Encontro com peter greeaway

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ENCONTRO COM PETER GREENAWAY Saguenail — A minha primeira pergunta seria: como aconteceu a mudança? Vejo uma grande diferença entre os primeiros filmes que estão a ser apresentados aqui no Festival de Vila do Conde, filmes esses com uma marcada vertente experimental — pesquisa sobre o ritmo, por exemplo — e os seus filmes mais recentes que, embora distintos da maioria das produções comerciais, já não apresentam essa particularidade. Digamos que o lado experimental passou a ser um aspecto oculto... a partir de O CONTRATO. Peter Greenaway — Há muitas razões para isso que está a dizer. Mas antes de mais gostaria de questionar a sua noção de experimental, porque acho que os meus filmes continuam a ser muito experimentais. Acho que são experimentais ao nível do conteúdo, porque provocam as sensibilidades em relação aos tabus e às atitudes do poder, por exemplo. A minha posição no que diz respeito à neutralidade darwiniana é pouco usual no cinema. A maior parte dos filmes forçam uma identificação entre o público e a ficção, coisa que duma forma geral não acontece com os meus filmes. São aliás frequentemente acusados de parecerem muito frios e cerebrais. Essa postura intelectual e cerebral é verdadeiramente rara. Ao nível da organização estrutural, os meus filmes utilizam o espaço do enquadramento e inscrevem-se numa linhagem tipicamente pós-moderna de releitura da História. Todos estes elementos são incomuns no cinema e alguns revestem carácter experimental. No entanto, há um aspecto chave que você referiu na sua pergunta: os filmes mais antigos são bastante despojados. A preocupação com as estruturas e as formas está mais abertamente exposta. Um filme como MARIDOS À ÁGUA possui uma organização estrutural muito rígida que está intimamente ligada com o VERTICAL FEATURES REMAKE. Há quem diga que O CONTRATO é uma espécie de 2ª versão do VERTICAL FEATURES REMAKE com actores. Portanto há imensas correspondências que se podem estabelecer dentro da minha obra, para a frente e para trás. Há também uma razão de ordem social. Eu não quero ser um cineasta obscuro, a trabalhar na sombra, e a mostrar os meus filmes apenas a outros cineastas. Acho que é importante para todos nós darmos uso às nossas imaginações na praça pública. Doutro modo, o cinema será tão maçador, tão monolítico como o de Hollywood. Por conseguinte, é nossa responsabilidade, vossa e minha, levar as nossas preocupações pessoais para o mainstream. S. — Claro. P. G. — E também acho que os filmes «underground») serão sempre filmes «underground». A pintura «underground» acaba sempre por transformar-se em pintura «overground», mas há muito poucos filmes «underground» que conseguem romper o círculo. Talvez o ERASERHEAD do Lynch... É uma obra que emergiu do «underground» para a superfície. Mas há milhares de realizadores, que você e eu conhecemos, que nunca se impuseram. E isso


significa que ficarão para sempre desconhecidos, que a sua influência será reduzidíssima e que o seu contributo para a gramática fílmica será ínfimo também. Ao cabo de 100 anos temos o cinema que merecemos, bizarramente. E eu não gosto do cinema que temos. É um cinema submetida à tirania do enquadramento, à tirania do texto e à tirania do actor. São três péssimas coisas, no meu entender. É extremamente relevante o facto de eu não ter querido continuar a fazer filmes sobre comboios e nadadores... todos os realizadores de vanguarda fazem filmes sobre comboios e nadadores. Podemos encontrá-los nos anos 10, nos anos 20, nos anos 30... nos anos 50, no cinema americano dos anos 60, nos filmes ingleses actuais, nos anos 70, nos anos 90... sempre os mesmos filmes. E a razão para que isso aconteça é que nunca ninguém vê o produto original. Portanto as pessoas repetem sem conhecer e perceber o que já foi feito no passado. Há um tremendo desconhecimento do cinema «underground». Muito poucas pessoas viram os primeiros filmes de René Clair... ou os trabalhos de Jonas Mekas. São cineastas obscuros. Julgo que a nossa responsabilidade consiste em transportar o experimentalismo para um campo da produção mais dominante. Ocorre-me agora outro motivo forte. Suponho que o meu último filme conotado com o período dito «experimental» é um trabalho intitulado THE FALLS, um longo filme de cariz enciclopédico, em 92 partes, baseado numa ideia de John Cage. Essa obra é muito devedora da minha formação de documentarista... eu fui montador de filmes documentais durante dez anos. Trabalhava para o Governo britânico e para a BBC; elaborava propaganda sobre o modo de vida britânico que o governo difundia pelo mundo fora. E fazia muitos programas sobre estatísticas: quantos portos de mar no País de Gales, quantos restaurantes japoneses em tal cidade... Produtos absurdos em que se tentava explicar o modo de vida britânico ao planeta inteiro. E eu tive um mentor. Todos temos pessoas que nos ajudam e empurram — tenho a certeza de que você também poderia citar pessoas-chaves na sua carreira. O nome do meu mentor é Peter Sainsbury, trabalha para o British Film Institute, e providenciou apoio financeiro para os meus filmes. E ele sugeriu-me que não continuasse a fazer filmes em que fosse eu próprio a falar directamente com o público (o que era uma característica dos meus primeiros filmes). Achava que eu devia fazer filmes em que as pessoas falassem umas com as outras. É um ponto muito importante porque o olhar deixava de estar orientado para o espectador e passava a interessar-se pelos actores no ecrã. Porém as características dos meus primeiros filmes continuam a estar presentes nos mais recentes. Em O CONTRATO, por exemplo, as pessoas continuam a contar histórias, a fazer estatísticas, a estabelecer catálogos, só que o fazem enquanto personagens, umas com os outras dentro da tela e não directamente para o público como na tradição do documentário. Portanto, com esta longa resposta à sua pequena pergunta, pretendo afirmar que existe na minha obra uma continuidade de intenção e um desejo de assumir uma posição sociopolítica


