de película aproximadamente. Precisava de calcular a maneira de filmar a imagem certa para o enquadramento final. Porventura influenciado pelos conselhos do meu professor de retórica, decidi voltar ao eixo do princípio da tomada de vista para manter o equilíbrio e a lógica. Recuei muito devagar e, como estava um céu cinzento típico da estação seca, enquadrei o sol corrigindo lentamente o diafragma para apanhar os últimos raios do poente. Esta referência serviu-me aliás para justificar as minhas imagens um pouco cinzentas, um tanto falhadas do ponto de vista da cor por causa das condições atmosféricas. Parei de filmar. O engenheiro do som e o assistente disseram que para eles o plano estava bom. À minha beira havia um grupo de crianças que tinham vindo da escola para ver os pais a dançar. Peguei na câmara, respirei fundo, tentei descontrair-me — tinha estado sob uma tensão considerável — e fui saudar, como é regra, os génios que entretanto tinham acorrido ao local (e que aliás às vezes me vêm saudar enquanto filmo, o que se torna bastante incómodo...). Um dos padres Daounda disse-me então: «Hoje, aquilo que fizeste correu muito bem!». Porque apesar de eu ser uma personagem um tanto incongruente no meio do ritual, tinha conseguido acompanhar a par e passo a cerimónia... S. — Lembro-me bem dessa sequência. É extraordinário porque quando acompanhas aquela figura, tem-se a sensação de que a própria câmara está a cumprir um rito. J. R. — Mas está de facto a cumprir um rito. A rodagem dum filme deste tipo é um rito que obedece a certas regras. Durante o visionamento dos rushes desse material, fui assaltado por uma dúvida: o que é que se faz com um filme assim? Traduzir o diálogo dos homens e dos deuses? Mas havia poucas palavras e poucos cantos. Explicar o que eles diziam e faziam? No fundo, era um documento de etnomusicologia... O facto é que os aldeãos que participaram no ritual ficaram muito contentes porque havia três dias que procuravam os génios em vão... Eu tinha vindo para filmar os tambores e rodara o plano relativamente tarde, com uma luz já no limite porque o sol ia pôr-se. Tinha decidido tentar um plano-sequência de dez minutos porque os músicos tocavam muito bem e conseguira eu próprio filmá-los bem apesar daquele momento estranho da paragem da orquestra. Em princípio, nunca deveria ter continuado a filmar, deveria ter mudado de ângulo... Mas não. Discuti o assunto com o Damouré, o Lam, o Moussa e o Tallou que me explicaram que as pessoas julgavam que eu tinha visto chegar o Kouré no visor e logo tinha sido o primeiro a saber quem ia ser possuído... pelo que continuara a filmar apesar do silêncio da orquestra. A verdade é que é uma coincidência louca! A partir daí coloquei-me a seguinte questão: será que a câmara se tornou provocadora e será que a possessão foi acelerada ou até provocada pelo facto de que eu estava a filmar? Aliás os meus colegas antropólogos iam com certeza atacar-me e acusar-me de ter feito uma encenação para obter um plano-sequência conseguido. A solução era portanto fazer um comentário na primeira pessoa. Assumi todos os riscos e redigi um comentário no qual descrevo e explico a maneira como procedi. Quando o Braunberger viu o filme quis logo ficar com ele. Foi estreado e exibido em 35 mm, com aquela música absolutamente extraordinária. Apresentei-o num encontro do CNRS sobre a noção de «pessoa». E foi nessa época que escrevi um texto sobre a emoção do cinema que é um assunto sobre a qual os antropólogos evitam falar. O único que abordou o tema foi o Griaule... Ao redigir esse artigo, apercebi-me de que o ritual sobre o qual me tinha debruçado é um ritual do «doom». O Griaule descrevera a emoção que os espectadores sentem quando assistem a cerimónias de máscaras. Esse aspecto da questão seduziu-me terrivelmente. Aliás, ele tem uma frase inesquecível: «A ética da dança das máscaras é substituído pela estética da máscara que dança». Trata-se dum belíssimo texto que muitos rejeitaram por acharem que o investigador deve ter o olho seco do Bacon. S. — Isso faz-me pensar no Canetti que tenho andado a ler ultimamente. A possessão é a metamorfose de uma pessoa noutra mas, como no teu caso vais no encalço de alguém que vai ser possuído, tu próprio entras num processo de metamorfose.


J. R. — Foi por isso que inventei um termo especial: o ciné-transe. Voltamos à linguagem vertoviana. Efectivamente, no momento de rodar o tal plano, estava extraordinariamente tenso com o medo de falhar e estragar a sequência... Medo de tropeçar numa pedra... É como transportar o inestimável jarrão chinês da tua avó num grande salão... o jarrão que o teu avô trouxe de uma viagem a um país longínquo. Se partes o jarrão é o fim do mundo... Por outro lado, está-se num estado anormal porque só se vê do olho direito. Com os excelentes visores das câmaras actuais, a pessoa é verdadeiramente o primeiro espectador do filme que está a rodar. Para mim, é como estar instalado numa boa sala de cinema atrás do meu visor... Com o olho esquerdo faz-se a encenação. É uma sensação de estar dividido em dois à qual se juntam os efeitos da respiração ventral, do jogo dos músculos... Uma espécie de «hemiplegia» artificial. Durante a rodagem eu próprio dançava visto que os meus movimentos acompanhavam o ritmo das personagens... Ora, nessas circunstâncias, a criação transforma-se em algo próximo da possessão e eu torno-me um cine-Rouch que cineparticipa nas cerimónias que filma, as quais assim passam a ser cinerituais. E os africanos compreendem perfeitamente esta noção. Para eles, a câmara permite ver como uma vidente, ver como Rimbaud, ver «aquilo que o homem julgou ver...». S. — Não conheço os trabalhos que tens realizado mais recentemente em Nanterre, mas lembro-me de ter acompanhado com muito interesse a pesquisa da Claudine e do Xavier de France. Eles tentaram definir a adequação do enquadramento ao gesto mas nunca analisaram este problema. Não é a questão do «ponto de vista, mas do papel «participativo da câmara». J. R. — Tens razão. Aliás eu e o Beauviala baptizámos a câmara Aaton com uma objectiva 10 mm «câmara de contacto». A câmara consegue uma proximidade excepcional com as personagens, permite ver as pessoas como nunca as vemos: em close-up e em grande angular. É como se estivéssemos por dentro. A Claudine e o Xavier estão totalmente ao corrente e são muito sensíveis a todas estas descobertas que, no fim de contas, tiveram por origem as nossas aulas de ginástica. Porque, normalmente, um etnólogo que pretendesse levar a cabo este tipo de estudo teria pedido três câmaras. O resultado teria sido um filme muito mais «quadrado» mas sem emoção. R. G. — Há pouco mencionavas o facto de que a tua presença podia provocar ou acelerar o transe. Ora é exactamente o que se passa no teu filme rodado em Paris — CHRONIQUE D'UN ÉTÉ — na cena em que não se sabe se a Marilou se vai atirar da janela abaixo. As confidências dela são extremamente perturbantes para o espectador e a personagem só reage assim porque está à frente duma câmara. J. R. — É a «câmara provocante». R. G. — Gostaria de acrescentar uma coisa. Parece-me que o facto de tu seres tão facilmente aceite nos rituais que filmas — os quais por sua vez também são da ordem da criação artística, além do fundo religioso que os motiva — talvez se explique pela necessidade que todo o homem sente de ver os seus gestos perpetuados (não acho que essa necessidade seja específica dos artistas). É a necessidade que temos que noutros lugares, noutros tempos, outras pessoas nos compreendam melhor... porventura melhor do que nós. J. R. — É verdade. De resto não é a Academia Francesa que confere a imortalidade, é o cinema. Porque os filmes ficam. Quando mostrei LES TAMBOURS D'AVANT ao Pierre e à Gisèle Braunberger, em 16 mm, tinha gravado um pequeno comentário completamente improvisado. E tinha dito por «acaso» uma frase de que gosto muito: «Entrar num filme é entrar na realidade. Como aconteceu no dia tantos do ano tal, quando eu me pus a acompanhar...». «Mal a orquestra parou de tocar e o fulano se assoou, eu devia ter parado de filmar mas...». Assumo o filme na primeira pessoa. É o eu-Rouch a falar. S. — Ocorre-me outra possibilidade. A câmara pode eventualmente materializar o olho da divindade que não é igual ao olho humano. J. R. — É mesmo verdade o que estás a dizer. Voltei ao Níger para projectar o filme em Niamey e houve um debate. Vim a saber que, na orquestra de possessão, os zima, padres responsáveis pelo rito, vêem o génio intervir e uma das personagens, em geral o violinista, vê o génio chegar e aproximar-se de um dos dançarinos. Pressente a chegada do génio através de uma sensação no dedo mindinho e começa a tocar a melodia especial do génio em questão que, nessa altura, encorajado, se


abeira: traz na mão a pele de um carneiro recém-esfolado (ou de um bode), pele ainda ensanguentada; coloca-se em frente ao dançarino e, logo que este se prepara para entrar em transe, pousa e tira três vezes de seguida a pele da cabeça dele; então o dançarino possesso tem uma convulsão, tosse e uiva três vezes; o génio agarra no duplo do dançarino, guarda-o dentro da pele, fecha-a e coloca-a ao lado da orquestra para evitar que um «feiticeiro devorador de almas» (tyarkaw) se apodere dela e tome o seu lugar. A minha câmara funciona pois como um saco de prestidigitador: é uma pele ensanguentada. Quando o transe acaba, dá-se a restituição do duplo: o dançarino tosse e limpa a cara ainda manchada de sangue. S. — A imagem dos olhos velados pelo sangue é extraordinária. J. R. — Esta precaução serve para proteger o dançarino em transe porque o ritual de possessão é muito perigoso. O dançarino foi mandado dançar mas, quando o génio aparece, é preciso imperativamente respeitar as regras do ritual, doutro modo o génio vai-se embora, furioso, ou então recusa-se a conceder aquilo que lhe é pedido. S. — No momento da convulsão em que os olhos começam a revirar, o que se vê é efectivamente a renda vermelha das veias: é como uma pele ensanguentada que alguém pousasse sobre os olhos... J. R. — É verdade... nunca tinha pensado nisso... Mas, para voltar à tua pergunta sobre o papel da câmara, devo acrescentar que foi com este filme que eu compreendi que a câmara me serve de defesa. Escrevi um artigo teórico sobre esta questão que causou grande agitação nas pessoas que participavam num seminário sobre a «noção de pessoa» em homenagem ao Marcel Mauss. Relatei uma experiência pessoal que não era uma experiência de crente mas sim de um crente na crença. Os africanos passaram a considerar-me um membro activo nos ritos de possessão. Sou um bom estimulante. Um bom «pastor» (aquele que acompanha). Mas nunca fui possuído. No início do meu trabalho de pesquisa dei-me logo conta de que não havia nenhuma substância alucinogénia, nenhum adjuvante para provocar o transe. Trata-se simplesmente de uma «técnica do corpo» que permite mudar de personalidade à vista de todos. E compreendi que essa prática podia ser muito perigosa. Uma das razões pelas quais nunca entrei no jogo foi porque tinha simultaneamente a responsabilidade da câmara — é preciso focar, estar atento à luz, mudar os carregadores. A tecnologia e o meu instrumento exigiam de mim uma vigilância permanente. Quando rodei LES MAÎTRES FOUS, tinha esse dispositivo de protecção perante aquele espectáculo aterrorizador. No momento em que os participantes sacrificaram um cão, perguntei a mim próprio o que devia fazer se apanhassem uma criança e se dispusessem a matá-la; continuei a filmar, pensando para comigo que, se tal acontecesse, parava de filmar e ia-me embora... De facto era um receio absurdo, uma suposição sem fundamento; o papel essencial do Moukayla Kiri, o «homem tranquilo» era precisamente evitar qualquer «excesso» (sacrificou o cão para impedir justamente acidentes desse tipo...). S. — Mas então já nessa época atribuías um papel bem definido à câmara... J. R. — A câmara constituía uma barreira tecnológica, racional, durkheimiana, que me permitia descobrir práticas surpreendentes sem nelas participar... O advento do som síncrono, com a possibilidade de rodar planos mais longos, veio de certa forma diminuir a protecção; o film maker, o realizador-cameraman é obrigado a desempenhar um papel mais activo, a ter uma câmara mais viva e mais móvel do que em LES MAÎTRES FOUS (em que a câmara era praticamente fixa). É obrigado a «estar em cima da jogada» e a participar na coreografia. O que implica uma brusca metamorfose do seu instrumento de trabalho que passa a ser «câmara de contacto» e «câmara-catalizadora» da energia do ritual: a «barreira» transforma-se em «pastor». S. — Encontras-te no Porto para debater o tema «Arquitectura e Cinema». No teu filme sobre a mesquita, a câmara cumpre também um ritual, não em obediência a uma cerimónia mas em relação a um espaço onde a cerimónia está ausente. Sente-se que há uma abordagem da função do local. O movimento é semelhante ao dos teus outros filmes embora num caso o objecto seja o humano e esteja presente e no outro o objecto seja arquitectónico e o humano esteja ausente. J. R. — Não, o humano está presente. O Farokh Gaffary com quem eu dialogo ao mesmo tempo que filmo é um muçulmano que me faz descobrir um dos mais sublimes lugares de culto do Islão mas, ao mesmo tempo, foi iniciado ao cinema em Paris pelo Henri Langlois. Portanto é um homem


