ENTREVISTA COM PEDRO COSTA E INÊS DE MEDEIROS Regina Guimarães — Como é que te surgiu a ideia de fazer um filme em Cabo Verde? Pedro Costa — Havia uma história escrita com um vulcão. E eu tinha duas hipóteses: uma era fazê-la nos Açores; outra, fazê-la em Cabo Verde. Já não sei como se fixou a ideia de Cabo Verde. Sei que entretanto escrevi uma outra história com um operário cabo-verdiano que se passava toda em Lisboa, numas obras... depois acontecia o episódio do acidente e do coma num hospital. Quando me ocorreu a ideia de o operário voltar para Cabo Verde, houve a necessidade de avaliar as dificuldades da produção. Se era possível transportar o material, quanto dinheiro isso custava... Fiz uma viagem até Cabo Verde para fazer repérages e decidir se realmente o local me interessava. Posteriormente procurei actores in loco... que não existiam. De qualquer forma, não havia muitos papéis para cabo-verdianos. As pessoas da ilha começaram a participar na construção do projecto e tudo se foi concretizando. No fundo, acho que cheguei a Cabo Verde naturalmente. R. G. — Parece-me que o filme se constrói, e muito bem, com base num paradoxo que é o seguinte: aquela terra rejeita as pessoas como um vulcão e cria uma desolação de cinza, mas, ao mesmo tempo, é uma terra de abandono, à qual as pessoas se entregam. Há muitos indícios disso: todos aqueles planos em que as pessoas aparecem deitadas sobre o solo coberto de matéria vulcânica. De certo modo, esse paradoxo modela também o percurso da enfermeira que vai sentir na pele a dupla acção daquela ilha: de atracção e de repulsa. E a sua indecisão de sentimentos face ao que sente torna a relação dela com a terra difícil. Uma relação difícil que é ilustrada pela cena final. P. C. — Esse é um assunto de que falámos muito, como discutimos longamente outras coisas. O filme, enquanto produto final, é resultado da montagem mas a cena final foi muito debatida. Inclusive chegou-se a pensar que poderia haver palavras, insultos por parte da enfermeira. É interessante frisar que essa cena estava no guião desde o princípio: a casa que vemos é o território dum casal composto pelo operário e pela Edite. Aquilo que a enfermeira faz – atirar pedras – é a resposta a algo que não se vê no filme e que é o encontro do operário com a Edite. Eu, aliás, costumo dizer que há muita coisa que não é mostrada no filme. Essa cena corresponde à «Apresentação do casal». Não é por acaso que o filme se chama CASA DE LAVA — vê-se uma casa que é feita de lava, uma casa dum casal que a habita. A história desse casal é muito sórdida. Filmá-la teria sido sórdido, próximo do racismo. Podemos enveredar por esta discussão, porém, acho que é um bocado lateral, demasiado analítica. Tem a ver com o que terá sido o percurso da Edite desde que chegou a Cabo Verde e com tudo o que se pode imaginar do comportamento da personagem. A princípio acompanhou um homem que foi encarcerado no Tarrafal e acabou por ficar lá. É, em minha opinião, uma mulher que
deve ter dormido com muita gente e que delirou demais até conseguir arranjar uma maneira de viver na ilha e uma espécie de moral própria. Mostrar uma parcela dessa vida e dessa sexualidade num filme que conta uma repetição desse percurso pareceu-me indecente. Era indecente meter a Inês nesse contexto. Isto é um tanto difícil de explicar. Inês de Medeiros — Há um aspecto que parece, esse sim, importante. É que, de repente, a personagem que eu interpreto, a Mariana, deixa de estar a oferecer coisas e passa a tirar coisas. Porque, de repente, vê aquilo que desde o princípio está à espera de ver: aquele casal de cuja existência ela suspeita. Aquele casal habita aquela casa mas, ao mesmo tempo, são fantasmas que, tal como a lava, têm morte e vida. A lava significa morte mas um vulcão é símbolo de vida. Aquilo que ela vê é um casal, contudo é um casal de fantasmas. R. G. — Eu vi na sequência algo próximo duma cena de ciúme. I. M. — Claro que é complexo do ponto de vista dos sentimentos. P. C. — Para mim é uma representação do rei e da rainha