diferente que se mantém. Nenhum de nós deve ficar na sombra, todos devemos ser vistos à luz do sol. S. — Podemos voltar a este ponto depois. Se quiser, eu vejo algo mais simples: o número de regras do jogo que você impõe a si próprio parece ter-se multiplicado nos filmes de ficção. Você disse que INTERVALS era sobre o número treze... P. G. — MARIDOS À ÁGUA era sobre o número cem. O CONTRATO era sobre o número doze. Estamos a falar de estruturas não-narrativas... S. — Sim, mas a complexidade dessas estruturas parece cada vez maior. P. G. — Não acho. Repare, por exemplo, no VERTICAL FEATURES REMAKE que é uma diatribe contra o estruturalismo. E há uma razão histórica para essa diatribe. A maior parte das pessoas que geriam o dinheiro destinado a apoiar a actividade cinematográfica eram estruturalistas e pós-estruturalistas. Por exemplo, o Colin Mackay que trabalha no B.F.I. era assumidamente estruturalista. Logo, as pessoas como eu, que não estavam particularmente interessadas nas atitudes dogmáticos em relação à fenomenologia da estrutura, não queriam associar-se àquelas tomadas de posição. Por isso o VERTICAL FEATURES REMAKE é uma crítica simultaneamente pró e anti-estruturalista. Mas obedece a um modelo de organização interna extremamente complicado que tenta conciliar as duas diferentes formas de fazer cinema: a exposição típica da ficção e a explanação própria do documentário. É porventura o meu filme mais complexo em termos de organização da estrutura, se exceptuarmos o ZOO. S. — E há uma parte dessa complexidade que é de natureza verbal, que passa também pela associação inconsciente de conceitos. Estou a pensar nomeadamente no seu filme sobre o arquitecto. Ou no farol do MARIDOS À ÁGUA que nunca é visto, só é sugerido pela luz que emite; somos obrigados a reconstituí-lo. Os seus filmes são como puzzles que o espectador tem de analisar. P. G. — Eu penso que uma obra de arte para ser saboreada e apreciada no seu justo valor deve ser objecto de várias visões. O Cecil B. de Mille, em 1936, fez uma afirmação completamente estúpida: «Se não se conseguir perceber um filme à primeira, quer dizer que o filme é um fracasso». O homem era um idiota chapado. Todos sabemos que a poesia tem de ser lida muitas vezes para ser entendida na sua complexidade. Precisamos de ouvir uma música repetidas vezes para descobrir as ideias que ela contém dado que é impossível apanhá-las numa só audição. Eu também defendo a noção de um cinema que convoque várias visões por parte do espectador. Por outro lado, o trabalho experimental da vanguarda provoca inevitavelmente o choque da novidade. Tudo o que é novo tem de ser lentamente absorvido e implica que o receptor seja educado para o compreender. Um visionamento de OS LIVROS DE PRÓSPERO nunca será suficiente. São necessários quatro ou cinco visionamentos. E eu tenho a certeza de que, com as novas tecnologias, com a partilha de responsabilidades entre o cineasta e o público que se perfila e com a decadência da noção do realizador como figura central, magnífica e autocrática, tudo vai mudar. E as mudanças já estão a acontecer, as novas


formas de interactividade já estão na ordem do dia. Eu sinto que faço filmes para um público que deveria poder interrompê-los, voltar atrás, rever lentamente, saltar dum ponto para o outro. Acho que, aos poucos, me vou aproximando duma forma parente do CDrom. Devo confessar que a minha grande ambição é fazer um CDrom em omnimax. Preciso de um ecrã maior em tamanho do que você e que faça mais barulho e preciso da possibilidade de mostrar variações infinitas sobre um tema. Seria uma espécie de derradeiro catálogo, aquele que nunca acaba. S. — Suponho que o John Cage... P. G. — O Cage para mim é um grande herói. Fiz três filmes sobre noções como o acaso que são do Cage. O último filme exibido neste Festival, A WALK THROUGH H, é acerca da indeterminação; o FALLS também foi inspirado em conceitos do Cage, como o de sistema arbitrário. Aliás, fiz um filme sobre o John Cage, fiz um filme com o John Cage. S. — Por acaso vi-o. P. G. — Enquanto estudante de Artes, o John Cage foi uma figura tutelar para mim. E não é por acaso que o John Cage disse um dia que se introduzirmos mais de 20% de novidade num trabalho artístico, perdemos 80% do nosso público por um período de 15 anos. Ora, eu não quero cometer um suicídio estético e comercial por ser demasiado experimental. Temos de avançar a um ritmo que nos permita levar o público atrás de nós. Nos anos 60 e 70, estiveram na moda o tédio e a repetição que não andam longe do universo musical de pessoas como o Steve Reich e o Philip Glass. O reduccionismo e o minimalismo eram de resto muito brechtianos e ao mesmo tempo muito beckettianos. As obras que resultaram dessas opções estéticas manifestamente afastavam o público. Eu sei que durante a projecção do VERTICAL FEATURES REMAKE, as pessoas saem aos magotes porque não suportam o rigor do sistema e a estratégia explorada até à exaustão. Por outro lado, pessoalmente não estou interessado no cinema narrativo. Não acho que o cinema seja um bom medium narrativo. Também não estou interessado no pretenso drama no sentido psicanalítico que é característico deste primeiro século do cinema. Não é por acaso que a História do Cinema se desenrola paralelamente à da Psicanálise. Uma das grandes tragédias do cinema reside no facto de andar associado ao psicodrama. Acho que Griffith nos deu um presente envenenado quando introduziu a noção de cinema como máquina de contar histórias do séc. XX, destinada a substituir a literatura, porque foi nisso que o cinema se transformou efectivamente desde então. É um bocado como a introdução da imaculada conceição no catolicismo: era totalmente desnecessária mas agora a igreja está entalada porque passou a ser canónica. Voltando ao cinema: a maior parte das pessoas vai ao cinema para que lhe contem uma história, o que acarreta uma colossal perda de vocabulário cinematográfico. As pessoas esbanjam demasiado tempo a preocuparem-se com histórias. S. — Mas, pondo de parte as histórias em si, o facto é que há temas recorrentes na maioria dos filmes.