«dividido»: por um lado, tem uma imensa nostalgia dos tempos áureos de Ispahan, dos poetas persas, das miniaturas, do papel do vinho e da mulher e de uma data de coisas que haviam de ser proibidas posteriormente; por outro, é fiel aos ensinamentos do seu mestre Henri Langlois. Claro que se orgulha de pertencer à cultura persa que deu nascença a uma arquitectura tão bela. Por conseguinte, brinca comigo ao jogo buñeliano do sacrilégio. Diga-se de passagem que — aliás já abordei o assunto com o Jean-Claude Carrière que nesse aspecto discorda de mim dado que é catalão e tem um certo ódio aos padres —, se o Buñuel fez do sacrilégio o tema essencial dos seus filmes é porque acreditava. Forçosamente. Quando se quer acreditar no diabo é porque se acredita em deus. Era uma crença comparável à minha: eu acredito na crença do Farokh quando ele fala das suas relações com deus mas a crença dele foi pervertida por Paris. Logo as palavras dele, as nossas palavras só podem ser blasfémia. S. — Talvez ele tenha sido provocado pela câmara. J. R. — Com toda a certeza. Foi provocado e transformou-se num «ciné-Farokh». Os estudantes iranianos dele — que nos serviam de assistentes — ficaram muito surpreendidos: pela primeira vez ouviam falar do Islão com uma certa desenvoltura. Uma desenvoltura simultaneamente graciosa e terna dado que estávamos todos muitíssimo comovidos com aquela obra-prima absoluta da arquitectura religiosa. S. — E no atelier do pintor japonês, como é que o encontro aconteceu? Também filmaste um longo plano-sequência... J. R. — Talvez seja mais interessante falar antes do filme-retrato da Margaret Mead. Acontece que dei umas aulas em Harvard e fui convidado para um dos primeiros seminários da Margaret Mead. Ela era para mim uma figura tutelar, um pouco como o Griaule... tenho imensa pena de nunca ter filmado o Griaule, mas ele morreu antes de eu o ter filmado. Achava a Margaret Mead extraordinária. Conheci-a em 1955 num congresso internacional de ciências etnológicas e antropológicas no qual apresentei LES MAÎTRES FOUS. Nessa época, a Margaret era uma verdadeira rainha da antropologia americana. Para além do resto, tinha criado a antropologia visual juntamente com o marido, Gregory Batteson, quando fez pela primeira vez fotografias e filmes na Indonésia e na Nova Guiné nos anos 30 (na altura em que o Griaule escreveu os primeiros ensaios sobre os Dogon). O programa incluía a primeira apresentação de um jovem investigador que vinha da África do sul — o John Marshall. Eram pequenas amostras do filme que depois se intitularia THE HUNTERS (uma das obras-primas no domínio do filme etnológico). Desajeitadamente (mas ele era mesmo muito jovem...) projectou o material com os claps que tinha feito para sincronizar a imagem e o som. Tinha rodado com uma Bell Howell e com uma Arriflex e gravado o som com um Ampex. As imagens interrompidas pelos claps provocaram uma reacção de escárnio por parte dos etnólogos. Aquele extraordinário esboço de documentário sobre os Bushmen foi recebido com uma condescendência altiva pelo auditório de antropólogos cobertos de diplomas: «Muito bem, jovem amigo... não percebemos exactamente onde você quer chegar mas está muito bem...». E fomos apenas dois a defender o trabalho do jovem Marshall: eu e a Margaret Mead. Este episódio criou uma certa cumplicidade entre nós. Foi assim que, dez anos mais tarde, nos voltámos a encontrar no Museum of Natural History de Nova Iorque, no âmbito do primeiro festival Margaret Mead. Jantámos juntos e eu disse-lhe que queria fazer um filme sobre ela. «Não, não, estou farta. O seu camarada Cousteau já realizou umas emissões. É uma chatice...» respondeu-me ela. Então propuslhe fazer o filme num dia, sob forma de plano--sequência, com o John Marshall a fazer a tomada de som e um mínimo de iluminação. Sugeri-lhe que partíssemos do gabinete dela e que, durante o percurso, ela contasse a aventura da sua descoberta. E ela acabou por aceitar. Rodei pois um filme cujo título em inglês é MARGARET MEAD, PORTRAIT BY A FRIEND e em que apostei totalmente no plano-sequência. Tirei partido de uma particularidade que descobri com o John: a câmara Éclair que utilizei tem a objectiva colocada ao nível do olho. (Com a Aaton é muito mais difícil de obter o mesmo tipo de efeito porque a objectiva está abaixo do nível do visor). A Margaret ficou muito surpreendida com o facto de poder falar com uma câmara ao ombro. Eu fiz-lhe umas perguntas um tanto desajeitadas no meu inglês macarrónico e não conseguia perceber tudo quando ela respondia. O John ria como um perdido a meu lado... Rodámos num sítio absolutamente favorável: no seu


velho gabinete onde ela nos apresentou os «antepassados totémicos» e nos falou das «aldeias» onde trabalhou — na Nova Guiné, em Bornéu e na Indonésia... Revelou-nos o seu projecto de representar todo aquele grande sonho numa grande exposição dedicada ao Pacífico, explicou-nos que a dita sala de exposição era mesmo ali ao pé e propôs-nos visitá-la! Então fomos filmar uma sala de exposições que nunca tinha sido aberta ao público! A sala era forrada de mosaicos azuis — «cor dos mares do sul» — havia uma instalação sonora com música — dos «mares do Sul» também — e vitrinas a três dimensões com maquettes de aldeias, nomeadamente a dela. E aí a Margaret começou a falar da aldeia dela enquanto nós «sobrevoávamos» justamente o modelo reduzido e disse-nos que aquela exposição nunca tinha sido aberta. Porquê? Não faço ideia... Terá sido por acharem que já tinham dado o suficiente à Margaret Mead? Terá sido por ela já estar separada do Batteson nessa época? Não faço a mínima ideia... Também nos falou do museu que, no seu entender, devia ser antes de tudo um local de conservação de objectos. Fomos ver a oficina de restauração de tecidos. Então eu perguntei-lhe o que é que ela preferia no museu e ela respondeu-me: a sala dos dinossauros... Passámos à sala dos dinossauros e, em frente aos ovos fossilizados, a Margaret declarou: «Os dinossauros desapareceram bruscamente. Não se sabe porquê. A meu ver as ciências humanas deveriam ter em conta que, amanhã ou depois de amanhã, a espécie humana vai desaparecer... como os dinossauros. E este museu deve respeitar esse princípio». Nessa altura, o John Marshall sugeriu que saíssemos para um passeio no Parque. A Margaret tinha uma capa azul e uma bengala. Ao abandonar a sala da Pré-História, apercebi-me através do meu visor que ela ia passar por debaixo do fóssil de um morcego gigante. Intuitivamente enquadrei o bicho, sem saber bem o que queria dizer com aquilo. Pensei apenas que a Margaret ia ficar naquela imagem como o tal morcego de uma espécie desaparecida. No Central Park, confessei-lhe que estava muito comovido por a ter filmada. Ela respondeu-me que tinha tido imenso prazer em ser filmada daquela maneira e que o John estivesse presente; declarou que tinha percebido o que eu entendia por «cinema directo». Continuando a caminhar afirmou que se um dia houvesse uma viagem para a lua queria fazer parte da tripulação. Aí eu deixei-a afastar-se, estaquei; ela virou-se para nós e atirounos «Bye, bye». É a última imagem que temos dela, morreu seis meses depois! Quando projecto este filme, vejo a imagem deum ser vivo rodada pelos seus dois filhos adoptivos. A ideia de ciné-retrato é uma coisa muito grave... Em Outubro, vou apresentar o meu filme sobre os moinhos de vento ao seminário Margaret Mead. Vamos rever o meu filme-retrato e, como é hábito, vamos todos desatar a chorar. O cinema é como o teatro e a poesia: é de rir e de chorar. S. — Conheço outros cineastas que se interessam pelo retrato. Até me lembro de um que tinha um projecto chamado Cinémathon. A diferença é que nos teus filmes — sejam eles retratos de pessoas ou imagens de dançarinos em transe — as personagens não saem ilesas. São mais do que retratos, são provas... uma espécie de iniciação... J. R. — Pois bem, para mim, a psicanálise devia acontecer mesmo assim: na rua... O divã do Freud devia ser um lugar público. Quanto aos meus encontros, não são mais do que o fruto do «acaso objectivo». Ah, pronto, já me recordo do filme que a Margaret Mead tinha saudado e adorado... Foi o COCORICO MONSIEUR POULET. Que uma mulher como ela tenha adorado o meu filme só prova que apesar de pertencermos a duas gerações diferentes somos os mesmos. Mais tarde descobri que a Margaret Mead mandou a Maya Deren com o Batteson estudar o vaudou para Haiti. Agora há quem diga que foi porque o Batteson estava apaixonado pela Maya. Está bem; e daí? A Maya Deren filmou em Haiti mas converteu-se. Talvez te lembres do Sudre que eu encontrei em Aix e que se interessa por cinema experimental. O Alcide Sudre é uma das personagens mais inquietantes que jamais conheci. Inimigo do Noguez, inimigo de toda a gente... Fez a tese comigo. O título é «Diálogos com Maya Deren». Revelou-me coisas completamente loucas sobre essa figura que, para mim, se tinha transformado num ser cada vez mais mítico. O Métraux e o Leiris também me tinham falado dela... Desempenhou um papel muito importante na história do cinema porque inventou o «cinema experimental americano» muito antes do Mekas,


com um filme chamado MESHES IN THE AFTERNOON (engrenagens da tarde). Se vires esse filme vais ficar «enfeitiçado»... S. — Uma pergunta um bocado diferente... Nunca aconteceram acidentes durante as tuas rodagens? J. R. — Sabes, a partir do momento em que o Griaule rejeitou LES MAÎTRES FOUS, eu rompi o tabu e a minha perspectiva mudou. Depois do incidente, voltámos a falar do assunto e ele mostrouse furioso. Quando lhe contei que o Chabrol tinha feito telefonemas para saber quem era aquele realizador que tinha tanto jeito para dirigir actores, para o Griaule tinha-se atingido o cúmulo do inaceitável. Mas para responder à tua pergunta: claro que houve rodagens menos «controladas». Vou-te contar o que me aconteceu numa terra muito próxima da aldeia onde rodei LA CHASSE AU LION À L'ARC Trata-se de outra aldeia onde rodei o meu segundo filme intitulado LES MAGICIENS DE WANZERBÉ, a preto e branco, filme esse que tu não viste porque só me resta uma cópia. Vou tentar ser sucinto. A minha tese intitula-se «Essai sur la religion et la magie Songhay». Foi primeiro editada pela PUF e, mais recentemente, foi reeditada — com algumas remodelações que a refrescaram — pelo Luc de Heusch, em Bruxelas (a mesma pessoa que salvou LES MAITRES FOUS do poço do esquecimento...). Nessa época, em 1948, eu aventurava-me com infinitas precauções no domínio da religião e da magia. Não tinha grandes ideias teóricas sobre o assunto e só posteriormente vim a conhecer os trabalhos do Mauss sobre «a noção de pessoa». Ora uma pessoa é alguém que tem antepassados. Em Roma, apenas os homens livres tinham o direito de colocar máscaras de cera (que representavam os antepassados) nas pontes sobre o Tibre, pontes essas que ligavam o mundo dos vivos ao mundo dos mortos. Os escravos, os cativos estavam excluídos desse rito anual: não existiam, não eram «pessoas». Nos rituais de possessão que eu observei, os participantes dirigem-se de preferência aos génios, senhores da natureza. Essas divindades são frequentemente assimiladas aos antepassados. Por exemplo, o pai do génio da água é assimilado ao Sonni Ali que criou o império Songhay. O lado «Arcane 17», o lado «Carta às videntes», o lado magia operacional do Breton era para mim uma operação de ordem poética. O Aragon, que era um malandro, não suportava lá muito bem essa vertente do surrealismo mas, ao mesmo tempo, acabou por cair na armadilha da Elsa Triolet: rejeitou os praticantes de magia para ir parar ao colo duma bruxa. E o Dali que roubou a Gala ao Eluard... foi uma pequena patifaria. Mas enfim, era o tempo do amor louco. A guerra tinha-me ensinado as regras trágicas do jogo do «quem ganha perde»: da guerra sai-se vivo, morto ou ferido para sempre. Há algo de mágico nisso? Não sei. Um dos meus melhores amigos ficou com as pernas destruídas por um obus alemão, no maciço dos Vosges. Foi atingido no nervo ciático. Puseram-no no Hospital do Val de Grâce e ele não só decidiu não morrer como resolveu voltar a andar. E os nervos ciáticos começaram a formar-se de novo. Primeiro conseguiu coxear, depois conseguiu caminhar com uma bengala e acabou por andar. Foi um triunfo da «força vital». No tempo em que eu era jovem engenheiro, descobri um mundo estranho, um mundo do irracional em que o génio do trovão mata. Mas, no fim de contas, pouco se sabe sobre a faísca que fulmina e, no território onde me encontrava, todos os anos havia um número considerável de pessoas fulminadas. Na Escola dos Ponts et Chaussées aprendi que os raios se abatem sobre os terrenos radioactivos. Ora no Níger, havia urânio... O certo é que, no meu trabalho de engenheiro, eu estava permanentemente confrontado com esse mundo do irracional. Quando depois da guerra, acompanhado pelo Damouré e pelo Lam, fomos desvendar a cavalo as terras em volta da curva do Níger, o nosso itinerário era totalmente irracional, era uma espécie de busca épica como a demanda dos cavaleiros errantes. Os nossos guias eram velhos pescadores do rio, caçadores de presas incertas e essas maravilhosas ladies que só nos forneciam a chave dos sonhos, ou ainda os génios que encarnavam nos ritos de possessão cujo bel prazer era mandar-nos para o cu de judas... mas certos nomes de aldeias estavam sempre a vir à baila: Hombori... Wanzerbé...


