Encontro com paulo rocha em torno do filme

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ENCONTRO COM PAULO ROCHA EM TORNO DO FILME «LE CARROSSE D’OR» DE JEAN RENOIR P. Rocha - Eu tenho duas fases de conhecimento do Renoir: a primeira corresponde ao Renoir que vi durante a adolescência lá no Porto; a segunda vem depois, quando já estava na Universidade, cá em Lisboa e a seguir no I.D.H.E.C. em Paris. Os que eu conhecia "menos" marcaram mais a minha vida, como por exemplo Le Fleuve (The River / O Rio Sagrado), que eu devo ter visto no cinema Batalha, numa sessão de domingo de manhã do Cineclube do Porto, e que arrasou comigo... teria eu uns 15 anos. Julgo que este filme também é do mesmo contexto... Depois, para aí aos 23 anos, descobri La Règle du Jeu em Madrid, na cidade universitária, e decidi, como todos os cinéfilos que se prezam, tornar-me cineasta. Posteriormente, estava eu no I.D.H.E.C. (se não me engano...) quando estreou "Elena et les hommes", num ambiente eufórico, passando este filme a ser uma espécie de arte poética e arte política... Claro que continuei sempre interessado na obra de Renoir; vi os filmes a preto e branco e aliás acabei por vê-los muito mais vezes do que os outros. Devo ter visto La Règle du Jeu umas quarenta vezes e agora apresento o filme na Escola de cinema. Alguns dos outros filmes foram descobertas mais recentes... Porém os tempos de que falava há pouco foram uma época dourada. Vi este filme no cinema "Le Dragon", em Paris, haverá uns vinte e cinco anos, nessa altura descobri a dicção espantosa da Magnani a falar francês, e fiquei impressionadíssimo... Entretanto, há uma data de anos que não voltava a vê-lo e, de repente, ressurgiram todas as minhas memórias dos outros filmes do Renoir... porque a gente sente o ritmo das palavras, o tipo de "retournement" das situações e muitos desses ingredientes são variantes fidelíssimas de dispositivos que se encontram noutras obras. Agora tenho mais consciência do que podia significar falar francês nos estúdios italianos. Agora é muito mais saboroso perceber as estratégias inerentes a isso... os conflitos, as dificuldades de estar a filmar puramente em estúdio e em terra alheia, italiana, mas com a inacreditável generosidade da Magnani e daqueles actores. Portanto lêem-se mil e um pequenos subtextos. Como ele não tinha problemas de "realismo" porque isto é um "divertissement" passado numa América Latina de convenção, o filme, tal como alguns anteriores, é mais secreto, mais íntimo. Foi isso que mais me emocionou desta vez. Fiquei também impressionado com algum paralelismo a estabelecer com Elena et les hommes. Num disco sublime que eu tenho, o Renoir diz, falando de Ingrid Bergman e da sua personagem em Elena et les hommes, que a actriz só conseguia ser feliz no momento em que representava. A Ingrid Bergman já tinha trabalhado em muitos países, conhecido imensa gente, tido experiências italianas, americanas, suecas e por aí fora, mas realmente, até ao fim dos seus dias, só diante duma câmara ou em cima dum palco conseguiria felicidade. Assim foi e é exactamente o que o Renoir diz. Regina Guimarães - E faz dizer à Magnani. P. Rocha - No fundo é a grande solidão no paraíso das artes cénicas. R. Guimarães - A propósito de filme feito em terra alheia, o enredo conta precisamente a história de uma arte que se exporta para as Américas e isso é muito forte. É um elemento sempre presente no filme que se traduz pela necessidade permanente de seduzir. Seduzir um público não iniciado. P. Rocha. - No Renoir é o reino do "plaisir" e da "séduction". Embora a gente já suspeitasse, ele nunca o disse de maneira tão clara como aqui. Saguenail - Também me parece espantoso que, a par de um tratamento relativamento superficial do cenário de pacotilha que é a América do Sul, temos um tratamento muito fiel ao nível da reconstituição da Comédia Dell'Arte. Há uma curiosa inversão: aquilo que é artificial é mais verdadeiro. P. Rocha - Por um lado os miúdos a abanarem o berço têm a qualidade e o impacto dos bebés pintados pelo pai Renoir, por outro a patine toda da Comédia Dell'Arte...