P. G. — São estruturas de ordem moral. Duas delas são dominantes: uma é o caminho da sensatez e a outra é o processo de incriminação. São os dois vectores morais mais importantes da arte ocidental. A maioria dos filmes encena uma situação imoral e instala uma busca de incriminação: um homem comete um crime, temos de descobrir porquê e depois temos de o castigar. A esmagadora maioria dos dramas desenvolvem-se assim ou então desenrolam-se em torno do amadurecimento. Grande parte do cinema americano dominante é acerca de jovens a aprenderem os alicerces morais do edifício do mundo, as bases do funcionamento sexual da comunidade, etc. É relevante constatar que, a nível mundial, os filmes se dirigem ao público jovem masculino de idades compreendidas entre 16 e 32 anos. Ao contrário do que acontece no domínio literário, visto que a maior parte da literatura popular se dirige a um público-alvo de jovens mulheres dos 16 aos 32 anos. Eu sou um homem de meia-idade, já não estou interessado nesses problemas. Mas julgo que são essas duas estruturas morais que imperam, na arte ocidental. S. — Mas entre os seus filmes mais antigos e os mais recentes, vejo também estruturas dominantes: a relação entre a vida e a imagem, por exemplo, que o leva a filmar um corpo humano como um objecto e que explica porventura o tratamento recorrente da impotência masculina. No MARIDOS À ÁGUA, ou em CÓLICAS DE UM ARQUITECTO. P. G. — São filmes sobre o envelhecimento... S. — Só que o tratamento desses temas não é propriamente directo. P. G. — Mas eu parto de dados essenciais de comportamento e mentalidade em relação ao homem do fim do séc. XX. A impotência masculina é o grande tema da nossa época. Na medida em que as mulheres têm vindo a ganhar poder no terreno político, social, sexual e religioso, é inevitável que os homens sejam obrigados a repensar a sua posição em relação à impotência... S. — A maior parte do cinema que se faz evita esse assunto ou então tenta criar uma ilusão de... potência. Mas, para mim, o mais importante é que a questão da impotência conduz a outra problemática: a da interrupção do ciclo da reprodução. P. G. — Voltando ao drama grego, só existem dois temas: o sexo e a morte. Neste final do séc. XX, de facto conquistámos muito terreno no domínio do sexo, graças à contracepção, à liberalização da escolha dos parceiros sexuais... Num contexto pós-Huxley e pós-Darwin, temos uma forma de lidar com os problemas do sexo que os nossos avós estavam longe de ter. Em certo sentido, controlamos grande parte da programática do sexo que foi marcante no princípio do século. Onde estamos muito mal é no campo da morte. A morte é a nova fronteira pornográfica. Não temos sistemas de luto, temos um desejo avassalador de esquecer a morte e os mortos. Empurramos os mortos para debaixo da mesa. A noção de cadáver é completamente evacuada das nossas vidas. Muito raramente vemos cadáveres. Através da medicina, da hospitalização, da expulsão dos velhos do seio familiar, conseguimos afastar a morte das nossas preocupações. Acho que é uma rejeição muito perigosa. Por isso tento tratar


esses dois temas maiores nos meus filmes: o sexo e a morte. A maior parte da produção literária e dramática ocidental dos últimos quatrocentos anos caracteriza-se por uma postura paternalista. Com as consequências da recente liberalização, penso que seremos obrigados a questionar essa atitude paternalista. É lamentável que haja tão poucas dramaturgas mulheres no mundo. Ainda que possa parecer arrogante da minha parte enquanto homem armar-me em feminista, acho que faz parte da nossa responsabilidade fazer um reajustamento dos conceitos de sexo, morte e género. Sou um darwiniano convicto. Acredito nas propostas existencialistas de 1859. A maior parte das pessoas não aceitam o sentido da evolução que Darwin defende. Muito poucas pessoas ouviram o que Darwin tinha para dizer, a saber que a existência não tem nenhuma razão de ser, porque esta afirmação é aterrorizadora. Mesmo os ateus, os agnósticos, os intelectuais ficam assustados com a ideia de uma existência sem sentido. Os meus filmes categorizam esse tipo de noções inaceitáveis, construindo sistemas e destruindo-os a seguir, quer se trate de hipóteses científicas, quer, como acontece no ZOO, apresentando o darwinismo como uma hipótese comparável à génese, ou seja apenas uma tentativa de explicar o inexplicável, o caos. Também há muitas pessoas que se sentem desconfortáveis com o meu cinema porque o consideram niilista. Digamos que os valores morais que encerram são radicalmente diferentes dos valores dominantes na primeira metade do século XX. Num filme como O COZINHEIRO, O LADRÃO, A SUA MULHER E O AMANTE DELA e ainda mais em O BEBÉ DE MÂCON, eu defendo a tese de que todos os sistemas morais foram à falência. As últimas referências morais foram pulverizadas pelo holocausto na Segunda Guerra Mundial. Os bons já não são recompensados, os maus já não são castigados e os inocentes são constantemente maltratados. S. — Você diz isso duma maneira muito menos directa nos seus filmes. Porque nos filmes a complexidade das formas, o brilho das soluções visuais criam uma espécie de efeito de ecrã que funciona como barreira para o espectador. P. G. — As afirmações do tipo «os bons já não são recompensados», «os maus já não são castigados» etc., não podem ser lançadas sem explicação, sem aprofundamento, sem elaboração. É preciso explicitar donde vêm essas afirmações e o que significam. Um filme que se limita a enunciar um juízo desse género nunca será eficaz, nem adequado. Se você viu O CONTRATO, estará recordado que lá se declara que um pintor não pode ser um homem inteligente e que um homem inteligente não pode ser pintor. Porque os grandes artistas não são intelectuais, são totalmente visionários. É o caso do Rembrandt ou de Miguel-Ângelo. Há algo na necessidade obsessiva de fabricar a imagem que implica uma visão parcelar e parcial da realidade. E se você se considerar um intelectual, como eu me considero, não pode deixar de saber que as coisas não são assim tão simples. Um intelectual tem grandes dificuldades em produzir um trabalho artístico porque está sempre a ver o ponto de vista antagónico. Não tem essa visão «do fundo do túnel» que caracteriza o olhar do artista. Por isso é que eu não consigo enunciar juízos simples nos meus filmes. São demasiado directos. Deixam demasiados