Por conseguinte, partimos a cavalo para Wanzerbé onde «nunca ninguém fora». Um dia chegámos a uma pequena aldeia perdida, a 10 km de Yatakala, onde viviam os descendentes do Askya Mohammed que expulsara os mágicos impuros fundadores do império Songhay... Nem brancos nem pretos paravam naquela aldeia. O chefe de Yatakala viera acompanhar-nos a cavalo e tinha-nos apresentado ao chefe da aldeia que nos instalou perto do mercado. Ficámos nessa aldeia durante um mês. Trouxera comigo um bocado de película preto e branco — foi o último filme que rodei a P & B — portanto comecei a filmar a vida quotidiana do mercado, o olhar esquivo das pessoas... Também filmei crianças. Depois, uma tarde, soubemos que ia haver uma dança de possessão. Durante o ritual nocturno, um dos génios, que possuíra uma mulher velha, veio agradecer-me por eu ter sacrificado um frango que o mesmo génio me pedira, um mês antes, a 100 km dali, durante outra dança de possessão. Até ali, por muito bizarro que parecesse, nada daquilo era surpreendente num sistema religioso como o deles. Tudo se sabe... Só que, depois de me ter agradecido, o génio virou-se para os habitantes de Wanzerbé e insultou-os por terem recebido mal um homem branco que viera visitá-los. Foi portanto o próprio génio que me abriu as portas daquele mundo fechado. No dia seguinte, as pessoas da aldeia começaram a explicar-nos quem eram. Depressa percebi que aqueles homens estavam em contacto com as mesmas forças mas, enquanto nas danças de possessão a que tinha anteriormente assistido noutros lugares as pessoas «imploravam», em Wanzerbé eles «davam ordens». Eram superiores aos profetas e talvez a Deus... Tinha de facto ido parar a um território singular. Comecei a trabalhar com a gente de Wanzerbé e a recolher textos. De noite, à luz duma lâmpada de petróleo, transcrevia o que ouvira durante o dia com o Damouré. Contaram-me por exemplo, como é que eu tinha vindo ali para tentar obter o cargo de governador do Níger! E estavam prontos a fornecer-me todos os recursos da magia para eu ser bem sucedido. Tinham sabido pelo Damouré que eu tinha sido expulso pelo governador anterior. Que bela vingança! Uma tarde, um deles veio visitar-me para me revelar a «palavra-mestre» que permite transformar a pedra em ferro. Ao revelar-me a palavra, explicou-nos que era o nome da «mãe de deus». Estávamos a entrar num domínio completamente louco: com que então deus tinha uma mãe!? No dia seguinte, Sai, o mágico, voltou para me dizer que tinha feito mal em revelar-me aquela palavra, porque eu a tinha escrito e ela não devia ser publicada. Eu não devia dizê-la nunca porque não tinha o direito de a pronunciar ou repetir. Então, nós comprometemo-nos a nunca dizer o nome da mãe de deus. Contudo, o mágico não se importava com o facto de eu revelar que deus tinha uma mãe, estava autorizado a fazê-lo. Desde então eu e o Damouré temos sido incrivelmente pressionados pelos homens políticos do Níger. Querem a todo o custo que lhes revelemos o nome da mãe de deus. Ofereceram rebanhos de bois ao Damouré, mas nem ele nem eu cedemos. Durante a minha estadia, soube também que o papel daqueles mágicos Sohantye é estar em contacto directo com os deuses aos quais dão ordens... Recolhi textos extraordinários: «Entro na casa do demiurgo. Toco à porta mas ele não me vê. Degolo a filha dele mas ele não me vê...». Também estão encarregados da caça aos devoradores de almas, aos «feiticeiros» — aqueles que podem apoderar-se das almas. Investidos desse poder, os mágicos são responsáveis pela «ordem espiritual» da aldeia que vigiam durante a noite para dela expulsarem os tyakaw — os tais «feiticeiros devoradores de bia» (alma, sombra, duplo)... É o bia do feiticeiro que os seus próprios bia afrontam. Picam o bia do feiticeiro com uma lança; e o feiticeiro, cuja alma foi picada, é obrigado a entregá-la porque se não o fizer morre. Evidentemente estamos no domínio do imaginário total. O poder que os mágicos têm vem-lhes de uma corrente que o mágico-mestre faz engolir ao filho ou ao seu melhor adepto quando sente que vai morrer. E, no momento em que se cumpre a passagem da corrente, aparece mais um elo na cadeira (A corrente encontra-se no estômago). Fomos sendo informados de tudo isto e, a dada altura, soubemos que ia haver uma festa (por causa da nossa presença a aldeia estava impura...) e que o mestre ia vomitar a corrente. Um dia, ao som dos tambores, um velho veio dançar na praça da aldeia; tinha na mão um sabre com um punhado em forma de cabeça de abutre. O abutre representa o antepassado de todos os mágicos Sohantye, o Sonni Ali que era um cavaleiro com cabeça de abutre; a bem dizer, os corpos do mágico e do feiticeiro Tyakaw ficam em casa. Só as suas almas é que pilham e lutam montadas num


cavalo com cabeça de abutre; o abutre voa no sétimo céu onde ouve os segredos dos deuses para depois os contar aos homens... Enquanto o velho mestre dançava, os contadores tocavam e cantavam: eu não tinha gravador mas filmei a cena a preto e branco. De repente, o velho mestre sentou-se no chão e começou a tremer; abriu a boca e de dentro saiu uma pequena corrente! A minha primeira reacção foi pensar que aquilo era uma ilusão parecida com a corda dos faquires, uma espécie de ilusão colectiva. Mas tirei duas fotografias e filmei a cena pensando para comigo que a Kodak não se deixaria iludir. Quando voltei para Paris, constatei que a corrente estava na imagem. Era semelhante às correntes que se usavam durante a guerra para as placas de identificação. Dava a impressão de ser em cobre. Estava como que suspensa. Todas as pessoas da aldeia tremiam e choravam. Se o «mestre» não conseguisse voltar a engolir a corrente, ia morrer. No momento em que de facto a engoliu, o Damouré e eu estávamos muito comovidos e impressionados... Quando vi as imagens (fotografias e filme), não percebi nada. Contei a cena aos africanos, eles viram o filme mas julgaram que era um truque de cinema. Ainda há pouco tempo uns amigos bastante íntimos voltaram a perguntar-me porque é que eu continuava a insistir nesta história de corrente dos mágicos. E eu respondi: «Porque ela existe». E eles replicaram «Mas nunca mais voltaste a vê-la...». Foi preciso mostrar-lhes outra vez o excerto do filme na Sorbonne. Ficaram desconcertados. Os antropólogos não conseguem confrontar-se com uma coisa que não compreendem... Não se sabe porquê nem como aquilo funciona. Só se sabe como se faz a transmissão de geração em geração: no momento de morrer, o mestre vomita a corrente, o sucessor engole-a. O Boubouh-Ama, antigo Presidente da Assembleia Nacional do Níger, que era um velho amigo e cujo aldeia natal fica muito perto de Wanzerbé, acha que a corrente não é metálica mas sim «orgânica» e que se desenvolve no estômago, de uma forma sobre a qual nada sabemos. E um domínio estranho e perigoso porque com esse tipo de «conhecimentos» pode-se fazer tudo e mais alguma coisa. A partir do momento em que se soube da nossa passagem por Wanzerbé, para todos os nigerianos, eu e o Damouré tínhamos conhecimentos que não queríamos revelar. Muitas vezes temos reuniões na Universidade de Niamey e os estudantes pedem-nos que divulguemos antes da nossa morte os segredos que nos confiaram. S. — Ou seja, é preciso vomitares a tua corrente... J. R. — Eu respondo-lhes que não sei nada de especial tirando «o nome da mãe de deus». E eles insistem para que eu lhes revele o nome da mãe de deus. E eu respondo-lhes que o que é importante é que deus tenha uma mãe. A verdade é que rocei este domínio do conhecimento sem conseguir penetrar nele. Mas foi perto de Wanzerbé que filmei IA CHASSE AU LION À L'ARC e foi esse filme que me pôs em contacto com as divindades locais. S. — Passa-se sempre alguma coisa quando inicias o rito de rodar com a tua câmara? J. R. — Não. No episódio que te contei, entrei num domínio proibido. Nessa mesma aldeia de Wanzerbé, trinta anos depois, o nosso primeiro informador, Mossi Bana, morreu. Soubemos que ele tinha vomitado a corrente e que a tinha dado ao sucessor que organizou um belíssimo ritual funerário de possessão. Durante a rodagem do evento, o sucessor do Mossi parou de repente: vieram anunciar-lhe que a filha tinha morrido durante um parto. E eu parei de filmar dizendo para comigo: «Se continuamos, aonde vamos parar?». Ora, não se pode enterrar uma mulher que morre durante um parto num cemitério normal... Portanto vimos passar ao longe, por detrás do espaço onde se desenrolava o ritual de possessão que parara bruscamente (as crises de transe foram acabando aos poucos), um cortejo de mulheres a chorar que iam enterrar a falecida. Não filmei nada disso. Não quis que a minha câmara penetrasse nesse domínio privado. S. — Há pouco dizias que caminhavas no encalço de alguém que ia ser possuído. J. R. — Estava a fazer alusão a um estado a que chamo «ciné-transe». S. — E especificavas que tinhas dez minutos para conseguir rodar o teu plano... J. R.— Só consegui uma vez rodar um plano--sequência dum ritual de possessão, mas filmei muitos outros. No momento em que o transe ia começar, os dez minutos de película já tinham acabado. Talvez me lançasse cedo demais. Pedi ao Jean-Pierre Beauviala que me fabricasse um «magasin» de meia hora, o que não era muito difícil de conseguir embora se tornasse um tanto volumoso... Ele arranjou um sistema com um só «magasin» que debitava 300 metros de película os quais, uma vez