e foi filmada como tal. Eu estava sempre a pensar que quem saía daquela porta era o faraó. Sempre pensei naquilo como «outra raça». António Roma Torres — A propósito das histórias que não são contadas, gostava de introduzir a questão das coisas que ficam por contar porque me parece que há aí um paralelo interessante a fazer com O SANGUE. Neste filme, essas coisas que ficam dispersas fazem muito mais sentido. A cena em que as duas enfermeiras falam sobre alguém de quem só vemos os braços, alguém que supostamente está a morrer, sobre quem elas pouco sabem mas decerto muito imaginam, dá logo no início o mote do filme. É um bocado como o valor do vulcão, cujas manifestações de vida são raras, mas que podem rebentar a qualquer momento. Mesmo a coma do Leão — que, de facto, não é nada natural — é uma espécie de morte aparente. Ele é um «morto» que se pode fazer despertar. A minha pergunta seria como situar o itinerário do filme nesta história que é contada mas que não é contada? Há umas cartas que se lêem mas que não se acabam de ler... P. C. — Eu achava que não podia mostrar muito da Edite porque a enfermeira vai percorrer os mesmos passos; com algumas variantes, a Mariana faz de Edite em nova. E queria omitir as partes que me pareciam sórdidas. Eu falo sempre de sordidez, mas não deve ser levado a mal. Porque a sexualidade no cinema é uma coisa que não se pode fazer... A Edite está no filme por causa do sexo. Por outro lado, é natural que a Inês fique mais sensual no filme porque a conheço bem e está muito mais próxima de mim. Tem uma maneira de se expor, de se escolher, de se ver... sensual. A Edite sempre me interessou pela parte mais sexual, mais vulcânica da história possível de elas duas em Cabo Verde. O que é que seria o percurso duma miúda ou duma mulher, em Cabo Verde, sozinha, tendo deixado tudo para trás? Isso é uma história, cuja parte mais sórdida é a sexualidade. E isso é uma coisa que não posso filmar. Não posso eu, nem pode ninguém. É impossível. Anda-se à volta... só se pode ter a atitude do Pasolini que é quando a sexualidade e a política se interligam e resultam numa coisa horrorosa que não é
possível ver. Eu adivinho, numa parte da história da Edite, o horror. Um horror em que o sexo se aproveita da política... Imagino histórias... guardas mestiços que se metem com a Edite e a levam para a cama... Há uma parte macabra, quer se queira quer não, que tem a ver com o Tarrafal. E como a política, para mim, também é um pouco esse subterrâneo de mortes, de prisões, de torturas, de excrementos, de sangue... não é nada a política-espectáculo, a políticarepresentação que vemos na televisão... A política real, para mim, é uma história de morte, de tortura, de pessoas que fazem mal a outras... de poder. E essa componente real apareceria forçosamente ligada ao sexo. É o único buraco do filme, o tal encontro da Edite com o operário cabo-verdiano. E eu queria, que a imagem que a Mariana visse no fim do filme fosse uma imagem majestosa. R. G. — Nesse paralelismo entre a história da Edite e a da Mariana há uma faceta que me fascinou. É como se tu apresentasses dois estados problemáticos de Portugal: Portugal dominado pelo regime fascista que envia presos políticos para o Tarrafal, um Portugal do passado; Portugal que hostiliza os imigrantes cabo-verdianos e os maltrata de tal maneira que até há acidentes nas obras onde esses cabo-verdianos são empregados em massa para os trabalhos duros, um Portugal do presente. São dois emblemas que conferem muita força ao filme. Através de um percurso individual, ligam-se dois momentos negros da história, relativamente afastados no tempo. Achei muito eficaz a focalização sobre dois pontos da História portuguesa, que são dois pontos de interrogação. Como é que optaste por isso? P. C. — Cabo Verde é um sítio que rejeita a vida. R. G. — E as ilhas são sempre sítios improváveis... P. C. — Pois, mas ali particularmente. Porque aquilo foi uma experiência. Foi ensaiada a raça. Foi um sítio inventado visto que não existia lá ninguém. As pessoas