aspectos de fora. Cortam o mundo ao meio e deixam uma metade por explicar. Os meus filmes são sempre muito complexos, cheios de ramificações, caminhos laterais, metáforas, alusões, contrapontos, para que o espectador tenha um quadro mais completo do fenómeno. De algum modo, os meus filmes são como dissertações embrulhadas numa forma narrativa. Em certo sentido são altamente polémicos, mas eu não quero enveredar pela polémica porque é uma chatice. Então tento fazer filmes que sejam um retrato enciclopédico do mundo. Quando se vê o CÓLICAS DUM ARQUITECTO aprende-se a lidar com alfinetes de bebé e a mudar fraldas. Mas duas horas não chegam para dizer tudo, esse é o meu grande problema. O próximo filme vai ter oito horas para eu poder oferecer realmente um retrato enciclopédico do mundo. Não sei se alguém vai querer vê-lo, não sei se os cinemas vão exibi-lo, mas eu vou fazê-lo. S. — O problema da análise que passa pela linguagem é que nunca temos uma visão global. Só podemos ver um lado de cada vez... Gostava que me falasse de outro aspecto da sua obra: a pintura revisitada. Há uma referência constante à pintura muito embora cada filme se refira a épocas ou estilos diferentes. O seu trabalho com o Sacha Vierny é colossal no que diz respeito à factura pictórica das imagens. Em O CONTRATO questiona-se a organização clássica do olhar. No MARIDOS À ÁGUA aborda-se mais concretamente a tradição inglesa. Em O BEBE DE MÂCON revisita-se o pósrenascimento. P. G. — Não obedeço a nenhum programa do tipo «esta semana vou consagrar-me ao Franz Hals, na próxima debruço-me sobre o Van Gogh». Estudei pintura. Acho que a pintura é uma arte muito mais sofisticada do que o cinema e a história da pintura é muito mais longa do que a do cinema. Em minha opinião, ainda não vimos cinema nenhum, tivemos apenas um prólogo de cem anos. A pintura desenvolveu uma estética complicada e excitante: forma, consciência, ilusão, representação. É uma arte altamente sofisticada. Por outro lado, o pintor é tradicionalmente um radical. Ora o cinema não é radical, é profundamente conservador. O cinema mainstream tem custos elevadíssimos. Não sei se lembra da posição do pintor inglês Francis Bacon que declarou que podia deitar fora noventa e nove telas e conservar apenas uma. Você sabe tão bem como eu que, quando começamos um filme, não conseguimos parar, temos de continuar. Não podemos repensar a obra. E por isso que as potencialidades experimentais e o radicalismo da pintura sempre me fascinaram. Além disso, a pintura vive de uma relação íntima. Não são precisos actores, nem cameraman. Só o artista. É muito estimulante. Acresce que tudo o que os cineastas pretendem representar já foi estudado e representado pelos pintores. O cinema nasce duma combinação da literatura, do teatro e da pintura. Mas é consabido que a literatura e o teatro dominaram a produção cinematográfica no seu devir. Surpreendentemente, a maior parte do cinema é não-visual, apresentando-se ora como ilustração de texto, ora como teatro gravado. E mesmo os grandes cineastas como o Scorsese limitam-se a registar psicodramas. O grande Bergman está muito mais próximo do teatro do que do cinema e o seu cinema é basicamente teatro filmado, porque tudo gira à volta


da palavra e do actor. Pessoalmente pretendo voltar atrás e tentar utilizar o que a pintura nos legou. A melhor pintura é não-narrativa, trabalha sobre a sequência, sobre a paragem no instante — por isso é que o Vermeer é tão importante para mim. Como o Godard disse, o Vermeer é o primeiro cineasta, criou um mundo inteiramente moldado pela luz... Mas há muitos outros pintores de primeiro plano nessa área de pesquisa, como por exemplo o Caravaggio cuja luz é extremamente cinemática, ou o Ribera que pintou as trevas, ou um formalista, como o Piero della Francesca. Eu estou interessado na imagem e não no enquadramento. E ambos sabemos, como cineastas, que o cinema está submetido ao enquadramento. Na minha prática, sou constantemente levado a estudar o que os pintores fizeram ao longo de dois mil anos de pintura de modo a poder utilizar o que eles «viram» no cinema. Mas muito embora tenhamos falado de pintura dos séc. XVI e XVII, o meu cinema está muito mais enraizado nas formas do séc. XX. A maior parte dos meus filmes questionam a grelha clássica. No entanto, os maiores contributos do séc. XX na área das artes foram sem dúvida a rejeição da ilusão — a arte deixou de ser uma janela, os limites do enquadramento passaram a ser assumidos como tais — e o sentido da grelha — Mondrian, Rauschenberg ou Jasper Johns utilizam a grelha, ou seja uma estrutura formal muito rígida onde se dispõe a matéria. E, de facto, se a estrutura for suficientemente forte, pode servir de suporte a qualquer matéria. Mas mesmo em termos de diálogo, de atitude perante as mulheres ou conceito de imagem, O CONTRATO só aparentemente é um filme sobre o séc. XVII. Na verdade é claramente um filme inspirado por preocupações do séc. XX. A afirmação de Picasso — «Eu não desenho nem pinto o que vejo, desenho e pinto o que penso» — é uma ideia emblemática do séc. XX. E é isso que está em causa em O CONTRATO, muito embora a personagem supostamente desenhe e pinte em 1694. As preocupações do artista e a concepção do filme são claramente do nosso século. O meu desejo muito típico do pós-modernismo de revisitar a História — a História da Reprodução, a História das Noções da Representação — tem tudo a ver com o nosso século. Tenho sido muito criticado por os meus últimos filmes escolherem o barroco como referência. Mas as intenções da minha pesquisa não mudaram substancialmente. S. — Em MARIDOS À ÁGUA, temos a impressão de que se cruzam várias referências pictóricas... P. G. — Basicamente, a referência mais forte é a pintura paisagística inglesa do séc. XIX — de 1851 a 1862. S. — Mas também se sente a presença duma grande tradição de ilustradores... P. G. — Sim, mas tudo fora à volta do que se produziu em Inglaterra nos meados do séc. XIX. Alguns desses pintores da tradição inglesa são perfeitamente obscuros, desconhecidos. É costume dizer-se que de toda a pintura inglesa apenas três artistas atingiram uma fama internacional: Constable, Turner e talvez Bacon. Temos hostes de pintores que ficaram sempre debaixo do guarda-chuva inglês. E foram esses que primeiro me seduziram e me levaram à pintura quando tinha 13, 14, 15, 16 anos, porque fazem parte da tradição da pintura inglesa