filmados, iam sendo recuperados num saco colocado mais abaixo. Um saco do tipo daqueles que recolhem a película nos «chutiers» das salas de montagem. Era uma espécie de enorme testículo que eu tinha de carregar entre as pernas. A bem dizer, tive imensa sorte em conseguir filmar um bom plano-sequência dum rito de possessão. Foi um êxito que me permitiu compreender o perfeito funcionamento da abordagem de um rito e descobrir o papel activo da câmara; é a «câmara participante» sobre a qual assentam algumas das nossas teorias. Para o Raymond Depardon, a presença da câmara modifica tudo; ela funciona como um passaporte para o imaginário. Eu fui até ao extremo limite dessa via com o facto de entrar no irreal. No entanto, o processo é demasiado perigoso. Também consegui por um triz evitar a catástrofe em LA CHASSE AU LION À L'ARC. Se o último leão que matámos não tivesse sido atingido no coração pela flecha envenenada do Issaka, teria havido um massacre mas não teria havido filme... Aí eu sabia que tínhamos ido longe demais, que estávamos a correr demasiados riscos. E isso também se passou perto de Wanzerbé... Quando mostrámos o filme em Niamey, para as pessoas de Niamey foi o facto de termos ido a Wanzerbé procurar medicamentos que nos permitiu ir até onde fomos... Em suma, se quisermos entrar no imaginário, é preciso, como na poesia e no cinema, começar pelo fim, no momento em que aparece o sinal «no way out». As pessoas que escolhem esta via sem um «seguro contra todos os riscos», como a Maya Deren, o Artaud, ou todo o grupo do Living Theatre arriscam-se efectivamente a não voltar. E aqui abordo um ponto muito importante: a questão do consumo de alucinógenios e de drogas. No Festival das Artes Negras, em Dakar, eu fazia parte dum júri que tinha atribuído um prémio ao Sembene Ousmane (fui escolhido para membro do júri por causa de LES MAÎTRES FOUS) e assisti como espectador a experiências no domínio do teatro. Katherine Dunham, a responsável americana pelos primeiros «ballets negros», fazia parte do nosso júri e chegara a Dakar com o doutor que tinha inventado o LSD. A teoria dela queria que aquela nova droga inofensiva fosse a solução que o Artaud procurava. A Katherine pretendia seguir o exemplo dos grandes caminhantes que tinham ido ao México buscar a droga pré-columbiana que permitia passar para o outro lado. Eu já tinha observado outras experiências com alucinógenios em África que não levavam a lado nenhum. Mas, se se entrar nesse sistema, é irreversível e está tudo perdido. Pouco tempo depois de Dakar, no Canadá, estive com os meus amigos Michel Brault e Claude Jutra. Este último, que era médico, tinha feito uma série de experiências com LSD, mas acabara por parar, no seguimento dum episódio muito traumatizante: queria ir urinar e não podia porque «uma enorme aranha cortava-lhe o caminho». Ora, o Claude Jutra suicidou-se há quatro anos. Primeiro toda a gente pensou que ele tinha entrado para um convento mas, no fim de contas, atirara-se ao rio Saint Laurent. Encontraram o corpo, quando o gelo derreteu, seis meses depois... Os amigos dizem que ele julgava que tinha uma doença incurável: era cineasta e não conseguia lembrar-se do que tinha filmado na véspera. O facto é que hoje em dia se sabe que a perda da memória é, a longo prazo, uma das sequelas do consumo de LSD. Portanto o Claude suicidou-se por causa de uma doença que talvez não tivesse. Pessoalmente, não levei muito tempo a formar uma opinião sobre o consumo de drogas quando, logo após a guerra, voltei a encontrar um dos meus camaradas de Brest que se tornara oficial da marinha e que tomava ópio desde que regressara da Indochina. Esse amigo estava convencido de que me podia converter aos seus «paraísos artificiais» mediante uma experiência de diálogo comigo. Eu possuía na altura um dos primeiros gravadores com fita de aço; ele fumou, eu não, se bem que o cheiro do ópio não me incomodasse, e depois falámos durante meia hora. A conversa não tinha interesse nenhum mas ele julgava que éramos ambos puramente «geniais». Alguns dias depois, mostrei-lhe a gravação. Foi terrível! O cúmulo da patetice... No fim, perguntou-me porque é que tinha ficado com a ilusão de que o diálogo fora extraordinário quando na realidade nós parecíamos dois palermas a conversar. Para mim esta experiência foi definitiva. Infelizmente para ele não... S. — Claro, o ópio dá-nos impressão de fazermos o que não fazemos. Julgamos que comemos e não arredamos pé donde estamos, por exemplo. É a negação do acto. J. R. — Infelizmente, o consumo das drogas marcou toda uma geração. Depois de Maio de 68 muita gente partiu para não mais voltar! Aliás, posteriormente perguntei ao tal amigo de Brest


porque é que ele tinha começado a fumar ópio e ele confessou-me que se virara para a droga no seguimento duma experiência militar horrível: enquanto oficial da marinha, tinham-no mandado para Madagáscar, logo a seguir à guerra, com a missão de reprimir as primeiras revoltas locais. Ficara encarregado de destruir as aldeias rebeldes. Tinha embarcado com alguns jovens voluntários da Bretanha e, a dada altura, antes de incendiar uma aldeia, mandou passar uma revista às cabanas para que ninguém morresse durante a operação. Ora, ao dar ele próprio uma derradeira volta à aldeia, descobriu que os jovens fuzileiros tinham amarrado alguns velhos porque... em tempo de guerra não há lugar para humanismos. Nunca se recompôs desse episódio: na sua própria etnia havia jovens prontos para se tornarem assassinos! Então, abalou para a Indochina e desatou a fumar ópio. Nesse domínio particular da pesquisa etnográfica sobre a possessão, um dos nossos colegas estudou em Maradi, no Níger, a possessão das mulheres Bori que entram em transe sob a influência da datura. A possessão provocada pela datura é de facto um processo à parte visto que não se é possuído pelas divindades, é-se possuído por si próprio. A possessão estimulada pela datura é uma «possessão oca». S. — Claro que é sempre possível imitar... J. R. — Para certos investigadores a droga é um elemento tranquilizante porque serve de explicação racional para tudo. Podem perfeitamente dizer: «Pronto, o Rouch nunca tinha descoberto que o consumo da datura explicava o fenómeno da possessão». Só que os «meus» mágicos de Wanzerbé não absorvem estimulante nenhum, engolem uma «corrente» bem real — a Kodak não mente — só que eu não sei mesmo de que é que se trata... O mesmo acontece com muitos documentos e testemunhos que recolhi; os meus sucessores encarregar-se-ão de encontrar explicações. A etnografia é exactamente isso... Uma vez, aproveitei uma missão da OMS, que pretendia verificar se os habitantes da região de Wanzerbé eram tuberculosos, para pedir ao médico da equipa que fizessem uma radiografia ao estômago do mestre depois daquela que lhe iam fazer aos pulmões... Quando ele regressou a Niamey, perguntei-lhe o resultado da radiografia; infelizmente o gerador de electricidade tinha avariado mal chegara a Wanzerbé... Outra vez, voltei a Wanzerbé com um administrador encarregado de fazer um recenseamento que estava muito interessado em conhecer o mestre da corrente; no momento em que lhe apresentei, o administrador começou a vomitar e desmaiou... As náuseas foram atribuídas a uma insolação e ao abuso do whisky, o que é de facto altamente provável... Pronto, hoje a seca destruiu tudo em Wanzerbé... O investigador americano Paul Stoller (que escreveu um livro sobre mim intitulado «Jean Rouch, The Cinematic Griot» — Washington Press) foi trabalhar para Wanzerbé e fez um texto muito engraçado chamado «O filho de Rouch» («Son of Rouch»). Como era professor de inglês em Tillabery, começou a frequentar os Zima e estava quase a «converter-se». Quando quis ir até Wanzerbé, disseram-lhe que tinha de viajar a cavalo (como o Rouch). Então, durante o trajecto, quis repetir os mesmos gestos e actos que eu («O Rouch dormiu debaixo desta árvore!»). Em Wanzerbé foi encaminhado para o círculo das mulheres mágicas, dirigido por uma misteriosa chefe, a Kassey. Foi nessa altura que começou a perder o recuo em relação à religião mas actualmente está a conseguir libertar-se (adoptando o itinerário certo — «acreditar na crença» mantendo-se igual a si próprio — com a desvantagem de não estar protegido pela câmara). S. — Portanto, para ti, o cinema é um instrumento que nos pode fornecer chaves. J. R. — O nosso papel é descobrir a utilização dessas chaves. R. G. — É o cinema enquanto instrumento de conhecimento? J. R. — Sim, é um instrumento de conhecimento. R. G. — Que não exclui o resto, aliás... S. — Digamos que a tua proposta está para além do discurso estético clássico sobre o cinema. J. R. — Quando em 1954, mostrei pela primeira vez LA CHASSE À L'HIPPOPOTAME (BATA1LLE SUR LE GRAND FLEUVE) na ilha de Ayorou onde o filme tinha sido rodado em 1951, as pessoas conheciam-me como engenheiro. Já tinha passado a minha tese, fazia fotografias, mas foi a linguagem dos meus filmes que me permitiu exprimir da melhor maneira aquilo que


doutra forma teria sido mal compreendido. Ao verem-me voltar depois da guerra com os meus aparelhos bizarros, julgaram que eu era como todos os antigos combatentes enlouquecidos (a caso era bastante corrente...). Em contrapartida, quando apresentei o meu trabalho, começaram a criticarme. Por exemplo, perguntaram-me porque é que tinha posto música por cima da caça ao hipopótamo. Respondi-lhes que era a música de Gawey-Gawey que dá coragem aos caçadores. E eles replicaram que se o hipopótamo ouvisse aquela música ia fugir de certeza absoluta. Aí disse para comigo: «Merda, eles têm razão!». Portanto, ao suscitar um discurso crítico, o filme transformou-se num elo, num passaporte de comunicação entre duas culturas. S. — Quer dizer que o filme deve respeitar um rito. J. R. — Claro. Então o Tahirou Kore, caçador de leões propôs-me filmar leões que «são bem mais formidáveis do que os hipopótamos». Foi assim que rodei LA CHASSE AU LION À L'ARC. O Damouré, muito orgulhoso do sucesso que obteve com a cena em que brincava com o bebé hipopótamo, tornou-se actor e rodou o JAGUAR comigo. Desde então consegui projectar os meus filmes, mostrá-los às pessoas, ter um feed-back, apresentá-los, por exemplo, aos Dogon. Com os Dogon filmámos o ritual do Sigui que acontece de 60 em 60 anos, que o Griaule havia descoberto em 1930 e do qual eu tinha tido conhecimento através da revista «Minotaure». O Sigui teve lugar, durou 7 anos e realizámos um filme que se prolongou durante esse período. Depois tentámos fazer uma síntese. O Sigui é um ritual itinerante, extremamente complicado que, ao longo de 7 anos, vai de grupo de aldeias em grupo de aldeias e, ao cabo desses anos todos, volta ao ponto de partida. O ritual comemora «a invenção da morte e da palavra articulada». Esta história transporta-nos porventura para a época do Homo Habilis que se transformou em Homo Sapiens. A partir dessa altura, o homem começou a falar, inventou a palavra articulada e ao mesmo tempo inventou a morte. Outrora o homem era imortal bem como os animais porque não sabia que podia morrer como os seus pais e avós. Logo que começou a falar, teve de inventar os rituais funerários. É sobre isto a grande gesta do Sigui. Os três primeiros anos são consagrados aos rituais da morte: colocação no cemitério do cadáver impuro; danças de enterro; «dama», fim do luto e fabricação de uma grande máscara. Os quatro anos seguintes são os anos dos rituais de vida: procriação através da palavra clamada; nascimento dos homens novos que saem da placenta da terra-mãe; criação dos novos seres que são ainda rapazes e raparigas ao mesmo tempo; circuncisão que os transforma em homens; por fim, regresso a Yougo Dogorou donde o Sigui partirá sessenta anos depois para o seu novo périplo. Tive a sorte de poder filmar este ritual com a Germaine Dieterlen e depois, com a ajuda do padre Dogon, de montar uma síntese cinematográfica do material (SIGUI SYNTHÈSE), agrupando cada ritual anual por sequências dedicadas a um só rito itinerante de um grupo de aldeias para outro e com uma duração de 7 anos. Apresentámos o filme de duas horas e meia que daí resultou aos próprios Dogon (o antropólogo cineasta belga Luc de Heusch filmou esta experiência) que pela primeira vez descobriram a cadeia ritual completa da qual só conheciam alguns elos. A Germaine Dieterlen, encantada com a confrontação, pediu a um dos seus velhos amigos Dogon algumas explicações sobre certos rituais. O Dogon, que teria 90 anos à vontade, declarou: «Não lhe posso responder, minha senhora, porque é a primeira vez que estou a ver isto. Esperemos pelo próximo Sigui e então se verá...». O próximo ritual terá lugar em 2027 e nem um nem outro assistirão às cerimónias, mas ambos faziam de conta, faziam «como se». Esta experiência singular impressionou-me imenso e durante muito tempo meditei sobre aquela resposta louca para perceber qual era o sentido exacto das palavras do velho Dogon. Ora, de facto, a declaração dele é perfeitamente explicável: desde 1930, a partir da chegada às Falésias do Marcel Griaule, os Dogon tinham recebido as visitas sucessivas de três gerações de investigadores (para eles, eu era o «neto do Griaule»); portanto, parecia-lhes absolutamente normal que as visitas continuassem e os visitantes assistissem aos dois ou três próximos ciclos do Sigui. A quarta geração — os «bisnetos de Griaule» — já lançou mãos à obra: a Nadine Wanono já fez várias visitas de estudo à falésia, já filmou documentos em super 8 e já defendeu tese; o amigo dela