R. Guimarães - Quem vive a verdadeira vida são os actores, naquela casa transbordante de vitalidade... P. Rocha - Nunca o Renoir fez planos tão curtos, só para dar mais um detalhe do teatro, mais um pormenor da vida dos saltimbancos... Por outro lado, embora La Marseillaise já fosse uma lição de arquitectura — o jogo das portas e das escadas era difícil de superar! Aqui também temos um dispositivo complexo de portas, janelas e escadarias... Quando vemos uma, adivinhamos que vamos ver mais duas ou três, num infinito jogo de repetição. R. Guimarães - Com esses desdobramentos e o jogo das entradas em cena, aberturas e fechos, subidas e descidas, saídas, etc., uma pessoa começa, a partir de certa altura, a ler "naturalmente" todos os planos como se estivesse a ver teatro. Essa "indução" é fantástica. P. Rocha - No entanto, há planos que parecem mandar no conjunto, os da escadaria principal. Aquilo parece uma igreja, um altar-mor que confere grandeza e gravidade ao encontro da Magnani com ele. Raramente no cinema italiano as actrizes conseguiram ir tão longe. Como também naqueles quase grandes planos frontais, por exemplo. Ela fica com a riqueza e a nobreza daquilo que vai dizer... Saguenail - Deve haver um sistema Renoir onde cada coisa, com determinada utilidade aparente, de facto serve para outra. A maneira de filmar os cenários indica-nos que é o teatro dentro da pacotilha que é verdadeiro. Tenho a impressão de que, exceptuando um certo período, é o filme do Renoir onde vejo mais planos fixos, com uma fortíssima referência à pintura. Aliás, é graças à força dessa referência — a nível das cores, da luz e dos enquadramentos —, que o teatro adquire outra dimensão. P. Rocha - Mas isto é o fruto de uma enorme experiência... No final de La Règle du Jeu toda a gente diz o que tem a dizer. O francês diplomático de alta sociedade é uma língua de uma subtileza extrema e de uma precisão completamente estéril (aliás muitas das nuances não se podem dizer noutras línguas...) e a utilização dessa língua dos reis e generais é como a música - serve para virar tudo do avesso. Saguenail - O paradoxo é a Magnani estar vestida teatralmente para poder dizer algo de verdadeiro. R. Guimarães – Aliás, no fim do filme, a Magnani adopta completamente um figurino do Goya, que já nada tem de italiano e tem mais a ver com os antepassados daqueles colonos. Ela é uma aparição do Goya, a representar um papel numa peça acerca da caridade (a obra de caridade é um golpe de teatro encenado por uma actriz...), e a contracenar com um bispo... P. Rocha - Só que no Renoir essas referências não têm o menor peso. É como se ele tivesse devorado erudição ao pequeno almoço desde a mais tenra infância... R. Guimarães - Não é só uma questão de pertencer a uma elite, é também uma questão de "métier" essa capacidade de enquadrar as referências sem as transformar em peso morto. E, por outro lado, ele faz tudo pela sedução, a sedução não é uma vã palavra. Para te convencer vai seduzir-te. P. Rocha - Certas coisas que nele são brincadeiras futuristas — como a cena em que a Magnani descobre que o vice-rei é um homem como os outros — num filme normal seriam "estilo SIC". Saguenail - Ou "estilo hollywood" como no Ana e o Rei recentemente exibido no circuito comercial. P. Rocha - Só que no Renoir isso emociona-nos no momento seguinte porque descobrimos uma verdade que dantes não sabíamos. R. Guimarães - O Renoir tem uma forma peculiar de dirigir os actores: eles parecem sempre estar confortáveis e desconfortáveis ao mesmo tempo. Nisso a Magnani "responde" de forma sublime. Quando ela diz ao vice-rei: "Assieds-toi Ferdinand!" — está a ser o mais grosseira possível, no maior dos confortos, a jogar em casa e a falar com um igual, e no maior desconforto porque não sabe lidar com aquele homem rebuscado que não é do seu meio. E esta ambivalência é aplicável a todos os actores que parecem sempre completamente naturais e terrivelmente artificiais. P. Rocha.- Porque realmente os homens não são todos iguais e isso é uma grande injustiça no meio dos realizadores. É que o Renoir nunca precisava de olhar para a câmara, nem perguntar qual era a objectiva porque sabia sempre corno devia ser. Como o Rossellini, ele era fortíssimo na imagem, portanto nunca precisava, ao contrário dos outros pobres diabos, de ir lá espreitar. Quando era bebé


