Entrada dos artistas

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ENTRADA DOS ARTISTAS É fenómeno periódico o cinema voltar-se para a pintura enquanto modelo de composição da imagem, do tratamento da cor e da luz, etc. As técnicas específicas dos dois meios de expressão são radicalmente diferentes e o resultado oscila entre a referência quase caricatural — os cenários «holandeses» da KERMESSE HEROÏQUE de Jacques Feyder — e a citação — O Império das Luzes de Magritte recriado em LE TOIT DE LA BALEINE de Raul Ruiz. Por detrás do aparente reconhecimento da paternidade da pintura como acto de criação de imagem, lemos uma afirmação do media cinematográfico que assim se compara implicitamente a uma outra forma de arte reconhecida, cujo processo de produção é suficientemente diferente para que a comparação não se coloque em termos de concorrência — o que já não é bem o caso com a literatura romanesca ou até com a representação dramática. Embora o cinema tenha começado por recorrer ao referente pictórico para se promover no plano cultural, muito rapidamente a figuração pictórica passou a ser considerada tão-só como exemplo da representação imaginária que o cinema, graças aos colossais meios investidos, podia ultrapassar em esplendor ou em fidelidade: o REMBRANDT de Alexander Korda tenta recriar os ambientes da pintura holandesa do século XVII — de resto, sem grandes preocupações de rigor inspirando-se mais nas tabernas de Frans Hals, ou mesmo nas paisagens de Ruysdael, do que nos quadros de Rembrandt em si — e não tanto penetrar o génio do pintor de quem reconstitui a biografia — romanceada e adaptada aos critérios hollywoodianos. A figura de Rembrandt é um mero pretexto, a pintura uma caução para a afirmação pessoal e megalómana de Korda e o filme funciona como promoção do novo estúdio inglês que prova estar apto a rivalizar com Hollywood numa produção altamente espectacular. A postura de Maurice Pialat, com o seu recente VAN GOGH, é mais ou menos semelhante: o objectivo do realizador é reproduzir uma luz e uma cenografia inspirada no impressionismo e não tanto aprofundar a paixão de Van Gogh; por isso, o pintor é reduzido à dimensão dum inconformista chato que semeia a confusão ao afirmar a sua simplicidade, figura privilegiada na obra anterior do cineasta — mas até então encarnada por personagens femininas (Sophie Marceau em POLICE, Sandrine Bonnaire em SOUS LE SOLEIL DE SATAN) — à qual neste filme Pialat não resistiu a assimilar-se. A personagem de Van Gogh aparece como um duplo do cineasta — que se limita a formular a sua consciência de uma missão, preferindo reconstituir pormenorizadamente as relações do pintor com os «marchands» (Théo) e com os amadores (Gachet) a meditar sobre a originalidade profunda da sua pintura — que através dele proclama o vigor do cinema francês e reivindica para si próprio um lugar preponderante no seio deste último. Aliás, se escamotearmos a inanidade do discurso sobre Van Gogh, trata-se indubitavelmente do melhor filme de Pialat — a cena da refeição é muito conseguida porque o realizador consegue transpor para o ecrã a luminosidade de alguns quadros de Renoir ao nível da alegria irradiante e do à vontade dos actores — e um dos mais ambiciosos do cinema francês recente. Esta assimilação do cineasta ao pintor parece necessária à obtenção de um discurso mais complexo do que a simples biografia romanceada sobre o trabalho dum pintor; foi uma assimilação da mesma ordem, decerto sobredeterminada pela identidade do nome, que nos valeu o rutilante — e magnífico a despeito da ingenuidade — LUST FOR LIFE de Vincente Minnelli, ainda sobre Van Gogh; é sem dúvida a ausência dessa assimilação que está na base do falhanço, apesar do empenhamento dos actores Gérard Philippe e Anouk Aimée, de MONTPARNASSE 19, de Jacques Becker, sobre Modigliani, dois anos mais tarde. Dez anos depois, o discurso elaborado por Ken Russell a propósito de Gaudier, em SAVAGE MESSIAH, apresenta-se antes de tudo como uma afirmação pessoal na qual o escultor não passa de uma ilustração. O recém-exibido CARAVAGGIO de Derek Jarman — cf. o nosso artigo «L'ange étalon» neste mesmo número — é sobretudo um pretexto para uma reflexão do cineasta sobre a sua própria posição de artista homossexual, mais do que uma análise da pintura ou da situação histórica do pintor. Todavia, enquanto nos anos 50 o interesse pela pintura correspondia à necessidade de justificar, do ponto de vista cultural, uma escolha estética dentro do cinema — exuberância cromática em Minnelli ou, por contraste, a sobriedade em Becker —, os valores em jogo foram objecto duma abordagem mais aprofundada nos anos 80, a partir do PASSION de Godard que se constrói em torno duma interrogação sobre a luz. O paralelo


