ENTREVISTA COM HELMA SANDERS-BRAHMS Regina Guimarães — Gostaria que me falasses um pouco da forma como te relacionas com uma certa tradição europeia... uma tradição cultural deste continente. Helma Sanders-Brahms — Um dos meus apelidos é Brahms. No «conflito» entre Brahms e Wagner, eu coloco-me do lado de Brahms; sou herdeira do humanismo europeu. Não gosto de Wagner, nem consigo perceber que a obra dele seja considerada grande música. Para mim a riqueza da Europa reside na diversidade e na diferença. Quando passeio pelas ruas da Figueira da Foz, aprecio a beleza e a variedade das velhas casas, mas também constato uma perda de carácter com a multiplicação de prédios novos exactamente iguais aos que encontramos em Hong-Kong ou na África negra. Claro que a estandardização tem a vantagem de uniformizar as condições de vida. Por toda a parte encontramos o mesmo conforto, os mesmos produtos de consumo. Mas perde-se a humanidade das coisas. Com a cultura passa-se algo de idêntico: as canções, a pintura, a comida e até as relações homem/mulher tendem a imitar o mesmo padrão. Existe uma espécie de prostituição generalizada e também a crença generalizada de que tudo se vende e compra, até as coisas mais preciosas. Para mim, o cinema é um instrumento de reflexão. Ora, hoje em dia, o cinema tende a uniformizar-se, a conformar-se ao modelo americano. A uniformização tem vindo a acentuar-se e acelerar-se. A tragédia é que não haverá marcha atrás. Note-se que eu gosto do cinema americano, dos homens e mulheres do cinema americano. Mas toda a gente sabe que o estilo de vida americano não faz felizes os próprios americanos. Então, porquê adoptá-lo, imitá-lo? É um estilo de vida que acarreta a destruição da alma, do corpo e da paisagem. Durante a minha carreira de 25 anos como cineasta todo este processo se tem precipitado e agora estamos à beira do abismo. O agravamento da situação tornou-se notório nestes últimos anos. O vosso país, à primeira vista, é um lugar à parte, uma ilha. Em Portugal sinto-me como um D. Quixote que encontrou outros D. Quixote. Aqui defendem-se coisas que já ninguém defende há vinte anos. Outrora, ninguém acreditava que se pudesse renunciar à poesia e à arte... Será que devemos lutar contra esta escalada da renúncia e da destruição ou será que apenas podemos esperar? Talvez venhamos a assistir a uma formidável eclosão das consciências, a um movimento de luta contra estas perdas inúteis, absurdas. Talvez os homens percebam que estão a reagir como os povos colonizados que cediam as suas riquezas aos colonos quando estes lhes ofereciam pérolas de pacotilha... R. G. — E como é que te inseres na tradição do cinema alemão? H. S. B. — Enquanto alemã devo falar da Alemanha, das suas tradições, das suas famílias, dos seus modelos. Só falando daquilo que nos é íntimo e familiar, conseguimos criar verdade e
riqueza porque só assim exprimimos a diversidade das nossas experiências. E só assim podemos despertar nos outros amor e interesse por nós. Neste século, a história da Alemanha revelou-se decisiva para o que aconteceu no mundo. Infelizmente, a influência da Alemanha foi destrutiva. É absolutamente necessário reflectir sobre isso. Reflectir também quer dizer procurar os reflexos, como quando se olha para um espelho. E o cinema é isso: um instrumento de reflexão que utiliza o jogo dos espelhos. Mas o cinema está nas mãos das grandes sociedades americanas e por conseguinte deixou de reflectir as histórias dos povos. Esse cinema é um cinema do esquecimento, uma espécie de droga para esquecer. É certo que o cinema-divertimento sempre existiu. Só que não era único e universal. Mesmo durante as guerras, em épocas difíceis durante as quais as pessoas desejavam principalmente divertir-se, realizaram-se e mostraram-se filmes que ajudaram os homens a compreender aquilo a que eu chamo o «entre-as-batalhas». A par do cinema que apaga a memória, temos a televisão que ainda é pior porque, não só não reflecte nada, como propõe/impõe imagens dum mundo que não existe — o mundo dos TV games. Um mundo que nem vem de lado nenhum nem leva a lado nenhum. A televisão e o cinema cozinham hamburgers para alimentar a alma. Ora os hamburgers audiovisuais são maus para a alma. R. G. — Disseste-nos que não