tinha lá em casa o Maupassant e fazia chichi nas calças do Maupassant, a cultura entrou-lhe pelos poros, ao mesmo tempo que as receitas de cozinha, e ele nunca teve que respeitar ou que trabalhar para ser culto. Nunca teve de fazer o menor esforço, não imagino sequer que ele fosse a museus, não precisava. Não percebia distâncias entre a alta cultura e a baixa, e isso é uma coisa que quase não existe na história do cinema, porque os outros cineastas, quando acontece tornarem-se mais populares, ficam pesadões. Uma das características seguras do Renoir, é que ele era um homem sensual, físico, espontâneo; ora, a cada momento, o que se está a ver é miraculoso de inteligência e de capacidade de escolher as coisas certas, os contrapontos no meio de um plano, o tom e o sítio onde pode exagerar. Além do mais, a gente tem a certeza de que, a partir de certa altura, a equipa já fazia aquilo tudo sozinha, só lhe dava muito trabalho instalar as regras do jogo, o método. Depois ele gozava com o que os outros trabalhavam. O rendimento da equipa é impressionante. Eu imagino que o inglês ou americano que faz de vice-rei deve ser excelente actor, mas realmente comparado com a Magnani não existe... Saguenail - Nenhum consegue existir! Fundamentalmente é um filme sobre a Magnani! R. Guimarães - Ela deve ofuscá- los. Saguenail - É que, além disso, eles são, no fim de contas, todos bons, quer dizer, nenhum é mau... São sempre inteiros, não mudam, enquanto a Magnani muda constantemente ao longo do filme. P. Rocha- Ela ama realmente cada um dos homens, ama a força, ama a glória, ama o poder... Saguenail - Ama o dinheiro, ama a intriga, de alguma forma... P. Rocha - Mas vai evoluindo... R. Guimarães - E tem saudades de tudo o que amou e perdeu... P. Rocha - E até dá a volta à igreja! É a grande encenadora! Mas eu desta vez tive muito mais atenção ao uso da música e dos décors, e ele usa com uma extrema liberdade as formas musicais, as formas arquitectónicas, a luz. Portanto a repetição, a variação nunca são formais, são para descobrir. E repararam na lata que ele tem de mostrar a corrida aproximando apenas a câmara do rosto dela e voltando para trás. É de uma grande liberdade! R. Guimarães - É que nem há touro, nem há cenografia, bastam-lhe umas flores e uns lenços... Aliás, nesse plano, o público tem muito mais presença do que o toureiro. O que é forte no plano é o público. O plano serve para dizer que aquele homem tem muito público, portanto está certo. P. Rocha - E é muito engraçado, a certa altura, eles vão-se embora no "Coche de Ouro" e os actores disputam a primazia, empurram-se para virem à janela, e depois, no fim, ela parece que tem quase um orgasmo, contentíssima de ter aplausos. E é delicadíssima essa mistura de grosseria e subtileza... Por outro lado, é muito triste, percebe-se que nos anos cinquenta, sessenta, ainda eram possíveis filmes assim... sem o menor tique formalístico, usando meios perfeitamente dominados, muito estúdio... Eu acho que o Renoir sempre foi um aristocrata, nunca precisou de respeitar as normas normais... as exigências de produção... Saguenail - Isso faz parte do sistema. Filma para nos dizer até que ponto ela (e ele) se estão borrifando para o coche de ouro. É exactamente esse o sistema Renoir, fazer de conta que se adere à lógica do produtor... P. Rocha - Agora chegámos a uma espécie de padrão em que o marketing e o lucro exigem que se faça de um filme um acontecimento... Esta modéstia desapareceu. Somos obrigados a fazer filmes únicos, com