enquanto instituição. Também me inspiravam uma certa nostalgia de uma idade do ouro. Senti vontade de revisitar os cenários dessa pintura paisagística dos meados do séc. XIX, que existem na parte oriental da Inglaterra, e onde eu passei muitas férias com o meu pai que era ornitologista. É toda uma zona que vai até à Holanda — você decerto conhece as paisagens holandesas — onde o céu ocupa 2/3 do nosso campo de visão e a terra apenas 1/3. Em MARIDOS À ÁGUA este tipo de cenário está muito presente, há composições sobre o céu. S. — O que eu queria dizer é que geralmente você não mistura modelos. Costuma trabalhar sobre um modelo de cada vez. Claro que não trabalha uma semana sobre Franz Hals e outra sobre Van Gogh, como você disse. Mas neste século, houve quem procurasse cruzamentos, tentasse criar choques, ainda que isso seja raro no cinema. P. G. — Para mim fazer cinema é fazer imagens. Mas o cinema que se faz não é isso de modo nenhum. Portanto, a minha ambição é transformar o cinema na área privilegiada de trabalho duma tradição de fazer imagens que tem três ou quatro mil anos. O movimento no cinema é praticamente irrelevante. Na verdade o cinema não tem nada a ver com movimento. É como no quadro de Duchamp «Nu a descer as escadas» — não se trata de movimento, não há movimento, há apenas representação do movimento. A maldição do cinema é a câmara. Quando nos livrarmos da câmara, o cinema vai poder enfim desenvolver-se, deixar as fraldas pela primeira vez. A maldição do cinema é a câmara porque torna o cinema mimético, transforma-o numa pobre e pálida imitação do mundo real. Há uma famosa anedota com o Eisenstein que é para mim o maior cineasta de todos os tempos. Um homem que se pode colocar ao lado de Miguel Ângelo sem constrangimento porque são da mesma craveira. O Eisenstein foi à Califórnia e conheceu o Walt Disney. E disse ao Walt Disney que só ele é que fazia filmes. Porque, explicava ele, só o Disney fabricava obras de arte com o que pensava e não com o que via como dizia o Picasso. Temos de nos livrar das câmaras, são uma maldição. Eu sou violentamente contra a tradição realista S. — Acho que a câmara é um instrumento que nos permite tomar consciência de que aquilo que vemos é sempre o objecto dum ponto de vista, dum ângulo de visão. A câmara é útil porque podemos mudar de ângulo e o objecto deixa, no limite, de ser reconhecível. P. G. — Mas sabemos que um filme nunca pode ser tão rico como a realidade. É só uma pálida imitação, um produto em segunda mão, uma representação miserável. Aquilo que vemos da realidade é sempre muito mais excitante, muito mais divertido, muito mais perturbante, muito mais estimulante do que aquilo que vemos no cinema. S. — Não estou assim tão certo. P. G. — Eu tenho a certeza absoluta. S. — Eu não sei e também não sei bem o que é isso de realidade. P. G. — O que você diz faz-me pensar noutra questão. O cinema inglês tem a mania de que é portador duma tradição de realismo ou naturalismo. É uma extensão do neo-realismo italiano


via BBC. Para mim, essa via é um beco sem saída. Acho que o Mike Leigh está apenas a perder tempo. S. — Com isso posso concordar. Mas é verdade para todo o cinema tradicional com o seu arsenal de situações, textos, actores, uma espécie de sub-teatro. Com o Mike Leigh... P. G. — Ou com o Ken Loach... S. — O com o Hal Hartley. P. G. — O Hal Hartley, um pouco como Atom Egoyan, tem por vezes, uma maneira teosófica de utilizar a realidade, que me parece muito diferente da de Mike Leigh. S. — Do Mike Leigh só vi o NAKED. P. G. — O NAKED é bastante característico da obra dele. S. — Eu nasci em Paris e as minhas referências são em parte parisienses... P. G. — Eu não tenho nada contra os franceses. O Resnais é o meu grande herói. O Godard inventou... S. — Para mim o surrealismo é uma referência... P. G. — Para mim não. A emergência da irracionalidade não me interessa. Eu não sou místico, sou um racionalista. O surrealismo é demasiado fácil. «O encontro casual duma máquina de costura e dum guarda-chuva numa mesa de cirurgia»!? Não gozem comigo!!! Os sonhos dos outros são maçadores... S. — Mas isso é um cliché. Não podemos filmar os nossos sonhos. Se falarmos de público, eu diria que cada um tem de construir o seu próprio sonho, cada espectador. Mas, ao mesmo tempo, percebo e sinto que o surrealismo não é uma referência para si. No entanto, nos seus filmes... P. G. — Nos meus filmes, há uma emergência do inesperado, do bizarro. Mas não se trata duma abordagem através da dissociação num mundo real entre os objectos como na expressão de Lautréamont ou na inspiração surrealista. Isso parece-me demasiado casual; a abordagem casual não me interessa, nem me interessa a casualidade da abordagem. S. — No entanto, a casualidade pode abrir horizontes. P. G. — Mas isso é outra coisa que eu tenho contra a narratividade. Como contador de histórias, posso levar-te à lua, posso meter-te naquele espelho, posso pôr os teus olhos azuis, rosa, laranja, incendiar a tua cama com esse cigarro. Não há limites para o que eu posso fazer. E isso torna o meu fazer muito efémero, muito desgarrado, muito dispensável, porque há tantas formas de utilizar a própria noção de narratividade! Desconfio da narratividade por ser demasiado fácil. S. — Mas quando se utiliza uma ferramenta como a linguagem, as palavras, de certo modo vai dar ao mesmo. A única coisa que fica excluída é a hipótese de iluminação. P. G. — Tem tudo a ver com a abordagem. Os filmes são um artifício, são artefactos, são construídos, não existem à partida. São construídos pela subjectividade. E eu quero que os meus filmes mostrem essa subjectividade. Quero mostrar-lhe a si, ao público, que são feitos de


