ENTRE O IDEAL E O REAL Talvez todas as nossas contradições se reduzam à relação com o tempo. Desde que o conceito de eternidade desapareceu no decorrer do século passado — desaparecimento programado, na prática, pela Revolução Francesa e por fim verbalizado por Nietzsche —, o presente tem sido objecto de uma valorização inédita — as técnicas do rasto dedicaram-se à imobilização do gesto; do expressionismo abstracto de Hans Hartung ao cinema na sua relação com o efémero (cf. o nosso artigo «A invenção da morte» in A Grande Ilusão nº 6) —, enquanto o futuro passa a ser concebido como hipotética sobrevivência e o passado tem de ser constantemente reinventado. No entanto, a aceleração que caracteriza este século, mais rápida do que a nossa consciência, acarreta uma falsificação do discurso — o discurso nega sua absoluta submissão à conjuntura. O filme de António-Pedro Vasconcelos, precisamente porque o seu autor não consegue separar a presente obra de um projecto político virado para o futuro, corre o risco de «escapar» a uma real avaliação crítica — ao situar o seu objecto para além do presente, a crítica é o gesto que define o rasto — embora AQUI D'EL REI! coloque, através duma trama «romântica», ou mesmo melodramática, os verdadeiros problemas da consciência do tempo. O passado no filme é assimilado à realeza. Não à realeza portuguesa que obviamente não passa deuma transposição do presente — donde a ambivalência de António-Pedro Vasconcelos, que descreve uma época condenada (enredo paralelo e em contraponto dos criados, Rosa e o anarquista Manuel) e se mostra simultaneamente fascinado pelo luxo dos cenários e do guarda-roupa que correspondem subliminarmente a uma proximidade do poder e não tanto à mera reconstituição histórica: o irreprimível tédio daqueles aristocratas é claramente verbalizado conquanto a imagem o desminta a par e passo —, mas a realeza africana, aquém do começo da intriga, realeza edénica da juventude triunfante que, no fim de contas, é a única efectivamente condenada, pelo tempo. Em contrapartida, o futuro caracteriza-se pela imprevisibilidade: José Luciano engana-se sucessivamente quanto às consequências dos seus decretos; nem Rodrigo nem Gastão conseguem medir a paixão de Mariana. Tanto a história social como a história individual se esquivam à consciência de quem as manipula, na medida em que o futuro contemplado pelos seus planos é apenas um recurso para não encarar o presente. A visão de António-Pedro Vasconcelos parece ainda mais negativa por se inscrever num quadro faustoso. Não só o suicídio de Mouzinho pesa retrospectivamente sobre todo o filme como também o fantasma da morte de Mariana assombra a ficção: a Condessa diz-se «morta» já na primeira carta, a que Gastão acaba por extorquir a Rosa. Nenhuma das personagens consegue cumprir os objectivos que para si própria verbalizara: Lorena não passará de soldado de aparato; Gastão e Rodrigo não são capazes de preservar Mariana, nem sequer de evitar que a Condessa caia no ridículo; a própria Estefânia terá de contentar-se com um marido que é uma ruína de herói. Com efeito o presente encena-se sob o império da paixão, mas de uma paixão mesquinha — o gosto pela intriga, a ambição, a traição (o próprio Gastão não age só por despeito) — ou proibida a partir do momento em que põe em causa a ordem estabelecida. Salvo raras excepções (Rosa, Mariana), todas as personagens são movidas sobretudo por um amor próprio ilimitado (contrariamente ao que António-Pedro Vasconcelos tem vindo a afirmar a propósito de um meio que exclui o exercício do amor próprio). O tempo é caracterizado pela perda e pela renúncia. António-Pedro Vasconcelos, que durante cinco anos lutou para poder realizar esta obra (não seria aliás desinteressante analisar a carga heróica, enquanto «fora de filme», que no filme se resolve), que de repente foi atingido por uma idade que até agora parecia tê-lo poupado milagrosamente, só pode negar aquilo que o seu filme constata — a única alternativa ao tempo é a loucura — e coloca-se numa inextricável contradição ao pretender apresentar esta derradeira fita — posto que AQUI D'EL REI! adopta voluntariamente uma estética «clássica»: narratividade linear, escala dos enquadramentos correspondente à das objectivas, utilização do campo-contracampo, etc. — como a primeira dum novo modelo — recusando o miserabilismo da produção nacional, mas escamoteando assim aquilo que porventura constitui o principal valor cultural do filme, ou seja, a impossível adequação do modelo importado às condições nacionais. Não deixa de ser tocante comparar o que AQUI D'EL REI! postula sobre o