com a pintura enquanto modo de interpretação do universo — tal como aparece em LIFE LESSONS de Martin Scorsese onde, para além dos fenómenos de cor e luz, é a violência e a energia do pintor que o realizador filma, encenando a sua gestualidade, e mais ainda no episódio consagrado a Van Gogh nos SONHOS de Kurosawa onde a desintegração da realidade na visão do pintor anuncia a sua desintegração material nos episódios seguintes dedicados à ameaça nuclear — parece entretanto preterido nos filmes mais recentes do cinema francês, em favor de uma reflexão sobre o acto criador em si. Com efeito, de França têm chegado vários filmes empenhados em mostrar o ardor criativo dos artistas plásticos: não só o já citado VAN GOGH de Pialat como o CAMILLE CLAUDEL de Bruno Nuytten e sobretudo A BELA IMPERTINENTE, de Jacques Rivette. Em PASSION, Godard mantinha uma atitude de relativa humildade perante a criação pictórica: as reconstituições de quadros acabavam por falhar, o desfasamento das linguagens desaguava num impasse. À análise das luzes da Ronda da noite de Rembrandt, Godard só conseguia contrapor um rasto de avião a riscar o azul do céu. Godard encenava uma equipa de cinema e não um pintor. É significativo que CAMILLE CLAUDEL seja o primeiro filme dum director da fotografia, Bruno Nuytten, que trabalhou justamente com realizadores da Nova Vaga — de Duras a Truffaut — i. e., que participou num movimento apostado em reinventar a utilização de todas as componentes do filme fora dos hábitos esclerosados do estúdio. Neste sentido, CAMILLE CLAUDEL pretende ser um filme sobre as trevas às quais se arranca a obra — as trevas correspondem à tortura interior do artista; infelizmente, essa mesma tortura interior não tem força convincente nem no desempenho de Isabelle Adjani, nem na criação de Gérard Depardieu (no papel de Rodin), demasiado iguais a si próprios para transmitirem outra interioridade que não a do actor — i. e. aquele que defende a sua identidade (ou pelo menos a sua «imagem») contra o papel que a encobre, ao contrário do artista que a descobre materializada na sua criação. Por outro lado, o deboche de movimentos de câmara e as múltiplas alusões culturais (que só são inteligíveis para os especialistas) favorecem a dispersão em relação à problemática central; assim, a loucura da personagem de CAMILLE CLAUDEL, no fim de contas, surge como um remake da de ADÈLE H. — Adèle Hugo, também interpretada por Isabelle Adjani no filme de Truffaut. Rivette foi mais ambicioso, posto que o relacionamento entre o pintor e o seu modelo e o próprio desenho dos esboços que precedem a execução do quadro acabaram, no decorrer da rodagem, por ocupar a maior parte do filme — o argumento inicial era mais centrado sobre os «jogos» (papéis e cenas que os protagonistas vão experimentando entre si para dramatizarem a sua relação) e os «contratos» (numa relação já não a dois mas a cinco: o casal Frenhofer/Liz versus Nicolas/Marianne, aos quais se vem juntar Porbus que serve de intermediário, uma vez que o espaço de Frenhofer é afinal o da morte, dos pássaros embalsamados à veia seca da inspiração, e dado que o pacto tem de ser feito com um habitante do inferno); esta estrutura de «marivaudage» habitual em Rivette foi objecto duma segunda montagem do filme intitulada LA BELLE NOISEUSE - DIVERTIMENTO. Na sua versão longa, A BELA IMPERTINENTE tenta restituir, ao nível da duração, o processo criativo do pintor, a sua progressiva apropriação do modelo. Infelizmente, o trabalho de B. Dufour — o verdadeiro pintor cuja mão substitui a de Michel Piccoli para desenhar em grande plano os esboços de Frenhofer — está plasticamente muito aquém do projecto — e mesmo do discurso visto que se trata de uma «obra-prima desconhecida» — e a correspondência entre, por um lado, os gestos de Piccoli evitando o contacto ou pelo menos o confronto directo e, por outro, as rasuras e as borratadas agressivas da pena, é demasiado primária para ser pertinente; em suma, a criação, mesmo numa atmosfera muito descontraída — sabe-se que Rivette costuma criar um ambiente simultaneamente intenso e sereno durante as filmagens — não é compatível com os ritmos duma rodagem — no MYSTÈRE PICASSO, de H. G. Clouzot, o facto de ter sido o próprio Picasso a ordenar o arranque da câmara não bastava para ultrapassar a impossibilidade de a criação se submeter a um ritmo externo. Acresce que a alternância dos planos sobre o modelo — Emmanuelle Béart — e a sua imagem — desenhada por Dufour —, sobre o pintor e o seu esboço, só servem para multiplicar os eixos em função dum terceiro pólo e reiteram de maneira pouco mais que redundante a alternância codificada pintor/modelo, ou seja o campo/contracampo. A tentativa de abordar sob um ângulo novo as relações de confronto-duelo conduz à reconstrução dessa figura tradicional desdobrando apenas os respectivos lugares — i. e., a


originalidade engendra uma regramaticalização, um novo academismo (observámos um caso semelhante com a famosa cena da cabina em PARIS TEXAS de W. Wenders; cf. o nosso artigo «Campos de batalha» in A Grande Ilusão nº 2/3). Num país onde o estatuto de artista já foi reconhecido pelas instituições culturais aos cineastas, é surpreendente que três filmes recentes, bastantes diferentes uns dos outros, tanto ao nível das intenções ou da estética como das ambições, encenem uma personagem de criador plástico sem conseguirem transcender o cliché do artista — ora histérico (CAMILLE CLAUDEL), ora fechado (VAN GOGH) ou febril e áspero (Piccoli em A BELA IMPERTINENTE); em todo o caso, nenhum deles nos permite passar da tortura representada para a tortura sublimada no e pelo gesto criador — o único cineasta que se aproximou desta intensidade da criação necessária a que o artista vive sujeito continua a ser Peter Watkins na sua extraordinária reconstituição do trabalho de Edvard Munch em A DANÇA DA VIDA. É bem possível que os meios investidos na realização de um filme acarretem um conforto incompatível com os riscos metafísicos e morais da criação artística. S.


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