subjectividade, que são artificiais, construídos, feitos por uma mente singular, pensados, planeados... E o meu vocabulário fílmico ilustra essa minha intenção. As pessoas de resto acusam-me de ser um tirano, de querer controlar tudo, de tornar tudo deliberadamente artificial. Claro que é tudo artificial. O LADRÃO DE BICICLETAS é totalmente artificial. A diferença entre a posição moral do De Sica e a minha é que eu faço de propósito e ele não fazia. S. — Mas nós não sabemos exactamente que parte de nós escondemos e que parte mostramos. «H» é o título dum poema de Rimbaud. O que é que está por detrás do regresso do «H» no seu trabalho? O seu pai era ornitologista. O que é que você está a tentar dizer sobre o seu pai no filme? E será que deseja dizer coisas dessa ordem nos seus filmes? P. G. — Claro que sim, mas juntamente com muitas outras hipóteses. A WALK THROUGH H é uma homenagem ao meu pai. «H» de homenagem. O nome do meu pai era Horace. «H» de Horace. Ele detestava televisão(1)... Há tantas maneiras de interpretar o meu filme... S. — Claro, mas haverá sempre uma parte escondida. P. G. — «H» de «hidden»(2). S. — Portanto isso é secundário, é pessoal. Gostaria de abordar também a questão da montagem. Porque é um aspecto que se vem mantendo inalterado desde os seus primeiros filmes. A sua montagem é muito rítmica, muito musical e cola à banda sonora quando o fundo é musical ou cria uma impressão de musicalidade quando não há música no trilho. Será aí que você se distancia efectivamente da narratividade? P. G. — Acho que, mais uma vez, tem a ver com a ideia de construção. De algum modo indica que o ritmo de um filme não tem relação nenhuma com a vida, é uma construção artificial e subjectiva. Muitos cineastas tendem a cortar num olhar ou num movimento. Eu nunca faço isso porque isso corresponde a uma técnica convencional de criar narratividade no cinema. Eu quero mostrar claramente que cada vez que opto por cortar, o corte não tem nada a ver com a realidade, tem a ver com a minha noção de artifício. Efectivamente utilizo estruturas musicais. Em O CONTRATO, o corte nem sempre corresponde à música e a música nem sempre corresponde ao corte. O Michel Nyman talvez não concordasse com isto, mas o facto é que ele compõe um tipo de música onde é muito fácil cortar. Não é como o Mahler ou o Tchaikovski. Pode--se cortar a música dele como se podem cortar imagens filmadas. E é isso que nós fazemos sempre, por tudo o que acabei de dizer mas também pelo grande sentido de ironia e de distância da música dele que são igualmente características do meu cinema. Voltando à sua questão: eu tenho uma formação de montador, era a minha especialidade na indústria cinematográfica. E a montagem fascina-me, estimula-me. É uma experiência excitante organizar e construir a partir do material filmado. Em O BEBÉ DE MÂCON quase não há montagem no sentido convencional. S. — É a própria movimentação da câmara que funciona como montagem... P. G. — Exactamente, é tudo feito pela câmara à tomada de vista.


S. — Mas você trabalhou com playback durante a filmagem ou pediu ao Michel Nyman que compusesse em função do ritmo da cena? P. G. — Isso é um dos aspectos importantes da minha relação com o Michel Nyman. Detesto a ideia de se contratar um compositor para escrever 1 '20" de música. Acho que é uma idiotice. Rejeito essa prática. Tento utilizar os ritmos e a organização pessoal do compositor bem como a sua construção harmónica de modo a que a música estruture em vez de decorar. A função clássica da música é ornamentar, infelizmente. Em geral, a música enfatiza a emoção, quase nunca realça a estrutura. Ora este trabalho de estruturação é uma das minhas preocupações fundamentais, é minha estratégia de montagem. Também faço a mesma coisa com a música já composta, pré-existente. Os últimos filmes que realizei — nomeadamente O BEBÉ DE MÂCON — baseia-se em música pré-existente. Conhece as experiências do Prokofief e do Eisenstein no ALEXANDRE NEVSKI, por exemplo? Eles organizavam o espaço a preto e branco, em negativo e positivo. O projecto era muito abstracto e teórico. Não sabemos até que ponto seguiram as linhas de orientação préestabelecidas... S. — Mas há sernpre esse problema com o Eisenstein. Porque tudo pode ser teorizado a posteriori. P. G. — É como avaliar se o E. T. foi efectivamente uma ilustração do mito da ressurreição e não uma história de extra-terrestres. S. — Para mim o racionalismo é precisamente isso, ou seja, tentar justificar o acaso ou a improbabilidade. P. G. — Concedo ao Spielberg o benefício da dúvida. Penso que a ideia não vem dele. Foram os intelectuais à volta do Spielberg que tentaram conferir respeitabilidade ao trabalho do realizador. S. — Provavelmente. Lamento imenso não conhecer a sua obra extra--cinematográfica. Mas sei que ilumina e pinta... Como é que essas práticas se relacionam com o seu trabalho de cineasta? P. G. — Suponho que desde a década de 70 tenho vindo a sentir um desencanto crescente em relação ao cinema. O cinema não é a grande e wagneriana forma de expressão total que prometia ser e na qual se acreditou nos anos 40 e 50. Estamos perante a evidência de que isto é verdade, porque acho que já não há ninguém interessante a trabalhar no cinema. As grandes mentes escolheram outros campos. O Bill Viola, por exemplo, trabalha em vídeo. Para mim o Bill Viola vale dez «Scorseses». Julgo que a razão reside no facto de a tecnologia do cinema ter cem anos e cem anos é mais ou menos o tempo de duração das grandes tecnologias: a têmpera na Europa da Idade Moderna, o fresco no quattrocento italiano, duraram aproximadamente um século. Cobrem três gerações: a do avô, a do pai e a do filho. O Griffith e o Eisenstein, o Orson Welles e por fim o Godard. O Griffith cria a tecnologia, o Eisenstein cria a linguagem, o Orson Welles aperfeiçoa os meios de expressão e o Godard começa a