de Nanterre, Philippe Landaux, trabalhou com os pescadores Bozo do rio Níger (os «pais a brincar», dos Dogon) e também já defendeu tese. Portanto, em 2027, lá estarão eles visto que agora são jovens... O resultado destes contactos foi uma proposta formidável: fazer um contrato com os Dogon de inquérito filmado sobre o povo Dogon, projecto que incluirá os quatro próximos sigui, ou seja — 4 x 60 = 240 — que se estenderá pelos próximos 240 anos. O CNRS devia assinar um protocolo com o governo do Mali que salvaguardasse este projecto maravilhoso fora do tempo. R. G. — Tudo isso é absolutamente extraordinário e totalmente diferente daquilo que as outras pessoas do cinema fazem. Qual é a tua reacção com as pessoas que fazem um cinema diferente do teu? J. R. — Tenho muita curiosidade em conhecer o trabalho dos outros porque adoro cinema. Mas não faltam discípulos que aos poucos se juntam à nossa causa. O Raymond Depardon é um deles, um cineasta vindo da profissão de repórter. Estou a lembrar-me de um sujeito que trabalhou aqui em Portugal, um antigo estudante de Nanterre chamada Philippe Costantini. É um realizadorcameraman que filmou uma crónica — NOS COUSINS D'AMÉRIOUE — sobre os portugueses de New Bedford. Também realizou um documentário sobre a Páscoa em Portugal: a Paixão de Cristo representada numa pequena aldeia. Há ainda o realizador do IRACEMA o brasileiro Georges Boldansky. Sem falar do grupo do Quebeque — Michel Brault, Claude Jutra — e de toda a escola do ONF (Office National du Film) de Montréal. Nos EUA temos o Richard Leacock e o John Marshall... A escola de Londres foi criada numa perspectiva semelhante... Embora todos os anos veja muitos trabalhos novos, poucos são os cineastas que levam as experiências até ao fim. Os jovens cineastas têm tendência para saltar dum cinema de pura pesquisa para um cinema ficcional totalmente quadrado e enquadrado na estética clean (o que implica equipas técnicas numerosas, grandes meios, etc.). Entre as pessoas da Nova Vaga, havia relações muito estreitas. O Rohmer, o Rivette e o BarbetShroeder, por exemplo, visionaram os rushes do PETIT À PETIT durante 13 horas; começámos de manhã e acabámos à noite. Mas, tirando o Godard (LES CARABINIERS) ou o Barbet-Shroeder com o Nestor Almendros à câmara (AMIN DADA), eu fui o único a continuar a rodar em 16 mm e quase nenhum deles ousou ser o seu próprio cameraman. Todos passaram para um sistema onde se pretende que esse trabalho seja confiado a outra pessoa. A diferença é que com eles não existe cinétranse. Não podem dizer ao operador tudo o que o seu olhar e a sua intuição lhes ditam. Quem vê é o operador e não eles. S. — Mas eu percebo que se delegue essa tarefa. Tenho sempre necessidade de passar por outra pessoa. Contudo, neste momento cheguei a uma solução extrema: no meu último projecto a câmara é fixa, não está ninguém atrás dela. J. R. — E foi o que aconteceu ao Godard com o Raoul Coutard. LA CHINOISE é em plano fixo. Uma câmara perante a qual os actores improvisam. Para mim o que funciona melhor é a câmara de contacto. A título de exemplo, vou contrapor o caso do Stanley Kubrick com THE SHINING. Em Aquila, perto de Roma, realizou-se um encontro a propósito da steady-cam. O Kubrick explicou-nos que tinha encontrado um cenário natural, um hotel real, completamente barroco, no extremo Norte, que correspondia àquilo de que precisava. Mas as portas do hotel eram demasiado estreitas para deixar passar a steady-cam. Então mandou reconstruir o décor. Eis, para mim, um exemplo acabado de estupidez, apesar de eu considerar o Kubrick um tipo extraordinário. Porque é que não mandou alargar as portas? A esta pergunta respondeu-me que isso o obrigava a um itinerário privilegiado. E daí? O itinerário em questão não era mesmo privilegiado na história do filme? Com a cena do labirinto no fim da fita o problema é idêntico. Aquilo existia. Ainda que ele fosse obrigado a andar a tremer, o resultado teria sido melhor. Aliás, perante uma coisa tão aterrorizadora, a câmara a tremer seria o efeito mais normal deste mundo. S. — Por um lado, há o abandono do formato 16mm, por outro, uma grande preocupação de controlo absoluto... J. R. — L'AMOUR FOU do Jacques Rivette devia ter sido rodado por ele próprio à câmara, a qual teria desempenhado o papel de «passaporte».


Mas devo dizer que existem grandes cameramen, como é óbvio. S. — Nunca tive a oportunidade de o conhecer. Mas sempre tive vontade de falar com ele... J. R. — O Rivette é um tipo que tinha excelentes contactos com as pessoas. Mas o que ele faz hoje em dia é no estilo fazer render o peixe daquele grande sucesso de bilheteira intitulado LE GRAND BLEU (devo confessar que esse êxito de bilheteira continua a ser para mim um mistério impenetrável...). S. — LA BELLE NOISEUSE é um filme emblemático. O Rivette filma um ritual mas, como o ritual é falso, de facto não filma nada. J. R. — E é tão fácil transformar as coisas quando se assume a câmara... Portanto, eu continuo na mesma via porque considero que a ficção e a realidade são a mesma coisa. Invento histórias como aconteceu com o moinho do MADAME L'EAU. O moinho de vento veio da Holanda para o Níger e funciona. A ficção tornou-se realidade mas a realidade pode tornar-se ficção. MADAME L'EAU acaba com uma visão imaginária: os engenheiros conseguem cultivar tulipas negras com a instalação do moinho. Eu tinha previsto que o moinho não ia funcionar, portanto tinha trazido para o Níger 5.000 tulipas negras de plástico... o que é incrível é que o moinho tenha funcionado. Quando mostrei o filme em Niamey, perguntaram-me por que é que não tinha mostrado as etapas de cultivo das tulipas. O que prova que o imaginário funciona sempre. R. G. — Esse papel do imaginário na transformação do real lembra-me a Irlanda que é um país original, o único país que eu conheço onde anda se fala de revolução. Como se lá ainda houvesse algo para conquistar, para descobrir. A revolução é o continente oculto dos irlandeses. J. R. — Na época de «La Cause du Peuple», em Maio de 68, a posição do Sartre era difícil. Ele e a Simone de Beauvoir não podiam ser anónimos, não podiam tornar-se elementos da multidão. Como o Sartre queria ser preso, vendia «La Cause du Peuple». Um dia até me pediu para ir filmá-lo. Em Maio de 68 não filmei nada, tirando uma coisinha à saída das Belas-Artes; nos últimos dias, tinham posto um macaco numa gaiola com um letreiro que dizia «Eu voto». Fui filmar o Sartre para os lados do Boulevard Raspail mas, evidentemente, o homem não foi preso. Algum tempo depois, mandou-me um bilhetinho pela mão dum italiano, pedindo-me para ajudar aquele camarada e garantindo-me que podia ter absoluta confiança nele. O italiano perguntou-me como é que se podia transportar um emissor-receptor de forte potência que pesava uma tonelada. O sujeito pensava que para mim e para os nossos amigos cineastas a coisa era possível. A minha primeira reacção foi desatar a rir à gargalhada mas depois telefonei a um amigo meu, Sandro Franchini, que era neto do Severini. Esse amigo trabalhava no Centro Experimental e tinha desempenhado o papel da criança no EUROPA 51 (o pai dele era escultor e, no filme, ele era filho da Ingrid Bergman). Quando recebeu o meu telefonema, não levou logo o assunto a sério. Depois disse-me que vinha a Paris na semana seguinte, que depois se veria. Informou-se junto de camaradas dele e veio a saber que o emissor era para um posto de ligação entre as Brigadas Vermelhas e o Khadafi. A instalação do posto tinha por objectivo preparar um grande golpe. O Sandro tinha arranjado pessoas dispostas a vir buscar a máquina com uma camioneta mas achava que a malta ia ser presa na fronteira... Era um combate perdido à partida. Claro que não se tratava de armas mas era um aparelho militar que vinha dos países de leste. Acabámos por arranjar uma desculpa para dizer que não ao Sartre: a fronteira italiana estava a ser ferozmente vigiada e os cineastas eram os primeiros da lista negra... o Sartre aceitou as nossas explicações e o magnífico aparelho deve andar perdido por algum sótão... S. — Lembro-me de ter vivido um episódio um pouco semelhante: confiaram-me um embrulho que eu era suposto guardar durante 24 horas. Ao fim desse prazo, ninguém me contactou. Então fui ver o que o embrulho continha. Eram 20 kg de explosivos. Perguntei a mim próprio se não seria de utilizar aquilo para filmar qualquer coisa. Foi aliás um dos meus últimos projectos na época em que ainda vivia em Paris. A questão era escolher o alvo a fazer explodir para que valesse a pena fazer um filme. No fim de contas, optámos pelo Arco do Triunfo na Praça de l'Étoile porque eu queria rodar um travelling circular. Andava obcecado com o travelling circular... Nas nossas conjecturas filmava-se à volta do Arco do Triunfo, apanhava-se o tipo mascarado que ia colocar os explosivos e continuava-se a tomada de vista até à explosão do monumento.


O filme era apenas o acontecimento e o que depois se iria passar. Comemos e bebemos alegremente a discutir este projecto durante dois dias e duas noites. Mas no fim apareceu alguém... J. R. — Que veio buscar o embrulho. S. — Recebemo-lo com insultos. Afinal de contas tínhamos inventado uma utilidade para o tal embrulho. J. R. — E o que é que eles fizeram explodir? S. — Não sei. Todas essas histórias acabaram muito mal. J. R. — A história do Sartre era talvez uma armadilha mas ele não se dava conta desse risco. Meditei muito sobre o assunto com o Sandro... Era no tempo das Brigadas Vermelhas. Houve um fenómeno muito interessante sobre o qual não se fez nada: o aparecimento dos «padre-mitra», os padres-metralhadora. Em certas igrejas, entravam violinistas com estojos de violino que continham metralhadoras que os padres guardavam na sacristia. E isso correspondeu a outro fenómeno apaixonante: o desenvolvimento das igrejas «pentecostistas», no seio da igreja católica romana. Voltamos a encontrar nestas «seitas» a «glossolalia» de LES MAÎTRES FOUS. Existe aliás um filme formidável, realizado por encomenda do Vaticano, que se interroga muito seriamente sobre a questão: se é certo que os desígnios de Deus são impenetráveis, por que razão o pentecostismo está a desenvolver-se no seio da igreja romana? A RAI realizou duas ou três horas de documentário que contêm sequências extraordinárias; em Rimini, por exemplo, um padre paramentado interrompe de repente o sermão e começa a falar em glossolalia (em «antigo inca») e, como em LES MAÎTRES FOUS, há um assistente que interpreta; numa outra igreja, perdida no meio da Sicília, durante o sermão, uma mulher fala em mexicano... Mais recentemente, em Paris, numa cripta de Saint Sulpice (onde se reúnem os pentecostistas), uma das minhas estudantes encontrou uma personagem, um bocado iluminada, que estava a guardar a entrada. (A estudante tinha ido ao local para uma sessão de repérages). O guarda pousou a mão na cabeça da moça e perguntou-lhe: «Minha irmã, acreditas em deus?». Ela respondeu afirmativamente. E o tipo disse-lhe: «Então é preciso GRITÁ-LO!». A estudante fugiu. Portanto ficámos sem saber o que se passa em Saint Sulpice às quintas-feiras... S. — Passámos da resistência enquanto comportamento individual a uma resistência supostamente organizada e completamente manipulada por dentro. R. G. — Foi a melhor maneira que o poder encontrou para neutralizar a esperança. O terrorismo instituiu o pânico. Tomadas de pânico — medo de constarem dum livro de moradas, medo de serem incomodados por terem dito, feito ou pensado algo de radical — as pessoas ficaram mudas e quedas. O poder conseguiu, através duma subtil caça às bruxas, entalar toda uma franja da população que queria a mudança. S. — Em Portugal, a mudança de comportamentos foi visível em pessoas que tinham um passado de resistência recente. Depois do golpe de estado, a resistência foi vista como uma forma de terrorismo. Como é que se vira o bico do prego em tão pouco tempo? J. R. — Conheces o filme do Michel Brault LES ORDRES? É um filme sobre a Frente de Libertação do Quebeque no qual ele analisa esse problema. Quem distribui o filme é o Lelouch. Passou em Cannes há dez anos. O Brault rodou-o em cinemascópio a preto e branco... para que não fosse cinema-verdade. No filme as pessoas são presas e a explicação daqueles que as prendem é sempre a mesma: «São ordens. (Ce sont les ordres)». A gente do Quebeque nunca se recompôs dessa experiência dolorosa encenada por um Senhor misterioso chamado «Les ordres». Com histórias inverosímeis de solidariedade com os índios depois do caso Levêque, pelo meio. No lago dos Trois Frères, construíram uma central eléctrica que alimenta os Estados Unidos. Os índios que viviam nessa zona (eram uns vinte) fizeram um processo porque o terreno onde caçavam tinha sido inundado. Com o dinheiro das indemnizações que lhes pagaram, os índios ficaram milionários e investiram no imobiliário. Portanto desapareceu o terreno de caça e resolveu-se o problema pelo absurdo, aplicando uma lei de país industrializado a uma comunidade que vivia de caça e de colheita. R. G. — Isso tudo está em LES MAÎTRES FOUS. J. R. — Lá isso é verdade.


