ENCONTRO COM PARADJANOV Paradjanov, enfraquecido pela doença, teve a gentileza de nos receber estendido na sua cama de hotel para esta breve troca de impressões. Apesar do clima extremamente cordial deste encontro e da exemplar disponibilidade do intérprete Vitali Gratiuk, fizeram-se sentir algumas dificuldades de comunicação: a espontaneidade e o calor de uma conversa perdiam-se nos meandros da tradução para a língua russa que não é, como se sabe, o idioma materno do realizador. Manana Baratachvili, representante da Geórgia Filme que acompanhou Paradjanov na sua vinda ao Porto, concedeu-nos também uma breve entrevista que transcrevemos a seguir aos depoimentos do cineasta. SAGUENAIL — Vejo no conjunto dos seus filmes algumas rupturas muito nítidas. Com os AS SOMBRAS DOS ANTEPASSADOS ESQUECIDOS, abandono dos diálogos e passagem para o canto; esboço de recusa da continuidade da acção e passagem para uma concentração de sentido em cada plano (o plano não é elemento de cadeia). Com A COR DA ROMÃ, a vertigem do movimento é posta de parte. Fale-nos dessa ruptura. O seu cinema não é nada «naïf». Você dominou completamente uma gramática convencional e, de repente, rejeitou-a. PARADJANOV — Talvez seja assim. Mas nunca renunciei à imagem musical, a uma cadência musical, a uma sucessão musical que encontrei com AS SOMBRAS DOS ANTEPASSADOS ESQUECIDOS. S. — Claro. Para mim, a ruptura é entre A PEQUENA FLOR DA ROCHA e AS SOMBRAS DOS ANTEPASSADOS ESQUECIDOS. PAR. — Esse filme — A PEQUENA FLOR DA ROCHA — é um filme alheio. É uma coisa que não era do meu agrado. S. — Por que é que todo o som é pós-sincronizado, trabalhado por cima da imagem? PAR.— É mais fácil e mais útil para mim. Porque depois se pode pensar em fazer um objecto mais profundo. S. — Costuma trabalhar com uma equipa ligeira? PAR.— Normal. Umas trinta pessoas. REGINA GUIMARÃES — Ontem, em conversa, o Paradjanov afirmou que entre os portugueses e os georgianos haveria um ponto comum: o gosto pelos heróis. Existe para si algum parentesco entre o herói e o artista? Penso particularmente no sentido de um filme como A LENDA DA FORTALEZA DE SURAM. PAR. — Se o herói for herói... R. G. — Evidentemente que aquilo é uma Lenda. Mas trata-se de um heroísmo fora do comum. Não é morrer no campo de batalha, é ser voluntariamente emparedado, ou seja, aceitar que o corpo seja uma pedra na construção do mundo... PAR. — É realizadora? Vocês têm filhos? Meninos ou meninas? R. G. — Três. Duas raparigas e um rapaz no meio. PAR. — Muito bom! Em cada herói, se dele gostares, podes encontrar algo digno de uma visão artística. R. G. — Apesar de eu não partilhar essa opinião, sei que há pessoas — ouvi comentários nesse sentido à saída da projecção de ASHIK KERIB— que acham o seu cinema muito etnográfico, folclórico. Rejeita ou aceita essa classificação? PAR. — Uma das características é ser etnográfico. S. — Não sei se na URSS houve um movimento surrealista, mas detecta-se, ao nível do funcionamento das imagens, alguma proximidade... PAR. — Não, na URSS essa tendência para o surrealismo sempre existiu. E nunca foi perseguida. Tudo depende da visão de cada um, de como cada um entende uma ou outra coisa. De como cada um decifra uma imagem, de como a descodifica.