derrubar o edifício. E todas a novas tecnologias, todo o dinheiro disponível para investir no audiovisual, já não são canalizados para o cinema, vão para as experiências de fabrico de imagem pós-televisão. De certa forma, para mim isso indica que o cinema acabou. Claro que há-de «continuar» durante muito tempo como o ballet ou a ópera, mas como eles será basicamente uma forma anacrónica de representação da mensagem. Pessoalmente, penso que precisamos de reinventar o cinema. E a melhor maneira de o fazer é distanciarmo-nos, sair do círculo e descobrir tudo o que as outras linguagens exploraram desde o Renascimento, para ver se conseguimos descobrir forma e meios de reinjectar vida nova no cinema. Neste momento ando a realizar grandes projectos de instalações. Exposições em grandes cidades como Genebra e Munique. Também tenho comissariado eventos, trabalhado para museus, etc. Trata-se duma tentativa de abarcar horizontes mais largos, de encontrar novos «investimentos» que eu possa fazer reverter a favor do cinema. Porque tenho a certeza de que aquilo a que eu chamaria «Sindroma de Casablanca» morreu. A gente nova já não está interessada em ficar duas horas sentada no escuro, em assentos desconfortáveis sem mexer, sem tugir nem mugir, a olhar para uma ilusão indigente numa tela bidimensional. Isso já não satisfaz a imaginação humana. E embora talvez não nos sintamos seduzidos pelos parques Disney, a verdade é que os parques temáticos nos interpelam. Estou certo de que a ideia que Abel Gance lançou em 1929 de ecrãs múltiplos, de uma experiência em 360°, de espectadores em movimento, de um público capaz de controlar o tempo de visão de cada plano (como se faz numa galeria ou num museu de artes plásticas — podemos olhar para a Mona Lisa durante 3 segundos, 3 horas ou 3 séculos), de um mundo recriado para os cinco sentidos e não apenas para dois, serão as características do cinema num futuro próximo. E eu quero investigá-las, dar-lhes forma, e não posso fazê-lo no domínio do cinema porque é demasiado conservador e há demasiados interesses financeiros em jogo. No cinema não vão deixar-me realizar aquilo que eu tenho vontade de fazer, portanto tenho de me afastar para poder levar a cabo estes projectos. O cinema, repito, tem um espírito extremamente conservador. As invenções do cinema são indigentes se as compararmos com o que a literatura e a pintura inventaram em cem anos. De 1895 a 1995 — de Tolstoi, Hardy ou até mesmo Zola, a Perec, Borges e aos pós-joycianos, mudanças colossais em termos de linguagem e de atitude; do pósimpressionismo ao Andy Warhol e ao Josef Beuys. No cinema parece que o Scorsese ainda anda a fazer o mesmo filme que o Griffith. O melhor cinema não conseguiu digerir as lições do cubismo e de James Joyce. S. — Mas, ao mesmo tempo, desde Kafka, Joyce ou até Borges a literatura e a narrativa também não progrediram. De resto, para a maior parte da instituição literária é como se Joyce nunca tivesse existido. O mesmo se pode dizer em relação a Kafka ou a Borges. P. G. — Mas o cinema ainda assenta no romance do séc. XIX. S. — E muitos pintores continuam a pintar como se na pintura nada tivesse sido questionado.


P. G. — Isso não é verdade. O Borges aprendeu imenso com o T.S. Eliot e com o Joyce. Não encontramos exemplos comparáveis no cinema. Vejamos concretamente: a ideia do ecrã múltiplo do Abel Gance morreu após 1929, ninguém se interessou a sério pela questão, é um beco sem saída; as ideias de reorganizações dos tempos lançadas por Resnais, quem as prosseguiu? quem explorou os achados de O ÚLTIMO ANO EM MARIENBAD, MURIEL ou HIROSHIMA MEU AMOR? Mais um beco sem saída. S. — Mas isso é porque nos situamos no terreno dos media. A cultura de massas é muito conservadora. P. G. — O resultado é o cinema do tédio. Não há grandes mentes no cinema, nem nunca houve. S. — Eu retomaria então uma velha ideia: não devemos falar de cinema mas sim de cinemas. Porque há muitos cinemas que não nos interessam. Podemos pois ignorá-los ostensivamente... P. G. — A minha explicação é que o cinema ainda não foi inventado. É demasiado jovem. O vocabulário ainda é insuficiente. Temos de lhe dar tempo, de ser pacientes. Ambos vivemos e fizemos cinema numa época que correspondeu ao prólogo do cinema. Tenho a certeza de que nos próximos cem anos o cinema será capaz de arrebatar a imaginação humana. E nós vivemos nos primórdios do cinema, no período da narração ilustrada. Ainda não conhecemos o cinema. S. — Mas aquilo que o Chaplin fez ainda nos comove e diverte e excita e emociona. P. G. — O Chaplin era um artista de variedades londrino que se limitou a transportar para o cinema aquilo que fazia no palco do music-hall antes de ir realizar filmes para Hollywood. A única diferença entre Chaplin performer e Chaplin no plateau, é que no plateau havia uma câmara a rodar. O Chaplin não inventou nenhuma linguagem. Aliás, a única coisa que o cinema criou foi o grande plano que nunca existira. S. — Concordo. Até já escrevi um texto sobre isso (3). É certo que o cinema não fez grandes invenções do ponto de vista formal. Mas, se fazemos cinema, é certamente porque fomos tocados por algumas coisas no cinema. P. G. — A continuidade vem do teatro. É o desejo de representação dramática que tem 20.000 anos de História. Em relação a isso, o cinema não passa, em certo sentido, de uma pequena tecnologia localizada que aconteceu entre 1895 e 1995, uma ilha na longa História da representação dramática. S. — Mas é nesse ponto localizado da História que estamos. Claro que os nossos filhos ou netos verão as coisas por outro ângulo. P. G. — Não sei o que você pensa da História do cinema mudo. Para as minhas duas filhas, ambas quase na casa dos vinte anos, o cinema mudo é um mundo completamente desconhecido que não lhes desperta nenhum interesse. As convenções são incompreensíveis; o ritmo, os temas e a organização estruturais são também incompreensíveis. Por isso é que eu