S. — Há pouco a Regina falou da Irlanda. A Irlanda é a prova de que existe uma guerra dentro da nossa civilização. J. R. — E a Sérvia? É uma guerra de religião. De repente, estamos no tempo das Cruzadas. S. — Mas a informação é tão manipulada que não sabemos ao certo a razão de tal guerra. R. G. — Aqui recebemos a guerra sob forma de guerra audiovisual. A guerra aqui consiste na forma como recebemos as imagens da guerra lá. Com as imagens que recebemos, o poder consegue manter as pessoas passivas. S. — Lembro-me de ter descoberto, absolutamente por acaso, mandatos de captura pregados na parede dum posto de fronteira francês, no tempo do bando do Baader. O advogado do Baader era procurado pela polícia bem antes de ter sido oficialmente acusado... meses antes da acusação oficial. J. R. — Isso só prova que existe uma força «secreta» chamada polícia. Os conflitos entre a polícia e a comunidade messiânica nos EUA, por exemplo. Queriam eliminá-los porque eles representavam a DESORDEM. S. — Hoje sinto-me incapaz de partilhar o sonho social. Em contrapartida, gostaria de ser capaz de captar certos fenómenos de base e de fazer um filme sobre a esperança que nos resta. Foi o que tentei fazer quando rodei um documentário sobre todas as pessoas da minha rua, levando-as a falar, a contar as histórias delas. A memória da minha rua é o êxodo rural, a resistência contra o fascismo, a vida durante a ditadura, a renúncia aos ideais... Um antigo militante confidenciou-me, por exemplo, que nos jornais passou a ler apenas as páginas consagradas ao desporto; e concluía dizendo que se lhe perguntassem o que é a Perestroika ele seria incapaz de responder. J. R. — Tens razão no sentido em que estás a reduzir o teu campo de investigação a um espaço preciso. É como no provérbio inglês «Two is company, three is a bore». R. G. — O capitalismo é um grande caos que vai encontrando sucessivas estratégias de reajustamento que possibilitam um equilíbrio precário. É preciso mostrar o que está em jogo quando esses reajustamentos se operam. Os intelectuais esquecem-se demasiadas vezes de se debruçar sobre a natureza das mudanças e perdem-se em tentativas de reconstrução de ideais e de referências no domínio do geral e à escala universal quando o seu papel deveria ser dar a ver a «diferença». J. R. — No princípio deste ano, integraram LES MAÎTRES FOUS num programa consagrado aos Vampiros... porque no filme há sangue. Eu estava em Paris, mas ninguém me pediu a minha opinião. E no entanto eram pessoas minhas conhecidas que não são nada estúpidas. Mas estão tão dentro do sistema que já não se importam. Desde que o produto passe tal dia, a tal hora, em tal lugar, ficam satisfeitas. R. G. — Mas por detrás dessa apatia, há quem aplique uma estratégia que consiste em meter tudo no mesmo saco para que as coisas se tornem inexpressivas, inofensivas. J. R. — No meu filme havia um sacrifício, logo havia sangue e portanto uma suposta relação com os vampiros. S. — A verdade é que já ninguém tenta estabelecer relações entre realidades, muito diferentes. Toda a gente se contenta com as relações superficiais. J. R. — Em Maio de 68, tínhamos formado um grupo chamado «Grupo de Acção Imediata». E íamos para todo o lado de 2 CV para tentar dar conta das coisas que por toda a parte iam acontecendo. Um dia recebemos um telefonema do Museu do Homem; disseram-nos que estavam com a impressão de que o exército se preparava para utilizar o metro. Queriam que defendêssemos o Museu do Homem. O Leiris, o Rouget e os amigos tinham ocupado o gabinete do director onde se encontrava a mulher do Ministro do Interior da altura. Portanto, lá fomos nós «defender» o Museu só porque um tipo tinha ouvido uns rumores suspeitos. Foi um «jogo» intensamente dramático. Desmontámos as bombas de incêndio para receber os assaltantes. Esperámos e depois fomos dormir para a biblioteca. No dia seguinte, voltámos a colocar tudo no sítio. Noutra ocasião, alguém do


grupo — talvez eu próprio, que horror! — teve a ideia de ir deitar cianeto nos canos que alimentavam os quartéis dos CRS. Debatemos o projecto durante uma hora até nos darmos conta que íamos matar milhares de pessoas inocentes e que nunca mais conseguiriam limpar as canalizações. Isto para não falar da dificuldade em arranjar cianeto; tinha de ser através do amigo de um amigo que era farmacêutico... É extraordinário que tenhamos chegado àquele ponto. Claro que era conversa de chacha. Mas queríamos passar à acção. Durante o mês de Maio de 1968, andámos à porrada, andámos a atirar paralelepípedos, houve alguns confrontos com a polícia, umas tantas detenções. No fim de contas, quem melhor compreendeu a situação foi o próprio Cohn-Bendit e, embora eu não goste muito do discurso dele, acho que tem razão. O Prefeito da Polícia escreveu um livro sobre Maio de 68. Ele conseguiu transformar uma revolta numa espécie de «sociodrama», com cenas espectaculares mas sem grandes perdas e danos. Vou-vos contar outro episódio. Um dia, arrombámos as portas da Bolsa e incendiámos o recinto; descemos os «grands Boulevards», cruzámo-nos com a CGT, desatámos a insultá-los e acabámos por ir parar à Opera. O nosso slogan era «Somos todos judeus alemães». No fim, estávamos um bocado cansados porque tínhamos percorrido uns bons quilómetros a pé, por vezes mesmo a correr. De repente, um tipo sugeriu: «Camaradas! O Eliseu é aqui mesmo à beira! Vamos ocupar o Eliseu!». Era a grande hora da verdade. Mas houve logo outro sujeito que propôs que fôssemos primeiro descansar e beber um copo. Depois do copo, voltámos ao Boulevard Saint Michel e de lá não saímos. Em contrapartida, nas Universidades americanas a coisa foi muito mais dura. A matraca americana é sanguinária. Em Paris a coisa foi suave: éramos jovens e corríamos depressa. S. — Em 68, tinha treze anos e não percebi grande coisa. Mas depois apercebi-me de que essa época de insurreição, à escala mundial, correspondeu a uma mudança de grupo no poder no mundo ocidental, enquanto no Terceiro Mundo, na Mauritânia, por exemplo, a repressão foi sangrenta. Se a polícia em Paris não se mostrou demasiado repressiva foi porque sabia que a elite dos estudantes ia chegar ao poder. J. R. — O resultado foi a demissão do De Gaulle. S. — Não só. O resultado foi que os actores da revolta passaram a controlar os media. J. R. — Certo, mas não te esqueças de que a CGT não aderiu ao movimento. Na área do cinema, tínhamos previsto uma greve activa. S. — Não digo que as coisas não tivessem podido evoluir doutra maneira... J. R. — O metropolitano devia organizar greves em que as pessoas não pagassem, mas o serviço continuasse. Nós, queríamos impor o cinema gratuito e pôr o laboratório a funcionar enquanto íamos rodando os filmes para podermos mostrar o que estava a acontecer à medida que a coisas iam acontecendo. Nos Estados Gerais do Cinema, incumbimos o William Klein de fazer um filme (demos-lhe a película). Como não podia mandar revelar o filme em França, tinha de enviar o material para a Bélgica ou para a Suíça. A ideia era que o cinema se revoltasse e viesse a intervir nos acontecimentos. Conhecem o Abraham Segal que realizou um filme chamado VAN GOGH À L'HÔPITAL? Era responsável, num anexo da Sorbonne, pela cinemateca Jean Vigo na qual havia filmes que íamos apresentar a Jussieu. Eu e o Jean Douchet. Mas este tipo de acções não levou a nada. Lembro-me duma sessão que foi filmada pelo Klein, na Sorbonne, com os anarquistas espanhóis. O discurso deles era incrível. Aliás acabaram a intervenção com a palavra de ordem «Viva la muerte!». E sabiam do que estavam a falar. No nosso «Grupo de Acção Imediata» decidimos que precisávamos de adquirir armas porque a polícia estava armada. Mas nunca chegámos a fazê-lo. A bem dizer houve uma mudança importante: Maio de 68 foi a primeira desventura do Partido Comunista. Mas os anarquistas nem por isso conseguiram fazer triunfar a mensagem que queriam transmitir. Nos EUA as coisas foram um pouco diferentes. O Kramer rodou o ICE que é a história duma revolução que não aconteceu, que não podia acontecer. S. — Mas o GUNS de certa maneira era um filme policial... J. R. — É o ponto de vista de um realizador. S. — Ao filmar a minha rua, encontrei tudo. Até encontrei refugiados do Irão. A minha rua é um reflexo do mundo.


R. G. — Ora aí é que eu não estou nada de acordo. Nem tudo é reflexo dessa macro-identidade chamada mundo. É precisamente por nos fazerem acreditar que tudo é reflexo de uma ordem «pública» que conseguem convencer-nos de que essa ordem é demasiado forte para podermos desafiá-la e que mais vale cruzarmos os braços. Acho que devíamos estudar a grande mudança que aconteceu no tecido social. A extraordinária expansão do sector terciário fez com que nos países desenvolvidos tenha aparecido toda uma classe de pessoas que trabalham, ou melhor têm empregos — empregos, aliás, não raro precários e temporários — mas que não têm profissão. Para além da questão do desemprego — sobre o qual se produz um discurso político primário, eleitoralista e desonesto —, existe o problema real dessa massa de pessoas sem estatuto, que não podem aspirar a um reconhecimento social do seu trabalho como apesar de tudo acontecia com o pedreiro, o carpinteiro, o pescador, o mecânico, etc. O mundo dos ofícios das 7 famílias desapareceu. O que é que vai acontecer com essa franja da população que, à falta de um lugar próprio nas estruturas produtivas, está condenada a tapar buracos no melhor dos casos? Já se pressente um afrontamento grave entre as pessoas que pertencem a categorias sócio-profissionais muito especializadas (as quais têm uma imagem hiper-valorizada do seu trabalho) e as vítimas do terciário que são a maioria da população. Estas últimas — e isto já é visível em Portugal — não são nada porque o trabalho que fazem não tem nem contornos nem definição... aos seus próprios olhos. Quando por toda a parte se exige que as pessoas tenham «perfil»... J. R. — Estás a levantar um problema que só a utopia e a poesia podem resolver, talvez ocultandoo... Às vezes, ser professor de cinema serve para alguma coisa. Tenho uma estudante americana que é filha duma família de físicos. Foi aluna do Richard Leacock no Massachussets Institute of Technology (MIT). Um dia, mostrei-lhe um filme que realizei com os Dogon. Ela andava a rodar um filme sobre um escultor chamado Jason que estava doente; o sujeito fazia esculturas monumentais que não eram colocadas em lado nenhum. Ao ver o meu trabalho, disse-me que queria fazer um filme etnográfico sobre os físicos que estudam as partículas. Dirigiu-se ao CERN e foi bem recebida porque é filha de físicos. Realizou o primeiro filme quando o CERN teve o prémio Nobel, há dez anos. Na sua abordagem descobriu que, actualmente, uma experiência de Física, tendo em conta toda a tecnologia posta ao serviço da investigação, leva dez anos para ser explorada. Um jovem italiano, por exemplo, declara que na sua vida inteira talvez faça três experiências. Entretanto, a minha estudante rodou outro filme, no corrente ano, em que mostra uma experiência fantástica, feita com um material que custa os olhos da cara, e para a qual a exploração dos resultados passou a ser na ordem dos trinta anos ou seja uma vida inteira. Eu, que sou analogista surrealista, comentei o fenómeno da seguinte maneira: «Vocês são uma sociedade endogâmica — a minha estudante casou, aliás, com um físico — e reproduzem-se para dar ao mundo crianças que hão-de continuar as vossas experiências...». O aumento de duração das experiências do CERN implica, segundo os físicos que não são idiotas, que o CERN vai fechar daqui a cinco anos, porque as ditas experiências já não são programadas à escala duma vida humana. Claro que o abandono deste ripo de investigação tem consequências importantes. É preciso constituir grupos, castas profissionais, como a dos ferreiros que é a categoria profissional mais desprezada de África ocidental. Com a casta dos ferreiros ninguém se quer casar. (Há uma lenda que diz que quando um homem-livre faz amor com uma mulher-ferreiro, no dia seguinte tem dois centímetros a menos...). Na mitologia Dogon, há duas personagens que foram criadas tardiamente: o ferreiro e o contador que representam a «Faculdade de Ciências» e a «Faculdade de Letras» em termos de saber. É necessário arranjar soluções imaginosas como as deles. O nosso contrato com os Dogon em relação ao ritual da invenção da morte e da palavra poderia servir de modelo utópico aos investigadores do CERN: devemos sonhar com coisas que só trarão resultados ao cabo de várias gerações. Por outro lado, quando as pessoas têm paixões fortes, a sua esperança de vida aumenta. Seja, como for, actualmente a esperança de vida aumenta em média um ano de dez em dez anos. Quase se pode afirmar hoje que o Manoel de Oliveira é um dos primeiros protótipos dessa nova espécie de homens, que há-de viver até ao dia em que os estudantes da Faculdades de Arquitectura terão mudado o rosto da cidade do Porto e portanto, daqui a 150 anos, ainda cá estará, sobrevivendo


