ENTRE SÓIS E GIRASSÓIS No ano em que Dovjenko concluía este deslumbrante poema cinematográfico, a minha mãe vinha ao mundo, assistindo à estreia da Primavera de 1930, primeira da década. O meu avô, camponês e republicano num só homem, quis dar-lhe o nome da estação que principiava, mas o registo recusoulhe essa escolha que tresandava a pedreiro-livre. Nunca conheci esse próximo antepassado que o regime salazarento não conseguira formatar, mas a quem sonegara a terra e a palavra. Ao rever A Terra (Zemlya) no início do Verão de 2000, não posso deixar de me reportar a um duplo leque de coordenadas: as do tempo, humano, político, agente do sofrimento e da mudança, onde se inscreve a vertente propagandística pro-soviética do filme, onde se pintam com retóricas cores as coroas de louros da revolução; as do espaço, naturais, elementares, agentes da serenidade e da permanência, onde se inscreve a vertente filosófica da obra, onde vibra, nas cordas da poesia, o canto de amor à terra, vista não como exílio dos pecadores, degredo dos filhos de Adão, mas como paraíso à guarda dos homens e a eles devolvido pela energia revolucionária. De resto, este filme poderia, com igual pertinência, intitular-se O CÉU, posto que a presença do elemento celeste parece material e simbolicamente tão forte quanto a dos sinais terrestres. E, para evitar apressados juízos de valor, no que diz respeito a um certo triunfalismo messiânico que atravessa todo o filme — desde a sequência da chegada providencial do tractor à cena da pregação aos novos homens durante o concorrido funeral de Vassili — não devo esquecer-me de que, em 1930, mais de quatro quintos dos homens dos quatro cantos do planeta estavam privados da terra e da palavra, podendo a obra de Dovjenko ser lida como gesto de apologia sem reservas do regime vigente e, simultaneamente, como convite à rebelião contra os donos do planeta. Em todo o caso, Dovjenko tem o extremo cuidado de mostrar as suas figuras — os homens, mas também os frutos por eles semeados — como corpos inseridos numa malha cósmica, submetidos ao varrimento da luz e da sombra que os ilumina, escurece e lhes dá forma (fílmica), acasos objectivos na história de uma energia tão imanente quanto geradora de transcendência. Não é ridícula a sequência em que o pai de Vassili visita a campa do recém-falecido Simon e reclama as prometidas notícias do além, encostando o ouvido aos torrões de terra solta, embora Simon não regresse para dizer que "Deus não existe" pois os vivos não tardarão a descobri-lo. O risco maior que Dovjenko incansavelmente corre é o de tentar encenar uma profunda consonância entre o céu (desertado pelos deuses), a terra (fisicamente semelhante à massa de que é feito o pão), os animais (prontos a saudar e aplaudir a máquina da revolução e suas máquinas libertadoras), os próprios frutos (cuja casca, qual pele tisnada pelo sol, retém as sombras das nuvens com os rostos dos camponeses) e a marcha da insurreição contra a propriedade, claramente apresentada como antinatural, logo anti-humana. Já a cena inicial prepara esta demonstração dramática: o moribundo, rodeado de maçãs e ainda capaz, às portas da morte, de trincar o "fruto proibido" com um apetite comparável ao do rechonchudo bebé que o observa em contra-campo, revela também a capacidade de tomar as rédeas da sua própria morte — "vou morrer", declara ele, resoluto, antes de cerrar os olhos. A avaria do tractor, devida à falta de água, resolve-se com a inesperada mijadela de um rapazola, que assim volta a colocar no carril aquele pequeno comboio do progresso. O enterro de Vassili, no decorrer do qual se troca o luto pela luta, constrói-se como um radical hino às forças da fertilidade e da renovação, com os participantes a precipitarem-se para o local do evento a uma velocidade que lembra a louca aceleração da cena de experimentação da máquina portadora de mudança. Montados em paralelo, os planos da noiva desesperada, da mãe agitada pelas dores de parto, do pope desnorteado e do jovem proprietário a perder o pé (literalmente, já que aos poucos a terra lhe escasseia no lado inferior do enquadramento), por serem puros retratos da dor e do desamparo, tornam ainda mais eficaz a vitalidade épica insuflada ao funeral. A sequência final deste filme em que os homens trazem, bordados nas camisas, motivos das flores e dos frutos que a terra e o céu conjugados lhes propiciam, surpreende pela veemência do contraponto que estabelece com o espectro bíblico do dilúvio castigador: a chuva, abundante e passageira como
carícia carregada de paixão, é uma espécie de derradeiro enunciado da Nova Morte. Estrume e não cinza. Regresso à terra e não desterro no céu. Regina Guimarães