acho que 1929 é um ponto de ruptura extraordinário que nos separa de uma manifestação localizada do drama. A linguagem do mudo é uma linguagem perdida. S. — Talvez seja essa a razão que justifica começarmos de novo. P. G. — A minha pesquisa passa por me distanciar do cinema convencional e olhar para o cinema de fora, como tento olhar para dois mil anos de pintura. Descobrir como utilizar de novo o que já foi apontado. E suponho que aquilo a que eu chamo «Síndroma de Casablanca» se tornará dentro em breve em algo de tão obsoleto como o cinema a preto e branco. S. — E com a televisão a ajudar à festa!... P. G. — Hollywood não é motivo para nos assustarmos. Hollywood vai ser um dinossauro, vai ser como a pintura francesa de salão do princípio do séc. XX. Os impressionistas lutaram contra a pintura de salão e nós lutamos contra Hollywood. S. — Isso é óbvio. P. G. — O certo é que trabalhamos numa área de expressão que nos obriga a exibir as nossas obras em salas que só contêm um lugar com visão perfeita, num domínio em que dependemos totalmente do dinheiro e em que é obrigatório fazer dinheiro à nossa custa. Esta situação não pode durar muito mais tempo. Porque Hollywood, basicamente, é apenas uma máquina de fazer dinheiro. S. — Mas o problema também é a falta de integridade e a venalidade dos amantes do cinema. Os mesmos que aplaudem o cinema de pesquisa não deixam de ir ver o lixo hollywoodiano. Ou sela: alimentam a máquina. P. G. — Pois. Só que a grande contradição é que nem você nem eu podemos manter os cinemas de porta aberta. S. — Não sabemos. P. G. — Na presente situação, é certo que não podemos. S. — Não podemos fazer o mesmo número de espectadores... P. G. — Portanto, com os nossos filmes os cinemas vão fechar porque a receita que fazem não paga o arrumador, a conta da luz, etc. É a ironia da situação: embora denigramos a produção monolítica que já domina há décadas, é precisamente essa produção e a estrutura que está por detrás que mantém os cinemas abertos. Os cinemas onde eu posso mostrar os meus filmes. Entrevista conduzida por SAGUENAIL (1)

Em inglês «He hated television». «Hidden»: escondido em inglês (3) A lenda quer que David W. Griffith tenha inventado o grande plano ao aproximar a câmara da cara de Lilian Gish até ela encher toda a imagem. Sobre esta invenção correram rios de tinta, ora no sentido de definir uma estética do rosto (Bela Balazs, que está aliás na origem da lenda), ora no sentido de analisar os efeitos afectivos da ampliação desmedida da face humana (transformada em paisagem, materializando visualmente a «alma» e a (2)


sua «paisagem interior» Edgar Morin), ora ainda para contestar a descoberta de Griffith (Georges Sadoul que verificou a utilização do grande plano no cinema já em 1900 num filme de Smith). De todos os contributos estéticos do cinema, o grande plano é sem dúvida um dos mais fecundos. Primeiro, o grande plano é um enquadramento absolutamente original que não corresponde às dimensões dum retrato - a este nível a fotografia retomara os enquadramentos canónicos da estatuária e da pintura desde a mais alta antiguidade: o retrato de corpo inteiro e o busto -; é demasiado próximo para ser descritivo, pertence pois, ao domínio da narração (infracção?) no interior do espaço privado (quase vital) da pessoa, aquele que para o gato é delimitado pelos pêlos do bigode; é utilizado praticamente como um acento tónico que orienta a linha melódica da montagem. De resto, as primeiras experiências de montagem - o célebre «efeito koulechov» - assentam na expressividade do grande plano em si, semantizado pelos elementos que lhe são contíguos. Raríssimos são os filmes, como «A Paixão de Joana D'Arc» de Carl Dreyer, que fazem do grande plano o enquadramento de base - passando da narração à pura marcação rítmica. Mas sobretudo, o grande plano evidenciou um componente móvel, os olhos, cujo jogo condiciona hoje toda a nossa percepção. O papel dos olhos é conhecido desde a antiguidade, mas o cinema deu ao olhar um significado novo. Um rosto em grande plano não olha, é olhado. O objecto para o qual os olhos se dirigem, que faz parte da ficção do filme, situa-se necessariamente fora do enquadramento. O olhar assim filmado perde-se. Um grande plano é sempre cego. A lei da narrativa ficcional que estipula que a acção narrada deve desenrolar-se num espaço perpendicular ao receptor - leitor ou espectador - traduz-se no cinema pela proibição de olhar para a câmara. Com efeito, se um actor olhar, mesmo de relance, para a objectiva, o espectador sente subitamente que esse olhar lhe é dirigido. A personagem sai bruscamente da ficção anulando o funcionamento autónomo desta última e revelando uma outra função oculta, que é da ordem do hipnotismo. Por contraste, nos antípodas da ficção, o olhar directo do locutor, jornalista ou político surge como garante da verdade do seu discurso. Esta codificação do olhar pelo cinema teve uma forte influência nos comportamentos sociais. As pessoas já não se olham frontalmente, não por se sentirem culpadas, mas porque protegem a sua ficção individual (o seu pequeno cinema mental) que a intervenção de Outrem poderia perturbar. Por outro lado, o olhar directo tornou-se, excepto na televisão onde aparece enclausurado atrás dum ecrã protector, uma agressão. O grande plano, que é percepcionado como uma aproximação - a da câmara - representa paradoxalmente um afastamento causado pela mudança de dimensão do rosto (fenómeno simétrico da visão da lua cheia; ao antropomorfismo da linguagem verbal opõe-se a imagem que, na figura do grande plano, «consmiciza» o humano). Uma cara com tais proporções devora o espectador, o seu olhar perde-se na escuridão do fora de campo povoado de gigantes. O humano que quer mergulhar nesse olhar, nele se afoga. [SAGUENAIL (publicado na XL nº 0, Outono 1993)]


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