misteriosamente graças à sua paixão pelo cinema. Nós, pelo nosso lado, aplicamos esta bela hipótese, e já andamos a formar a terceira geração da escola do Marcel Griaule. Tenho um amigo chamado Jean-Claude Simon — que aliás entrou num filme meu, intitulado LA PUNITION; fazia o papel dum tipo que engatava uma rapariga nas margens do Sena — que desenvolve uma pesquisa no domínio da «palavra automática». É um jovem físico com mais de sessenta anos, professor em Paris VI, cujo sonho louco é criar uma máquina que escreva aquilo que oralmente se diz (já inventou um aparelho que fala quando se escreve). Está portanto a lidar com o problema da criação duma língua artificial. Durante um debate com os colegas, o Jean-Claude Simon chegou à conclusão de que em 2020, em França, as ocupações da população serão as seguintes: 4% das pessoas no sector agrícola; 5% no sector industrial e... uma esmagadora maioria de pessoas sem emprego. Mas, para que a estrutura social continue a funcionar, é preciso que essas pessoas sem emprego desenvolvam um trabalho intelectual considerável. Por conseguinte, haverá uma maioria de desempregados, viva o desemprego! A sociedade, para a sua própria salvaguarda, será obrigada a pagar às pessoas sem emprego e estas deverão frequentar a Universidade, de maneira permanente. Ora isto é de facto uma mudança radical, que lembra as reivindicações de 68. R. G. — Eis-nos no coração do problema. Não é preciso «formar» pessoas, é preciso antes despertar nelas a necessidade da poesia e do conhecimento que são uma só coisa. Há demasiadas pessoas que parecem não saber o que fazer com as suas vidas. J. R. — Mas é evidente que primeiro é preciso que haja comida para todos. Depois disso é que podemos sonhar. Talvez a hipótese do meu amigo físico não seja completamente falsa. R. G. — E o que é que vai ser de nós todos se não formas capazes de construir utopias? S. — Precisamos de ficções porque só podemos realizar aquilo que concebemos. J. R. — Olha, aí está um filme que podias realizar: a tua rua no dia em que todas as pessoas tivessem a sobrevivência assegurada. Continuará a haver pequenos ofícios, empregos na indústria, irmãmente repartidos entre as várias famílias, como no velho sonho dos anarquistas de Barcelona. O que é que vai acontecer com os 90% de estudantes inscritos nas escolas de cinema que nunca hãode ser cineastas? R. G. — Desculpa, Jean, mas se o saber de «cineasta» lhes servir unicamente de passaporte para uma «carreira» de realizador, é porque não merecem o cinema e o cinema não precisa deles. Acho que na Europa há riqueza suficiente para dar de comer a todos os desempregados. O problema é que as pessoas lá não querem propriamente «comer». Quantas pessoas à tua volta conseguem conceber a vida segundo um modelo de austeridade? Por que é que continua a ser «preciso» vampirizar o Terceiro Mundo? J. R. — Pois é... e nas nossas escolas de cinema só conseguimos formar professores de cinema... ou quase. Ainda há uns sujeitos que fazem filmes... R. G. — Mesmo assim, os filmes têm a vantagem de ser obras colectivas que implicam a contribuição de muita gente... J. R. — O nosso combate é justamente preservar isso, mostrar a importância que isso tem; doutro modo, o segundo centenário do cinema não será festejado. É por ser uma actividade colectiva, ao nível da produção e da difusão, que o cinema suscita emoções tão fortes... E não me venham dizer que a televisão veio substituir essas emoções. A história do Jean-Claude Simon poderia tornar-se crível, começar a produzir efeitos inesperados aqui, na tua rua, e depois espalhar-se como uma epidemia. A epidemia «Viva o Desemprego!». R. G. — Sim, mas enquanto os outros fabricantes de imagens continuarem a intoxicar-nos com a ideia de que o desemprego é o cancro da nossa sociedade (contra o qual é preciso «inventar» empregos ou seja manter o gado ocupado), enquanto toda a gente (mesmo as pessoas um bocado mais bem informadas) fizer de conta que acredita nas balelas do combate ao desemprego, essa utopia não há-de congregar ninguém. Um estudante custa bastante mais caro do que um desempregado, portanto não vale a pena esperarmos presentes de natal do poder, porque quem nos governa prefere encenar a tal luta contra o desemprego... e os sindicatos colaboram, embora todos saibamos que o desemprego é um fenómeno que advém principalmente duma mudança de modelo de sociedade e até de modelo económico. Os três milhões em França não tendem a desaparecer,


tendem a aumentar (há quem fale em cinco milhões reais...) e os políticos servem-se desses números para manipular, para assustar... O desemprego está conotado negativamente. A simples perspectiva de dar ao mundo crianças que serão futuros desempregados é o pior fantasma (no sentido buñueliano) do homem da rua. E a sua reivindicação mais radical é: fabriquem um emprego para o meu filho. S. — O Lafargue ¡á tinha levantado esse problema que continua por resolver. R. G. — As minhas estudantes reclamam empregos. O resto não lhes importa. Querem empregos, numa bandeja... J. R. — Efectivamente, hoje em dia as pessoas temem as piores catástrofes. E a guerra do Golfo, a guerra da ex-Jugoslávia, etc., vieram-lhes provar que «têm razão»... Mas vocês acham que há quem mexa os cordelinhos na sombra? S. — Não. J. R. — Então, qual é a tua resposta? S. — Tentar dizer às pessoas que se pode viver sem medo. E tentá-las. Desempenhar o papel do diabo. J. R. — Olha, o que eu descobri em África, em particular com os Dogon, é que não só Deus é cruel (reclama os maiores sacrifícios) como é uma besta quadrada. Quem sabe isto está salvo, porque Deus parece-se com as pessoas que estão no poder. Se alguém chega a ministro é porque é uma besta quadrada. Deus é feito à imagem dos ministros. Aliás, isto limita bastante o leque de escolha de empregos para os nossos filhos. A tua filha, por exemplo, nunca será ministra da Saúde em Portugal. E se ela acreditar como nós na possibilidade duma mudança, terá de aceitar que é um combate para várias gerações. R. G. — Isso permite pôr em causa a nossa forma de produção. Eu preocupo-me com a escrita e, neste momento, o meu problema é pôr em causa a difusão da palavra escrita através do livro como único suporte... Por que é que nos sentimos obrigados a defender os livros? J. R. — Porque foste criada no meio dos livros. R. G. — Claro, mas os nossos atavismos culturais não nos devem fazer perder de vista que existem porventura outros meios de estabelecer o contacto e de pôr a palavra poética a circular. J. R. — E as cinematecas? Qualquer dia, vamos ter tantos filmes que ninguém há-de saber onde os meter. R. G. — Pois é. Mas, ao lado da necessidade de conceber grandes sonhos que abranjam várias gerações, talvez seja preciso produzir coisas efémeras das quais aceitamos a efemeridade. S. — É o gesto contra o rasto, contra o vestígio. R. G. — Porquê contra? J. R. — Mas «isto» que nós estamos aqui a fazer, vocês vão transcrevê-lo. E talvez «isto» só «valesse» no instante em que aconteceu. Alguma horas, algumas manhãs a falar de problemas que nos preocupam. S. — É um testemunho, daí ser importante transcrevê-lo. J. R. — Somos testemunhas, isso é certo. Aliás, se falei da minha vida e obra como duma aventura é porque acho que tive imensa sorte em viver na época em que vivi, tive a sorte de conhecer, entre 1920 e 1930, todo um movimento de intelectuais solidários que constituíam a vanguarda, com todas as suas contradições e desgostos como a guerra de Espanha. A segunda guerra mundial fez explodir tudo e o que existia antes não voltou. Tínhamos perdido o fio à meada. A grande vantagem que os surrealistas tinham sobre os outros era o facto de se imporem como sobreviventes do horror. Mas na segunda guerra sobrevivemos ao horror dos campos de concentração, a um horror oculto. R. G. — Foi a criação de um novo modelo do horror. Nunca mais voltou a acontecer um holocausto com a mesma envergadura, mas campos há por toda a parte. Hoje, quando os poderes não sabem o que hão-de fazer com um grupo de «indesejáveis», espetam com eles num campo. J. R. — Mas sabes que no fim da guerra, quando vimos as fotografias, não queríamos acreditar? No exército, julgámos que eram umas imagens fabricadas: «Estão a gozar connosco... É mais uma vez a propaganda do exército». S. — Porque se tinha atingido um limiar para além do concebível.


J. R. — Não sei se sabes que o movimento da Resistência em França começou no Museu do Homem. No sítio onde eu faço as minhas misturas, por detrás do ecrã da sala de cinema, está o local onde foi editado o primeiro jornal da Resistência. As pessoas que publicavam esse jornal foram denunciadas pelos colegas e deportadas. A bibliotecária, que se chama Yvonne Odon, um dia veio visitar-nos ao Museu do Homem e disse-nos que era absolutamente necessário projectarmos um filme que o Resnais estava a acabar — NUIT ET BROUILLARD. E queria convidar para a sessão as associações de deportados. Muito comovido com tudo aquilo que tinha a ver com o filme que rodara, o Resnais aceitou. No fim do filme, eu estava encarregado de dirigir um debate com o Pierre Schaeffer. As luzes acenderam-se e nós estávamos tão abatidos que ficámos em silêncio durante uns bons minutos. A primeira a reagir foi a Yvonne que se levantou e nos agradeceu nestes termos: «Obrigada pelo vosso silêncio, porque tenho a certeza de que perceberam o que nós vivemos». E os deportados aplaudiram, porque lhes tinham dado a palavra. E, nesse instante, efectivamente, sentimos que éramos testemunhas, que tínhamos visto aquilo que não era para ser visto. Para a Yvonne Odon era uma espécie de vingança pessoal no seio do Museu do Homem. Depois da sessão, disse-me: «Obrigada Jean, por teres organizado esta projecção. Era a nossa honra que estava em causa». Achei a escolha da palavra extraordinária. Depois confiou-me a chave da sala «atrás do ecrã» que tinha sido conservada tal qual. Ela queria que aquela sala servisse de local de trabalho. Como não tem janelas, instalámos lá uma sala de mistura. Quando a Yvonne soube, ficou radiante por saber que aquele espaço se ia manter vivo. Tudo isto para dizer que, em relação aos campos, nós não estávamos ao corrente nem podíamos estar. Voltou a acontecer a mesma coisa durante a rodagem das sequências do meu filme CHRONIQUE D'UN ÉTÉ com a Marceline Loridan, uma das mais jovens deportadas que regressaram a França. Quando projecto o filme e o discuto com pessoas mais novas de quem gosto, muitas acham que a Marceline deveria ter apagado o número do campo de concentração que tinha tatuado no braço. Acham que é uma provocação que já não faz sentido. O facto é que a morte científica, a eliminação de uma etnia continua a parecer algo aterrorizador... S. — Seria interessante estudar como é que se calculam as perdas durante as guerras. J. R. — Em África, há exemplos um pouco mais alegres, apesar de tudo. A batalha em que os marroquinos conquistaram o oeste africano fez, ao que se conta, 20 mortos. E os dois lados acharam que não valia a pena ultrapassar aquele limite razoável. S. — Ao ouvir-te, chego a pensar que no teu percurso há uma necessidade de voltar a mergulhar periodicamente em África para depois poderes falar de coisas que não têm nada a ver com a África... mas graças à experiência africana consegues falar melhor dessas coisas. J. R. — Exactamente. A história dos contadores é precisamente isso. A história do CERN também... são os meus ferreiros. E a história do filme que estou a rodar com os Dogon continua a ser a mesmo coisa. É um filme em que procuro averiguar se foram os Dogon ou os chineses que inventaram a pólvora. Tivemos uma reunião debaixo do Toguna — o abrigo dos homens, sítio onde se tratam os problema da vida e da morte — para debater esta questão. Gostaria, aliás, de fazer um filme sobre o Toguna: os velhos sentam-se nesse espaço à sombra (são pilares de pedra cobertos com feixes de ramos de árvores); é um sítio fresco onde se sente soprar o vento; ao lado, há o «cerrado das mulheres menstruadas» sobre o qual nada se sabe; são, ao que parece, os dois primeiros estabelecimentos que se constroem numa aldeia (o cerrado porque o sangue menstrual é impuro e o Toguna para que os homens se possam reunir); ora, frequentemente, a conversa começa com a observação de um velho: «fulaninha já não vem há duas luas» — o que significa que alguns meses mais tarde, haverá uma boa notícia na família; assim, os velhos acompanham o processo da fertilidade graças à vizinhança dos dois espaços. Sugeri a uma estudante que trabalha sobre as mulheres Dogon que fosse passar o seu período menstrual no cerrado; talvez pelo seu lado as mulheres comentem o comportamento dos velhos estendidos à sombra... Discuti pois, debaixo do Toguna, o fabrico da pólvora pelos Dogon. É feita a partir de caganitas de morcego (ou com salitre apanhado nas grutas) que eles misturam com terra que contém natrão, com carvão vegetal e com sorgo açucareiro. Esta pólvora tradicional serve principalmente para fazer explodir as rochas com que constroem as casas. É um explosivo progressivo portanto convém