efeitos especiais, caros... O Renoir nunca teve de afivelar a máscara do pretenso génio para poder trabalhar. Ele não é especialmente autor, porque não precisa. Está sempre a fingir que está a fazer espectáculo. Só que ninguém filmaria as crianças a dizer "Vive le roi!" e a virarem-se para o berço como ele... E do modo romântico desapareceu tudo. Não há sombra de atitude romântica... Saguenail - Não, inclusive porque parece que o Renoir está sempre a falar de nada. Há uma coisa que eu acho muito forte neste filme, mais ainda do que, por exemplo aquele filme que ele fez nos Estados Unidos (um filme de guerra com uma componente de propaganda, onde o protagonista era um cobarde, mas tornava-se um herói por causa das circunstâncias, apesar de nunca ter querido ser um herói). Aqui todas as personagens estão na mesma situação, são as circunstâncias ou a


urgência que fazem com que elas se revelem... É talvez dos filmes mais inteligentes sobre essa responsabilidade da decisão. P. Rocha - E depois estamos habituados a essa chatice de hiperbolizar o artista. O Renoir consegue dar aos actores e à Magnani, tudo o que se pode dar. Saguenail - Mas não há um só discurso de elogio do teatro, por parte da Magnani, em momento algum. E aliás ela começa por dizer que quer ir-se embora, que está farta... No Renoir uma razão nunca é simples, é sempre um resultado. P. Rocha - E ao mesmo tempo a gente tem a certeza de que mil e uma coisas importantes se foram decidindo durante o trabalho... Que aquilo era um processo frágil, sinuoso, muitas outras hipóteses foram afastadas. Porque se calhar as crianças não eram capazes de fazer certas coisas e eram capazes de fazer outras... Com certeza que o Renoir não sabia tanto sobre Comedia Dell'Arte como isso, foi aprendendo durante a filmagem... E que se calhar, se a gente estudasse muito bem a aplicação da música (decerto composta à posteriori) percebia que ela veio alterar a leitura de certas sequências (já nem falo daquela da guitarra, durante o concerto...) Ao mesmo tempo, sente-se que é um dos filmes onde ele não deve ter tido problemas excessivos de produção, adivinha-se uma produção estabilizada. R. Guimarães - E nesse contexto tão estável, ele faz um filme sobre a teatralidade instável... P. Rocha - Existem três versões: uma italiana, uma francesa e uma inglesa. E li algures que o Renoir considerava que a inglesa era a original. Nesta versão, são emocionantes as derrapagens da Magnani entre o francês e o italiano. O francês, que é uma língua de filhos da mãe e de chicos espertos, ainda funciona melhor do que o italiano. A Magnani em italiano parece apenas uma diva normal. R. Guimarães — O filme tem outro aspecto fascinante: para se tornarem sublimes, as personagens principais têm que chegar à lama, têm que trair. Depois redimem-se porque os valores positivos do amor (no sentido lato) se sobrepõem à cobardia ou à venalidade primeiras. Saguenail - Isso é coerente com tudo o que ele sempre quis mostrar. Mas este filme tem um savoirfaire que provavelmente também se refinou com a experiência de Hollywood. P. Rocha — Aprendeu a controlar todo o esquema de produção. Saguenail - E a gestão da grande figuração no sentido de uma estilização. R. Guimarães - O Renoir fez muitos filmes. A quantidade conta. Conta na escolha inteligente do formato de produção, por exemplo. Inteligente e serena por parte de quem parte do princípio que terá outros tempos e formas e espaços para se exprimir porque fará outros filmes. P. Rocha - Mas não deixa de estar bem patente o lado pessimista do Renoir, o lado sombra que convive com a outra face, a face que apanha a luz. O Renoir, ainda por cima, filma muito bem o mal, a sombra está em cada plano. Isso também lhe vem da formação naturalista. R. Guimarães - Ele não rompe com o naturalismo mas mexe profundamente com o que aprendeu do naturalismo. Há quase um ajuste de contas em relação à estética naturalista e, ao mesmo