S. — Na Europa Ocidental há uma grande dificuldade em fazer admitir que um filme possa apresentar-se como uma procura. Os exemplos desse funcionamento poético chegam-nos de um país que é mais conhecido pelo realismo, digamos, social... PAR. — Mas na URSS consideram-me um dos cineastas poéticos. Não sei porquê mas acho que você podia ir trabalhar para lá. R. G. — Acha que o cinema pode ter a mesma ambição que a poesia: inventar o mundo, transformá-lo... PAR. — Claro, evidentemente. S. — A romã aparece em muitos dos seus filmes. Qual o sentido que lhe atribui? PAR. — Será o que entenderes. Mas para mim é o coração com o sangue dentro. R. G. — AS SOMBRAS DOS ANTEPASSADOS ESQUECIDOS e ASHIK KERIB são duas histórias de amor com um desenlace muito diferente. O facto de ter contado primeiro uma história infeliz e depois uma feliz, apesar de ambas serem aventurosas, quererá dizer que a felicidade e a infelicidade não são contraditórias? PAR. — Pode-se passar por tudo, pelas alegrias, pelas desgraças, pelas mágoas, mas no fim de contas é a vida que vence. R. G. — Escolheu fazer filmes pelo facto de o cinema se poder servir das outras artes, por exemplo, da pintura? PAR. — Eu acho que o realizador deve ser tudo. Deve ser mecânico, deve ser joalheiro, deve ser engenheiro. Deve saber de tudo. S. — Na COR DA ROMÃ há uma sequência de sonho (a natureza da cena vem especificada no título). Como concebe a utilização do sonho e da metamorfose? PAR. — Isso depende da situação, daquilo que acontece. As metamorfoses também vêm com a idade. No início não sabia ou não podia ou não pensava em fazer Depois chegou a altura e agora éme muito mais fácil. R. G. — Paradjanov fala muitas vezes de Tarkovski por quem diz ter uma grande admiração. Gostaria de lhe colocar a questão da fé, um valor fundamental no cristianismo e pedra de toque no cinema de Tarkovski. Que pensa da ideia de fé que Tarkovski defende e enaltece nos seus filmes? PAR. — Tarkovski era para mim uma pessoa muito íntima, muito querida. Eu exigi mais dele, só que ele não fez. Ele é grande. R. G. — Tarkovski acreditava que um gesto de fé podia salvar o mundo... PAR. — Isso não tem importância. Você pensa assim... eu tenho outra opinião. A meu ver ele falhou nesse projecto. S — Há vários filmes co-assinados. Como decorre esse trabalho a dois? PAR. — Ele é um bom autor e eu, como sou uma pessoa bem educada... Ele morreu há bocado. R. G. — O espectador estrangeiro não distingue nos seus filmes onde acaba o signo da tradição e onde começa a recriação pessoal... está tudo «misturado» e funciona «naturalmente». O espectador da Geórgia, mais conhecedor, verá talvez os filmes de uma forma diferente. O Paradjanov dizia ontem «Não percebo por que é que fazem tanto caso de mim...» PAR. — Eles acham que eu inventei tudo. S. — Nós também... O folclore é decerto uma fonte de inspiração. Imagens como as portas do paraíso trancadas decorrem de uma visão pessoal... PAR. — O que seria um realizador e a arte de realizar se só mostrasse aquilo que já existe? Tudo é simples. R. G. — Nos seus filmes há um grande fascínio pelos corpos e pelas coisas... grandes planos... como se corpos e coisas fossem objectos de prazer do realizador... PAR. — Isso tem muita importância para mim. O prazer é mostrar aos outros aquilo que é bonito. S. — Em AS SOMBRAS DOS ANTEPASSADOS ESQUECIDOS, os movimentos são muito circulares. Nos últimos filmes o enquadramento não se terá tornado a «gaiola de oiro» de que Paradjanov fala? PAR. — Não penso nisso. Talvez seja como você diz. Se você recebeu essa mensagem... S. — O projecto do seu próximo filme está em continuidade com aquilo que fez até agora?
PAR. — O filme que já comecei a rodar (e que vou continuar quando regressar) é dedicado à minha família, aos meus pais. A minha infância, a minha casa. É um momento difícil na história do nosso país: mortes, detenções, buscas na madrugada,etc. Houve uma interrupção muito longa nas filmagens porque tive de ser operado. Sinto-me ainda muito mal como vêem. É uma doença muito grave que me manteve no hospital. Quando acabar este filme, devo realizar logo a seguir O CONTO DAS HOSTES DE IGOR que foi libreto da famosa ópera de Borodine. Depois do folclore da Ucrânia, da Geórgia e da Arménia e do Cáucaso em geral, é a vez do folclore russo. É uma epopeia, um argumento fabuloso. R. G. — Paradjanov diz que na prisão se definiu muita coisa da sua vida. Qual a importância do encarceramento na afirmação da liberdade poética? PAR. — Regressei ao cinema com outras vontades e com outro coração. A prisão ajuda a abrir o coração. A cadeia soviética é muito especial. Na maioria dos casos não corrige. As pessoas voltam da prisão mais criminosas do que eram antes. Voltei com mais vontade de fazer as coisas porque tive tempo para pensar, para fazer limpeza dentro de mim. S. — Voltando a uma questão que já abordei. Com AS SOMBRAS DOS ANTEPASSADOS ESQUECIDOS, Paradjanov parece ter ido até ao fim de uma certa estética barroca. Nos filmes seguintes observa-se um regresso a um cinema «primitivo», como se fosse preciso inventar tudo e de certo modo esquecer uma história do cinema que não levou a lado nenhum... PAR. — Mas o que é mais interessante? Tive razão. De certo modo também depende do operador. Tenho operadores de câmara com talento e sem talento. Gosto mais de trabalhar com um cameraman sem talento. S. — E os actores não-profissionais? PAR. — Eu não gosto dos actores profissionais. R. G. — No ASHIK KERIB dá a impressão de trabalhar com o actor como o pintor trabalha com o modelo. É quase a segunda história do filme. PAR. — O actor profissional traz consigo uma mensagem própria, uma palavra sua, uma pose duvidosa e eu não preciso de nada disso. S. — Não deixa de ser surpreendente que Paradjanov trabalhe dessa forma num sistema de produção normal. No Ocidente pensam que isso é perder tempo e qualidade. Isso quer dizer que conseguiu uma boa margem de manobra dentro de uma estrutura que deve ser pesada. PAR. — Os italianos trabalham com actores não profissionais... S. — Pois... o Fellini, o Olmi... nem todos!... Uma imagem recorrente nos seus filmes: o protagonista a cavar a cova de um pai espiritual (de quem herda a poesia, a autoridade ou a fé). PAR. — É como quando se repetem as coisas importantes nos sermões. É uma coisa retórica nos sermões de um homem ou de uma mulher. Isso agrada-lhe ou irrita-o? S. — Gosto de pensar no filme como uma música de imagens, com fenómenos de repetição.