perfeitamente. Os Dogon cavam regos, os «caminhos da pólvora». Um jovem letrado perguntou aos velhos do Toguna o que é que eles pensavam do que lhe andavam a ensinar na escola (a saber que a pólvora tinha sido inventada pelos chineses). Os velhos responderam-lhe que na escola só ensinavam disparates visto que os chineses só tinham chegado à África havia apenas dez anos e se tinham limitado a copiar o método Dogon de fabrico da pólvora. Pelo meu lado, perguntei-lhes há quanto tempo sabiam fabricar pólvora. Responderam-me que fabricavam pólvora desde que estavam no Mali (século XII) e mesmo antes. Sempre souberam fabricar pólvora. Assim, segundo a tradição, os Dogon conhecem a técnica de fabrico da pólvora desde tempos imemoriais. Só tardiamente começaram a utilizá-la para as armas de guerra, para o caça e sobretudo para os rituais. A história da espingarda na África Negra é fascinante. No Norte da curva do Níger, foram os marroquinos vindos de Marraquexe que a utilizaram pela primeira vez. Pensavam que os Songhay detinham o monopólio do ouro transportado através do Saara a partir de Tombuctu. Portanto, foram os Songhay da curva do Níger as primeiras vítimas da cobiça dos marroquinos. Em 1519, em Tondibi, um punhado de cavaleiros marroquinos liderados por Djouda derrotaram com umas escassas rajadas a cavalaria Songhay que passava por ser invencível. Foi o início da ocupação marroquina e o fim dos grandes Impérios Negros. Mas a expansão marroquina não acabou com a resistência dos Songhay que abandonaram Tombuctu e Gao para se juntarem em grupos dirigidos por chefes e se instalarem no Níger ocidental. As tradições orais de Tera, por exemplo, relatam os seus combates. Durante um desses confrontos, os cavaleiros e os archeiros Songhay mataram uma centena de combatentes marroquinos. Apanharam as espingardas dos inimigos, transportaram-nas numa piroga e foram deitá-las num fosso muito profundo do rio. Não queriam utilizar uma arma tão cobarde porque, na caça ou num combate, para matar uma fera ou um inimigo é preciso olhá-lo bem nos olhos e nessa altura nunca se sabe se se vai morrer ou matar. A maior parte dos marroquinos que partiram à conquista do ouro do Sudão eram renegados espanhóis e deram cabo de toda a África Negra, destruindo para sempre alguns estados que começavam então a organizar-se... Um outro aspecto da questão é a caça. Quando rodei LA CHASSE À L'HIPPOPOTAME, os caçadores consideravam que matar um hipopótamo com uma espingarda era uma «caça de governadores» (o conceito agradava-me...). O governador está sentado no seu cadeirão, com o seu capacete colonial, o whisky na mão, as bolachinhas, calmamente à beira-rio, e de repente aparece um hipopótamo. O governador grita: «Boy!». O boy entrega-lhe a arma, o governador visa um animal que se afunda nas águas do rio e que porventura não voltará a ver. Uma caça de governador é assim. Qual é a tua posição em relação à caça? S. — Não tenho grandes opiniões sobre o assunto. Sobre o caçador tenho algumas. Em África percebi que há uma nítida diferença entre o caçador e o pescador. O caçador está convencido de que o sucesso da caça vem das suas qualidades, da paciência, da intrepidez, etc. O pescador acha que é obra do acaso. E os pescadores que, em África, praticam por vezes formas de pesca muito perigosas, admitem que em boa parte o sucesso é uma questão de sorte. «Hoje o peixe não veio...». E quando o peixe vem, depende da sorte, enquanto, para o caçador, o troféu de caça simboliza uma vitória pessoal. J. R. — É uma observação interessante mas, se falas de pescas, a «pesca» pode abranger um escalão superior: o do crocodilo ou do hipopótamo. S. — Estava a falar de pescadores de peixe. Até porque me parece uma actividade mais colectiva. J. R. — É verdade que a pesca com redes grandes é uma actividade mais colectiva. Mas o ritual é o mesmo do que para a caça. R. G. — Fiquei muito impressionada com um documentário sobre os macacos que vi na televisão, mais precisamente sobre o ritual da caça nos macacos. Uma certa espécie de macacos, habitualmente herbívora, organiza partidas de caça que se desenrolam como um ritual porque eles não caçam por necessidade. No fim da caçada, partilham a(s) presa(s) segundo um rito e uma série de regras bem determinadas. O tal documentário levou-me a meditar um pouco sobre a caça. De facto, os peixes são seres tão diferentes dos homens que dificilmente nos podemos identificar com


eles ou achar que se parecem connosco. Em contrapartida, com os mamíferos (a baleia inclusive) que o homem caça, estabelece-se uma relação peculiar: o bicho é o «duplo degradado» do homem. J. R. — Devo dizer-te que nas festas do Sigui, os Dogon vestem-se de «fetos» e mascaram-se de «peixes». E o bebé dentro da barriga da mãe é como um peixe. R. G. — Certo. Mas justamente o feto ainda não é um ser humano completo. J. R. — Porém dá pontapés na barriga da mãe. S. — A caça é uma actividade terrestre e a pesca é frequentemente marítima. R. G. — E nesse caso o elemento que o homem afronta é o mar. S. — A vitória é sobre a água e não sobre o peixe. J. R. — No rio Níger, onde todos os anos tomo banho, há um perigo muito concreto: é uma pesca especial com «anzóis ladrões» chamados mamari. Estende-se numa linha entre duas bóias que atravessa o rio numa extensão de 150 a 200 metros e, de 50 em 50 centímetros, pendura-se uma linha pequena com um anzol sem isco na ponta que serve para apanhar os peixes grandes, os capitães que sobem o rio à superfície. Ora, quando se nada no rio, às vezes vai-se a descer. Se um nadador ficar preso no dispositivo, está perdido. Morre pela certa. É um autêntico terror. Contudo, segundo o código dos pescadores, o mamari deve ser vigiado, por uma criança por exemplo. Aliás, as pirogas também podem ficar em maus lençóis. Hoje em dia, com o poliester, a visibilidade das bóias é mais ou menos suficiente. Outro dos perigos são as serpentes de água contra as quais os pescadores têm uma série de feitiços. Por último, há os «crocodilos devoradores de homens» — os crocodilos «racistas» oriundos do Egipto que vêm comer os pretos. São animais temíveis mas os pescadores conhecem-nos perfeitamente. Essa espécie de crocodilos só ataca geralmente os animais que vão beber e, como gostam de carne em putrefacção, arrastam as presas para dentro de pequenas cavernas submarinas onde as deixam apodrecer. Contam-se histórias horríveis de pessoas apanhadas por crocodilos que foram parar às tais cavernas fedorentas. Agarradas pelo pé, eram levadas para grutas subterrâneas totalmente escuras onde existia uma entrada de ar. O crocodilo deixava-as lá e ia-se embora. As pessoas conseguiam sair e escapar a nado. Só que ficavam loucas. Quando eu andava a rodar LA CHASSE À L'HIPPOPOTAME, os pescadores indicavam-nos os lugares onde era possível tomar banho; conheciam perfeitamente o território dos habitantes do rio. Às vezes, passávamos por ilhéus onde havia pequenos crocodilos inofensivos. Os Dogon atribuem a seca ao facto de se terem dizimado os crocodilos cujas peles são valiosas no mercado. Ora, os crocodilos estavam «encarregados» de drenar as condutas e os rios subterrâneos que permitiam que a água circulasse por toda a parte. O crocodilo é visto como um animal benfazejo. Existem relações complexas, por vezes estranhas, entre o homem e os animais selvagens. S. — Há bocado perguntaste-me qual era a minha posição em relação à caça. Para mim, o único ser que precisa de protecção absoluta é o homem e os animais só me interessam na medida em que são imagens do homem. J. R. — É uma ideia interessante no plano metafísico. R. G. — Se a caça actualmente se tornou uma coisa tão abominável nos nossos países ocidentais é porque muitas vezes o caçador descarrega no animal um ódio do humano que não pode exorcizar doutra maneira. Mais por isso do que pela violência ou pela morte que estão omnipresentes na natureza. J. R. — Mas o homem é um animal carnívoro como o lobo. R. G. — Só que o lobo não ataca as outras espécies por e para não matar outros lobos. J. R. — Para acabar vou-vos contar uma bela história. Quando realizei LA CHASSE AU LION À L'ARC, cuja rodagem demorou sete anos, descobri a existência de relações singulares entre os homens e os leões: os caçadores e os leões são verdadeiros companheiros. Os caçadores conhecem as feras e os seus hábitos e até lhes dão nomes. Mesmo os pastorinhos que partiam de noite para guardar os rebanhos, quando voltavam, anunciavam: «O leão X ou Y foi morto à paulada». Os caçadores de leões com arco são os últimos duma linhagem antiga e quase se tornaram lendas vivas nos matos de Yatakala e de Wanzerbé, ou seja, na fronteira Mali-Níger-Burkina Fasso. De noite


contavam-me histórias maravilhosas através das quais tentavam explicar-me que os leões tinham ensinado aos homens a vida em sociedade. As famílias dos leões são polígamas e sempre constituídas por um leão e várias leoas. São as fêmeas que caçam (os leões metem medo, afugentam os animais). Após a caçada, partilham a presa. Os problemas graves colocam-se quando um jovem leão entra em conflito com o pai. Os leões em geral nascem aos pares e o leão mostra-se um bom pai de família rodeado pelas suas fêmeas. As famílias de leões vivem um pouco como em aldeias. Na altura em que o jovem macho se torna adulto, apaixona-se pela irmã. Mas entretanto, o leão velho já topou a leoa gémea e pretende guardá-la para si (Vai praticar o incesto com a filha). Tudo isto é observado pelas leoas e pelas outras crias. Habitualmente, acaba por haver um combate entre o leão e o filho. Se o pai ainda for jovem, dá uma tareia ao filho que se vai embora, tentando em vão levar consigo a irmã gémea (será obrigado a procurar fêmea noutro sítio). Mas se o leão for um bocado mais fraco, começa a meditar bem antes e, em regra geral, mata o filho, antes da puberdade e come-o. É por isso que nunca se encontram cadáveres de leões jovens. Perante a morte do filho, as leoas reagem, achando que o leão foi longe de mais. Então começam a caçar com menos brio e arranjam as coisas de maneira a que no conflito seguinte o vencedor seja o jovem leão. Nessa ocasião, o jovem leão matará o pai e comê-lo-á em companhia das leoas. Para os caçadores, esta história é exemplar. Os caçadores são uma sociedade onde não há segregação social, não há raça. Qualquer pessoa pode ser caçador se souber caçar e o chefe dos caçadores é o melhor caçador. Ora, quando o arco do caçador mata um leão, o caçador perde um filho. Portanto, os caçadores só têm filhas e não há problemas de sucessão. Se o chefe morrer, o melhor caçador torna-se chefe. Este sistema de transmissão de poder funcionou muito bem até ao dia em que um caçador muito valente, que tinha perdido todos os filhos, se fartou da tradição e decidiu instalar-se num território e tornar-se caçador sedentário. Teve pois vários filhos que não morreram e lhe sucederam no cargo. Assim aconteceu a catástrofe das chefias hereditárias. Leões e caçadores têm por conseguinte histórias paralelas. O paralelismo que os próprios caçadores reivindicam tem decerto a ver com observações muito antigas de animais singulares e do seu modo de vida. Os leões circulam nos mesmos territórios e têm relações estreitas com os criadores de gado, visto que só matam os animais doentes; os criadores precisam dos leões para manterem a saúde dos rebanhos. No meio deste equilíbrio, os caçadores são hábeis se conseguirem que a passagem do poder se faça directamente do melhor velho caçador para o melhor jovem caçador. S. — Perdemos essa noção dum equilíbrio instável a manter, que se opõe radicalmente ao nosso conceito de ordem porque a ordem é perene. J. R. — A ordem é a burocracia, a chefia hereditária. Com esta bela fábula, acho que podemos dar a nossa conversa por terminada. Foi bom porque não sabíamos para onde íamos. Mas o ponto de partida estava certo. O banho africano permitiu-nos abordar outros problemas. Com o perigo que isto tudo representa... Pode acontecer o que me aconteceu a mim e aos meus amigos quando formámos o «bando do Rouch», grupo terrificante, que só faz trinta por uma linha. As nossas loucuras chegam para vivermos em circuito fechado do ponto de vista económico. Todos os anos recebemos direitos de autor para conseguirmos continuar no desemprego, à espera de podermos realizar mais um filme dentro do nosso sistema, um filme do bando do Rouch. Entrevista conduzida por REGINA GUIMARÃES e SAGUENAIL


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