tempo, um fascínio não desmentido. P. Rocha - É fácil parecer profundo e dizer que tudo são máscaras, que se deve assumir a artificialidade...Em parte o Renoir defende um lugar-comum que toda a Paris e a actualidade francesa preconizavam. Toda a gente tem arquétipos na cabeça e o Renoir não procura a excepção e o bom gosto. Por outro lado, há no Renoir uma aceitação quotidiana da banalidade mas também das formas da época. Claro que ele vem de um tempo em que o populismo ainda é muito importante e em que há respeito pelas pessoas normais...Muitos filmes dele começam com situações assaz convencionais, vários começam com ninfas e faunos. Portanto em parte, ele ainda é filho de uma cena francesa convencional e está muito próximo das suas convenções. Por outro lado, ele sempre sentiu o maior prazer em jogar dialecticamente com as pequenas convenções através da representação. Ele gostava de escolhas híbridas, de ir buscar actores à Comédie Française e fazê-los representar com uma actriz amadora ou com uma estrela de musichall. O marquês de La Règle du Jeu era um bellâtre, um homem bonito que vinha do music-hall francês; essa escolha mostra que ele tinha o maior prazer em jogar com as várias convenções. O próprio Renoir, quando representa como actor, tem um estilo muito amador, um pouco tipificado, mas contrasta com o dos outros o que dá uma sensação de frescura espantosa. Também joga


muitíssimo bem com convenções da Comédia Dell'Arte e com ingredientes do melodrama, tudo nele é uma montagem de estilos. E depois, com uma aisance soberana, joga com os atritos e no meio disso vai encontrando liberdades... Quem se lembra de La Règle du Jeu também vê que as pessoas ainda estavam habituadas a representar nas festas privadas. Hoje vivemos numa sociedade onde só minorias é que são capazes de fazer um número no palco. Dantes a representação teatral estava mais próxima da vida quotidiana. Saguenail - Há um trabalho particular sobre o paradoxo que é conseguido graças à aproximação de universos que não deveriam ser semelhantes. O palco e o baile do vice-rei, os cortesãos e as crianças a acolherem o capitão são colagens daquilo a que eu chamaria os falsos reflexos, colagens que fazem com que o lugar-comum, de repente, se transforme porque lhe vemos o avesso. P. Rocha - O Renoir nunca está satisfeito. É capaz de criar um personagem e de, a seguir, levá-lo ao extremo e engendrar um inimigo para depois mostrar que ele é igual ao inimigo. Um par de antónimos que a certa altura vão ter que se unir e que encontrar as maiores afinidades... sei lá... dois homens podem andar à pancada por causa de uma mulher e depois tornam-se os maiores confidentes para se queixarem das mulheres. Ora bem, para conseguir isso ele precisa de uma espécie de teatralização que lhe permite chegar lá depressa. Ele é um dos maiores mestres em toda a história do cinema europeu do contra casting. Em muitos casos, se quer criar um personagem ideal coloca-lhe uma máscara, um físico de alguém com ar de palhaço... o marquês de La Règle du Jeu é um bellâtre, um homem que aparentemente não tem nenhuma dignidade e as marcações que ele põe ao marquês na primeira sequência vão todas nesse sentido: ele está sempre a escorregar, a cair, não tem aplomb nenhum... o Renoir procura sempre que a nossa reacção seja pensar que tal pessoa com tal tipo de físico e tal tipo de voz é forçosamente assim e depois ele vai-nos mostrar o contrário... Portanto o sublime está próximo do ridículo. Ora o Renoir quer sempre que o filme contenha muitas descobertas, quer fazer um feuilleté em que desestabiliza todas as nossas certezas sobre o que é moral e o que é imoral, o que é corajoso, ou não é, o que é sedução, ou o contrário. Precisa de poder jogar muito, enquanto no melodrama clássico basta que as pessoas no filme (e pode-se fazer um melodrama com cinco ou seis personagens) cheguem a um certo ponto e mudem uma vez. O Renoir precisa de fazer