eras muito bem vista na Alemanha... H. S. B. — Estou muito ligada à França e ao Japão. São os países onde o público e a crítica acham que eu sou uma grande cineasta. Na Alemanha, não me dão dinheiro para filmar. É estranho. Já no tempo da ALEMANHA MÃE PÁLIDA, hoje considerado um clássico um pouco por toda a parte, os críticos alemães declaravam que não entendiam como é que se continuava a dar dinheiro a uma mulher como eu, tão desprovida de talento. Apesar do meu sucesso no Japão, do reconhecimento pela crítica francesa, das apresentações em Cannes, etc., a minha situação não mudou. O documentário JUDEUS DE BERLIM foi muito mal recebido, em Berlim justamente. Trata-se de um esboço, de uma reflexão filosófica destinada a preparar um grande filme de ficção pelo financiamento do qual luto há quatro anos. Afirmaram que o filme é chato, que não é cinema. Não arranjo dinheiro. Sinto-me muito desanimada. O meu novo projecto é uma história de amor, que se passa em 1933, entre uma judia e um alemão. Ela tornase «indesejável» e ele transforma-se num nazi cada vez mais convicto. Trata-se duma história verdadeira que reflecte bem as relações de amor e ódio entre os alemães e os judeus. Pode parecer uma loucura, mas neste momento identifico-me com os artistas judeus que os nazis rejeitavam e impediam de trabalhar alegando que a sua arte era degenerada. É evidente que o meu sofrimento e o deles não tem comparação, mas sinto-me como eles, indesejável. R. G. — A propósito do filme O FUTURO DE EMILIE, falei-te da recorrência do tema de família e do amor/não amor na tua obra. Com o visionamento da ALEMANHA MÃE PÁLIDA, depois do documentário consagrado ao teu pai, ainda acho esta temática mais marcante.
H. S. B. — Tens razão quando dizes que os meus filmes são um grito de «é preciso amar melhor». É por isso que por toda a parte são compreendidos e amados. Por isso, e também porque o cinema continua a ser uma linguagem universal. Tenho a certeza de que os meus filmes não vão passar de moda porque não foram concebidos como produtos efémeros destinados a uma sociedade de consumo. Os bons filmes são como o bom vinho: melhoram com os anos. O meu cinema é um cinema de actores porque para fazer bom cinema é preciso amar as pessoas. O bom cinema é também aquele que toca as pessoas na sua corda sensível que é a capacidade de amar. O melhor de Tacchella, aqui presente, é isso, embora o tom dele seja muito ligeiro. Hoje em dia, as pessoas têm medo de amar porque se sentem obrigadas a defender-se constantemente. O FUTURO DE EMILIE é um filme sobre a guerra passada mas sobretudo sobre a guerra de todos os dias porque todos os dias nos vemos forçados a defender-nos do amor e do ódio dos outros. Estamos sempre à defesa e ao ataque. R. G. — O que é que te levou a escolher o cinema como forma de expressão? H. S. B. — O que me levou a fazer cinema foi o amor pelas imagens, o prazer de as fabricar e, sobretudo, o prazer de encenar e dirigir actores. Sempre soube que era o meu ofício. É com ele que tento ganhar a vida, como o pianista que toca para sobreviver mas principalmente porque adora tocar. O cinema sempre foi uma certeza para mim. Na época em que conheci o Pier Paolo Pasolini, andava com um rapaz que também queria fazer cinema. Era um grande fala-barato: palrava, palrava muito e não percebia nada. A primeira coisa que o Pasolini me disse quando lhe fui «apresentada» foi exactamente: «Tu vais fazer cinema». E eu ouvi uma voz interior que lhe dava razão. Ora, o rapaz que andava comigo e me tinha acompanhado era um mancebo lindíssimo, daqueles que decerto atraíam Pasolini. Aliás, ele contava com a sedução para obter alguma ajuda do mestre italiano. Mas o certo é que o Pasolini se dirigiu a mim e não ao rapaz bonito... que nunca se tornou cineasta! Gosto tanto de fazer cinema que às vezes apetece-me ensinar aos jovens realizadores como se fazem filmes belos e fortes, escolhendo a via da simplicidade, da estilização. Recentemente dei um curso de cinema na índia, em Pune, perto de Bombaim. Correu muito bem. Os estudantes até já me escreveram a pedir que voltasse. O encontro com Helma Sanders-Brahms decorreu na Figueira da Foz durante o XXIV Festival de Cinema no âmbito do qual a sua obra foi apresentada e homenageada.