SAGUENAIL — Como se passa uma rodagem de Paradjanov? MANANA — Primeiro é divertido. Sempre. Mas ele sabe sempre o que quer. Tem tudo na cabeça. Quando em plena rodagem falta alguma coisa, ele não fica aflito. Se não há, muda qualquer pormenor. E muda logo. Nunca diz que desiste. Filma na mesma. Eu estava com ele em Bakú durante a rodagem de A LENDA DA FORTALEZA DE SURAM. Preparava a rodagem para uma semana: plano de trabalho, desenhos, enquadramentos, acessórios, tudo o que deve estar disponível e onde. É ele que assume sozinho, tem medo que a produção não saiba. Paradjanov filma muito depressa. Uma hora por dia. Mas é um bocado provocador. Quando quer, roda. Depois pode dizer que não se sente bem e passa uma semana sem filmar. S. — Paradjanov diz que durante algum tempo não podia filmar em lado nenhum. MAN. — Rodou na Ucrânia. Depois fez A COR DA ROMÃ em Tbilissi. Depois parou. Quando voltou, em 1979, a Geórgia é que o acolheu. Trouxe oitocentos desenhos da prisão. Foi o director da Geórgia Filme que o convidou para trabalhar. Teve problemas, mas graças a Chevardnadze, que era Primeiro Secretário em Tbilissi, ele pôde voltar a rodar. A Arménia não fez nada por ele na altura. Agora sim, construíram-lhe uma casa muito grande, um museu. Ele vendeu-lhes os quadros todos. Está tudo lá. REGINA GUIMARÃES— Fale-nos das relações de Paradjanov com os actores? MAN. — É preciso ver como ele veste os actores. É ele que se encarrega disso. É espantoso. Ele é que concebe os fatos. Tem um pintor que está lá para ajudar mas é ele quem o faz. O actor de ASHIK KERIB foi encontrado na rua. É um curdo e nunca lhe tinha passado pela cabeça entrar num filme. Esteve três vezes na cadeia esse rapaz. E não por motivos políticos. Paradjanov escolheu-o, vestiu-o... S. — Como é que os filmes de Paradjanov são vistos na Geórgia? MAN. — Sabe, os melhores filmes nunca são bem recebidos. Poucas pessoas percebem. Infelizmente... S. — Na Europa torna-se quase impossível reivindicar o direito de fazer um filme como um poema... Os produtores torcem logo o nariz. MAN. — Pois, por razões económicas. Na URSS é o Estado que paga. Por enquanto. O nosso sistema é um tanto difícil de entender. De repente, sente-se que tal pessoa é um grande realizador. Então surge a hesitação: dar dinheiro, não dar dinheiro... Chega o argumento às mãos da produção e ninguém percebe o que o realizador quer fazer. Aparece o filme feito e há outra hesitação: passa-se, não se passa, mostra-se, esconde-se. Havia muitos filmes que não eram exibidos. Agora com Gorbatchev verifica-se uma grande abertura. S. — Paradjanov está ligado, por afinidades estéticas, a outros cineastas? MAN. — Paradjanov está sozinho. Como Tarkovski estava sozinho. De vez em quando, na Rússia, aparece quem queira imitar Tarkovski. Mas sente-se que é roubado e postiço. Como Paradjanov não conheço ninguém no mundo inteiro. R. G. — Paradjanov disse-nos que era amigo íntimo de Tarkovski. MAN. — Pois, quando Tarkovski não tinha dinheiro, vinha à Geórgia... Mesmo assim acho que o exílio foi mau para ele. Se tivesse ficado, talvez ainda estivesse vivo. Foi a mulher que o obrigou a sair... só pensava em viver melhor... Tarkovski nunca deixou de ser russo mas morreu. Em NOSTALGIA o casal não se entende porque a mulher não é russa. Em O ESPELHO é completamente diferente. S. — Mas em O ESPELHO a mulher está sozinha. MAN. — Pois, porque a vida era assim. As pessoas eram presas, fuziladas. R. G. — O tema da guerra parece dominar de longe toda a cinematografia russa. Isso também é verdade para o cinema da Geórgia? MAN.— Na Geórgia não se fazem filmes sobre a guerra. Só me lembro de um: O PAI DO SOLDADO. Um bom filme. A vida na Geórgia é diferente como é diferente a maneira de fazer filmes.