isso por sequências, por isso a composição deve ser um bocado como a música com muitas portas e janelas para as mudanças e as variações serem rápidas. E é graças a essa proliferação de jogo e de teatro, a esse excesso, que as nossas certezas são minadas. Vamos de surpresa em surpresa, só que isso, de um modo geral, é bastante agradável. Estamos a ser enganados pelo actor, pela situação e logo a seguir somos confrontados com o seu contrário. Saguenail - Aqui a ideia de proliferação funciona perfeitamente. Mal chegam os actores, começam logo a representar o papel de ofendidos, perante o dono da albergaria, e pouco a pouco tudo passa a ser teatro. E o teatro, no meio disso, é só um referente e atinge realmente uma dimensão prodigiosa quando se chega à casa dos actores que é uma espécie de casa-palco. P. Rocha - Em La Règle du Jeu, há um momento em que o guarda-caça anda com a pistola a dar tiros no Marquês e ele dá uma ordem ao seu mordomo principal: "Acabe com este teatro" e depois pergunta: "O quê... o quê? É tudo teatro!". Só que no Renoir esta declaração nem é uma forma de cinismo, nem de humanismo "désabusé", é uma fonte de revelação permanente e para ele é emocionante descobrir que as pessoas são sempre mais complexas, mais sacanas, mais boas, mais imaginosas, sempre diferentes. Por outro lado, ele não perde uma oportunidade, no filme, de sublinhar o aspecto teatral. Qualquer escada lhe serve para se transformar numa escada de teatro, qualquer cortina lhe serve para se transformar em pano. Ele quer dar aos actores uma parte de cheque em branco, ele quer que os actores façam a crítica do que ele lhes propôs e essa crítica constrói-se, em parte, com as falhas dos actores. E a tendência dele é encenar as falhas, se o actor escorrega tem que escorregar três ou quatro vezes, não decide repetir porque alguém escorregou, repete porque esse alguém tem que escorregar mais vezes, tem que gaguejar e enganar-se e mostrar a estupidez etc. para o realizador descobrir que o que tinha proposto aos actores não era bom. Só que a descoberta dessa verdade mais profunda vem de uma cumplicidade de jogo, o uso da hipótese: "se isto fosse ao contrário?" Vamos experimentar repetir isto ao contrário só para ver o


que dá. Isto não é bem só só teatro, é a ideia de que o caos e a experiência estão sempre a dar novas imagens do que são os sentimentos ou as situações. Saguenail - Há no Renoir um desejo de utilizar essas noções de jogo, ou de teatro, para tentar, até ao último plano (o último plano é sempre muito particular) exorcizar... o pessimismo. Num filme como "Une Partie de Campagne", eles estão a jogar o tempo todo, menos no último plano. Aqui, também há uma espécie de divertimento... e o divertimento ocupa o espaço todo, até que, de repente brilha outra verdade, da saudade, da manhã... R. Guimarães - Logo no início do filme, a primeira vez que se vê a personagem do vice-rei, ele está sentado na cadeira da sua melancolia a ser maquilhado, a ser matinalmente preparado por um camareiro qualquer... numa situação e numa posição que o tornam não muito simpático...Parece uma criatura arrogante e mole. Depois vai-se perceber que aquelas criaturas, e em particular aquela criatura, morrem de aborrecimento: o homem vai à janela e dá-se conta que do outro lado da rua habitam agora desconhecidos que são os actores. E aí há uma primeira assimilação dos actores aos índios porque fazem barulho como os índios fazem. E o que acontece durante todo o filme é que, independentemente de qualquer outra de todas as aventuras, aquela gente passa a divertir-se imenso. Divertem-se a partir do momento em que chegam os actores. A vida ganha uma espécie de velocidade, de charme, de aventura, que não tinha nem havia até aquelas pessoas chegarem ali. Enquanto isso, o amante preterido vai à terra dos índios e descobre que os índios é que são giros... aliás quer que a Magnani troque o palco pelos índios. Há qualquer