brilho dos erros da juventude e o dramático fim de mocidade do autor onde se joga uma pretensa assumpção da maturidade artística em conflito com a eterna adolescência do lutador. Por outras palavras, António-Pedro Vasconcelos, que retoma a temática renoiriana do herói inútil (sem o optimismo irradiante do mestre), não assume a negatividade da constatação (perda e renúncia), recusa a atitude cínica do poder, mas gostaria de construir um futuro que lhe escapa e para a invenção do qual é obrigado a referir-se ao passado. Por outro lado, o cineasta é perfeitamente lúcido e, não podendo confessar a contradição, encena a hesitação. Nuno é mais um «avatar» da galeria de personagens vasconcelianos divididos entre lugares, entre mulheres. Borges escreveu: «um homem concebe o projecto de desenhar o Mundo. Os anos passam: povoa uma superfície com imagens de províncias, reinos, montanhas, golfos, navios, ilhas, peixes, casas, instrumentos, astros, cavalos, pessoas. Pouco antes da sua morte, apercebe-se de que aquele paciente labirinto de formas é tão só o seu retrato.» AQUI D'EL REI!, nas suas contradições, nas suas hesitações constitui, de facto, um belo auto-retrato. As referências — talvez mais propriamente balzaquianas do que stendalianas, mais inspiradas em M. Ophüls do que em L. Visconti — constroem um cenário para um enredo em que o mesmo personagem de PERDIDO POR CEM, OXALÁ, O LUGAR DO MORTO, se vê confrontado com um novo dilema: a mulher continua a ocupar um dos pólos (a paixão substituiu o cliché do «mistério») doravante contrabalançado pelo abandono dos ideais. Aliás, a aceleração e o adensamento da narrativa na segunda metade do filme revela, através do jogo da montagem, o primado da problemática do dilema sobre o enredo passional que domina as cenas quase frívolas da primeira parte. A hesitação contamina todas as personagens a ponto de as fazer aparecer como facetas diversas duma só incarnação do ser dilacerado — com uma estrutura triangular cristalizada em dois pólos de atracção e num pólo de rejeição — para o qual o élan afectivo se desdobra (Mouzinho ou Mariana para Lorena, Rodrigo ou Nuno para Mariana, etc.) porque, logo à partida, as figuras paternais ou maternais se duplicam: de Alberto a Mouzinho, de Titão a Mariana. Os próprios modelos têm duas faces: Gugunhana é o reverso de Mouzinho. Os valores são tão fáceis de desdobrar como a monarquia. A vitória inicial contém já a derrota final. Ao postular a hesitação como traço de humanidade, o cineasta sublinha a gravidade da escolha de Mariana que, pela sua atitude «radical», se exclui do mundo dos homens. AQUI D'EL REI! é sem dúvida um filme mais lúcido do que os anteriores de António-Pedro Vasconcelos mas também mais desesperado — desespero que o autor procura compensar através da politização do discurso sobre o filme enquanto «modelo» (paradoxalmente a descrição dos mecanismos e dos bastidores do poder foi tendo um papel cada vez mais reduzido nas sucessivas versões do argumento; aliás, o grupo social no poder que o filme retrata caracteriza-se basicamente por um orgulho de classe absoluto, gerador da mais completa e voluntária cegueira, a ponto de subestimar a importância da ascensão da corrente republicana e cristalizar todos os esforços numa estratégia de gabinete contra a ameaça da «ditadura»... com meio-século de antecipação). O debate sobre a qualidade estritamente técnica do filme, da dobragem à direcção de actores, assenta numa má fé tão gritante — por parte duma crítica que se permite pôr nos píncaros uma fita como NUVEM e que noutros tempos teceu elogios sem reservas a O LUGAR DO MORTO — que nem deve ser tomado em consideração. De resto, não é tanto no domínio técnico que a produção nacional é medíocre, mas ao nível das ambições — e, nesse aspecto, AQUI D'EL REI! marca indubitavelmente uma data. Da mesma forma, não basta salientar a contradição entre a aparência romântica do argumento e a ausência de audácia formal da imagem ou da montagem, é preciso aprofundar o sentido dessa contradição que se confunde com a do próprio autor. AQUI D'EL REI! é a síntese de toda a obra anterior de António-Pedro Vasconcelos. A problemática vasconceliana desta feita encontrou uma trama ficcional cuja densidade se adapta à riqueza das intenções e um modelo simultaneamente mais coerente com os seus gostos profundos do que a citação godardiana de OXALÁ ou antonioniana de O LUGAR DO MORTO, e mais «condensado» porque estável: o desafio pessoal que o autor aqui vence é mais ambicioso do que o desafio lançado ao espectador. S. e R. G.