Encontro com paulo rocha em torno do filme

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ENCONTRO COM PAULO ROCHA EM TORNO DO FILME «LE CARROSSE D’OR» DE JEAN RENOIR P. Rocha - Eu tenho duas fases de conhecimento do Renoir: a primeira corresponde ao Renoir que vi durante a adolescência lá no Porto; a segunda vem depois, quando já estava na Universidade, cá em Lisboa e a seguir no I.D.H.E.C. em Paris. Os que eu conhecia "menos" marcaram mais a minha vida, como por exemplo Le Fleuve (The River / O Rio Sagrado), que eu devo ter visto no cinema Batalha, numa sessão de domingo de manhã do Cineclube do Porto, e que arrasou comigo... teria eu uns 15 anos. Julgo que este filme também é do mesmo contexto... Depois, para aí aos 23 anos, descobri La Règle du Jeu em Madrid, na cidade universitária, e decidi, como todos os cinéfilos que se prezam, tornar-me cineasta. Posteriormente, estava eu no I.D.H.E.C. (se não me engano...) quando estreou "Elena et les hommes", num ambiente eufórico, passando este filme a ser uma espécie de arte poética e arte política... Claro que continuei sempre interessado na obra de Renoir; vi os filmes a preto e branco e aliás acabei por vê-los muito mais vezes do que os outros. Devo ter visto La Règle du Jeu umas quarenta vezes e agora apresento o filme na Escola de cinema. Alguns dos outros filmes foram descobertas mais recentes... Porém os tempos de que falava há pouco foram uma época dourada. Vi este filme no cinema "Le Dragon", em Paris, haverá uns vinte e cinco anos, nessa altura descobri a dicção espantosa da Magnani a falar francês, e fiquei impressionadíssimo... Entretanto, há uma data de anos que não voltava a vê-lo e, de repente, ressurgiram todas as minhas memórias dos outros filmes do Renoir... porque a gente sente o ritmo das palavras, o tipo de "retournement" das situações e muitos desses ingredientes são variantes fidelíssimas de dispositivos que se encontram noutras obras. Agora tenho mais consciência do que podia significar falar francês nos estúdios italianos. Agora é muito mais saboroso perceber as estratégias inerentes a isso... os conflitos, as dificuldades de estar a filmar puramente em estúdio e em terra alheia, italiana, mas com a inacreditável generosidade da Magnani e daqueles actores. Portanto lêem-se mil e um pequenos subtextos. Como ele não tinha problemas de "realismo" porque isto é um "divertissement" passado numa América Latina de convenção, o filme, tal como alguns anteriores, é mais secreto, mais íntimo. Foi isso que mais me emocionou desta vez. Fiquei também impressionado com algum paralelismo a estabelecer com Elena et les hommes. Num disco sublime que eu tenho, o Renoir diz, falando de Ingrid Bergman e da sua personagem em Elena et les hommes, que a actriz só conseguia ser feliz no momento em que representava. A Ingrid Bergman já tinha trabalhado em muitos países, conhecido imensa gente, tido experiências italianas, americanas, suecas e por aí fora, mas realmente, até ao fim dos seus dias, só diante duma câmara ou em cima dum palco conseguiria felicidade. Assim foi e é exactamente o que o Renoir diz. Regina Guimarães - E faz dizer à Magnani. P. Rocha - No fundo é a grande solidão no paraíso das artes cénicas. R. Guimarães - A propósito de filme feito em terra alheia, o enredo conta precisamente a história de uma arte que se exporta para as Américas e isso é muito forte. É um elemento sempre presente no filme que se traduz pela necessidade permanente de seduzir. Seduzir um público não iniciado. P. Rocha. - No Renoir é o reino do "plaisir" e da "séduction". Embora a gente já suspeitasse, ele nunca o disse de maneira tão clara como aqui. Saguenail - Também me parece espantoso que, a par de um tratamento relativamento superficial do cenário de pacotilha que é a América do Sul, temos um tratamento muito fiel ao nível da reconstituição da Comédia Dell'Arte. Há uma curiosa inversão: aquilo que é artificial é mais verdadeiro. P. Rocha - Por um lado os miúdos a abanarem o berço têm a qualidade e o impacto dos bebés pintados pelo pai Renoir, por outro a patine toda da Comédia Dell'Arte...


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