coisa que tem mesmo a ver com o divertimento, independentemente da descoberta de si, e mesmo que as personagens não consigam descobrir grandes coisas sobre si próprias, divertem-se mais e a sua vida ganha um ritmo, um ritmo de ser vivida, do qual o filme é a ilustração do princípio ao fim. Para haver a vertigem de viver, foram necessários os actores. Saguenail - O coche é dado inicialmente como um símbolo nacional... R. Guimarães - O coche é um brinquedo, o vice-rei torna-se simpático aos nossos olhos porque comprou um brinquedo e diz na cara de toda a gente que aquilo não serve para nada (ou contradiz-se na utilidade pública que atribui à coisa), comprou aquela coisa e não a utiliza, depois dá a coisa de prenda à amante. Essa falta de respeito instala-se por toda a parte, essa falta de seriedade propaga-se a tudo e as pessoas divertem-se muito mais e passam a ter uma vida muito mais interessante. Por muito que haja duelos, ciúmes, invejas, etc., e que isso seja violento, o povo e os senhores vivem a um ritmo novo, alucinante. P. Rocha - Um conselho de estado é divertidíssimo... desde que haja uma actriz ao lado e uma amante do outro... R. Guimarães - Portanto, os actores são apresentados como pessoas que têm um Suplemento de saber viver em relação às outras pessoas, sabem viver melhor que as outras pessoas, vivem mais intensamente... Eles instalam uma espécie de desobediência civil. Porque não respeitam nada, porque insultam o patrão do albergue, porque não seguem as regras, porque têm filhos por toda a parte, crianças que berram, mulheres, velhos, tudo misturado... A sua presença, por si só, já é uma perturbação comparável aos índios. Os índios no sentido de "os selvagens estão entre nós". Saguenail - Isso torna-se um tema quase omnipresente, a partir deste filme. P. Rocha - O Renoir tem uma experiência familiar prática e concreta, desde bebé, de que as várias artes (desde a cozinha, às artes nobres) são necessárias para resolver os problemas do dia-a-dia. Ele não consegue imaginar que as artes estejam fora do mundo. Saguenail - Tenho uma recordação muito viva de um documentário que o Sacha Guitry realizou sobre pessoas reais (Ceux de chez nous). No fundo trata-se de um pretexto... o importante para Sacha Guitry era promover o próprio pai... mas no meio das personagens que descobrimos há uma visita a Auguste Renoir que tem as mãos completamente doentes. E está o Jean Renoir a enfiar-lhe na mão um pincel para o pintor lhe dar uma pincelada. De alguma forma, essa realização da obra com um gesto que ainda é do autor, e o resto depende dos colaboradores, (o filho neste caso) também deve ter influenciado imenso a sua prática. A generosidade de Renoir porventura tem a ver com essa experiência.


P. Rocha - Não, porque eu acho que o segredo do Renoir, o seu talento natural, revela-se no momento de pôr as várias bolas de bilhar a bater umas nas outras e deve-se ao facto de ele achar que toda a gente tem talento. E que o acaso e os acidentes também são produtivos. Portanto, se abandonarmos a rigidez, as possibilidades multiplicam-se e é preciso uma estratégia para delas tirar partido. O teatro é apenas uma série de hipóteses segundas... Se a situação está bloqueada, façamos" como se"... É isso que o Renoir institui na equipa durante o filme e no fundo ao longo da vida. Ele inventou uma enorme quantidade de estratégias, e sabe que pode começar pelo lugar-comum. O lugar-comum é um bom ponto de partida porque ele não é escravo do lugar-comum. Os lugarescomuns do Renoir são diferentes do que são os lugares-comuns, digamos intelectualizantes, dos nossos tempos. R. Guimarães - A diferença é que quando ele faz a Espanha de pacotilha, é óbvio que aquilo é pacotilha e é óbvio que estamos na convenção. Hoje em dia, por vezes, as pessoas fazem pacotilha com a sensação de que estão a fazer reconstituição histórica e outras coisas que tais...Agora é muito raro ver um cenário de cinema dado como um cenário. Faz-se tudo para que as pessoas entrem no cenário, percam distância. Saguenail - Mas aí talvez a escolha da Comédia Dell'Arte não seja também um acaso porque dentro da simplificação, teatralização, redução às coisas mais simples, um gesto, uma pirueta etc... não se pode ir mais longe. Isto é, toda a acção começa a parecer teatral mas, definitivamente, o ponto mais alto do teatro é a Comédia Dell'Arte. Porque já não resta mais nada, já não há psicologia, já não há propriamente intriga que valha... P. Rocha - Eu devo dizer que nos últimos anos tenho lido bastante sobre a Comédia Dell'Arte...tenho visto muitas reproduções, comprei vários livros e, de repente, ao ver aqueles segundos, aquelas curtas situações, a surpresa e o prazer foram grandes porque era muito mais forte e muito mais surpreendente do que eu imaginava. Os vários personagens (Pantaleone e os outros) eram dez vezes mais interessantes do que a psicologia... do que todos os realismos. Mais verdade, mais chocante, com a força de uma experiência real. Saguenail - E aí o filme é diabolicamente hábil porque apesar de haver, sobretudo na primeira parte, um longo tempo sobre Comédia Dell'Arte, afinal acabamos por não ver nenhuma peça, nem nenhum excerto suficientemente longo para entrarmos na Comédia Dell'Arte, porque o verdadeiro tema não é a Comédia Dell'Arte (que não passa de uma referência) mas sim a vida na sua componente teatral, fundamental. R. Guimarães - Mas em todo o caso, na apresentação que temos da Comédia Dell'Arte, avulta a ideia de reportório. Um reportório adaptado às necessidades e gostos do público. Saguenail - Mas aqueles também podem improvisar... R. Guimarães - Mas não é bem no sentido do improviso teatral como nós hoje em dia o entendemos. Saguenail - O jogo pelo jogo... R. Guimarães - Mandamos os clowns entreter o público enquanto se resolvem as coisas nos bastidores... não é bem um improviso... Saguenail - Mas o importante é o tal divertimento, não é a peça. E isso é também "um programa" porque a partir daí vai ser tudo ao contrário. P. Rocha - Nesse sentido, se um filme como este pudesse ser o filme de cabeceira de um jovem, serlhe-ia decerto extremamente útil para o resto da vida... Não vi este filme um número tão grande de vezes como vi os outros filmes do Renoir. Agora pela quarta vez vi-o muito melhor mas precisei destes anos todos, ou seja, as ilusões e os golpes de teatro de que eu fui vítima e de que vitimei algumas pessoas ajudaram-me a ler o filme. Por outro lado, com os anos o que se torna claríssimo é o extremo calor, o lado aberto, a forma peculiar como ele pega nas crianças... Saguenail - Tanto mais notável que quase não há exteriores neste filme. Logo à partida a corte caracteriza-se pelo ouro; todas as roupas são brancas e douradas e o que vai superar essas dominantes são as cores da Ana Magnani, o preto e o vermelho, não há concorrência de natureza solar. Estamos no universo do teatro, o vermelho é o do pano. E isso acho notável, porque a ideia


mais simples seria opor a essa luz fictícia uma luz natural. Ora à coisa fictícia opõem-se outras cores ainda mais fictícias. P. Rocha - Mas um filme destes, com todo este calor e charme, não tem praticamente base realista, nem histórica. Não são pessoas verdadeiras nem lugares verdadeiros, o que é relativamente raro. Mesmo quando o Renoir filma Elena et les Hommes, há 100 anos ou coisa assim, aquilo baseia-se numa atmosfera que as pessoas ainda conheciam de experiência directa e que era o espectáculo de Paris. Eram as convenções do espectáculo de Paris, as pessoas ainda podiam ir às "Folies Bergères" ou a outros antros... Portanto estes "divertissements" dele, exigem um bocadinho mais de atenção... vêem-se muito bem logo à primeira, mas ganha-se imenso, aos poucos, quando se consegue perceber que são quase testamentos ou esboços de arte poética.


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