vieram de outras terras e experimentaram-se nelas várias maneiras de as fazer resistir. E Cabo Verde foi escolhido como o sítio mais duro para fazer um campo de concentração. As pessoas querem sair de lá. Toda a gente se quer vir embora. I. M. — Um aspecto importante é a atitude da Mariana, vinda do Portugal actual, que chega à ilha e tenta «curar», «tratar», sem tentar entender. Tenta tratar com instrumentos não adaptados. E por isso é também uma imagem do comportamento do Portugal actual, que vai a Cabo Verde distribuir vacinas sem se preocupar com entender o que de facto se está ali a passar. O passado político da Edite é outro, mas também não passa pelo entendimento. Ou seja, há sempre pessoas que querem coisas de lá, por exemplo, impor vacinas ou passar férias, mas sem se darem ao trabalho de compreender. P. C. — Eu queria fazer notar que todas as personagens têm duplos. Não só a Edite na Mariana como o Leão no miúdo. Cada qual vale como passado e presente, um antecipa o outro... A Mariana está a fazer as coisas que a Edite já fez. Mas o próprio filme é uma tentativa de abordar, perceber, agarrar um mundo que se fecha, se furta. O objectivo do filme era abrirse a um mundo que nem eu, nem a Inês, nem o director da fotografia, nem o electricista co-
nhecíamos. Todos queríamos deixá-lo entrar em nós, percebê-lo. Mas a ilha é um mundo concentracionário que se fecha sobre si próprio. Concentracionário no sentido literal da palavra. Fechado sobre os seus habitantes que guardam bem os seus segredos como é usual numa sociedade pequena... ainda por cima com uma história bizarra e perversa. Não é por acaso que Cabo Verde é a única ex-colónia que deseja ardentemente ser portuguesa. É um pouco estranho pensarmos que o grande trauma de Cabo Verde é ser independente. Nunca seria o caso das outras ex-colónias por muita estima que tenham por Portugal. Em Cabo Verde, aliás, houve uma tentativa, uma espécie de movimento pela reintegração enquanto território autónomo, um pouco como os Açores... I. M. — De resto, é uma forma de retomar da ideia do Amílcar Cabral que lutava por um estado independente da Guiné... A guerra nunca rebentou em Cabo Verde. R. G. — Eu há bocado falava não tanto da natureza concentracionária de Cabo Verde, que é decerto uma coisa que nos toca mas parece longínqua, mas sim da nossa dificuldade em lidar com os cabo-verdianos que vêm para Portugal à procura de trabalho, de uma vida melhor e pelos vistos, também de uma integração. Este é um problema gravíssimo. R. T. — A propósito desta questão de deixar Cabo Verde entrar no filme, gostaria de abordar o problema do crioulo. O trabalho da língua no confronto entre o crioulo e o português, relacionado ainda com a temática do que se percebe e do que não se percebe, parece-me resultar plenamente. Porque, de facto, o crioulo percebe-se, mas não se percebe. Não é completamente inteligível mas também não é completamente estranho... P. C. — Por isso é que ela diz: «Ainda não percebo muito bem o crioulo...». E tem sempre a impressão de estar a ser enganada por esse meio. E por isso é que a Edite só fala crioulo. É porque ela foi até ao fim e conseguiu entrar naquele mundo. Viu, tocou e sentiu coisas que lhe deram entrada num mundo alheio. R. T. — O que é que pensarias de vemos o filme sem legendas, isto é, não percebendo do crioulo mais do que o se percebe pela audição. Não sei até que ponto as legendas não explicitam demasiado algo que poderia permanecer mais indecifrável. P. C. — Era impossível... R. T. — Talvez fosse impossível passar a fita nas salas de cinema. I. M. — Há um aspecto que me parece muito interessante do ponto de vista da personagem da Mariana e que é, em relação ao crioulo, a ilusão de que pode ser compreensível. O maior drama e sofrimento da Mariana é a ignorância de que ela tem quase imediatamente consciência ao chegar. E o crioulo funciona para ela de forma perversa, porque lhe dá ilusão de que pode perceber. Ora, a verdade é que entre os buracos negros que são para nós as frases em crioulo, surge de vez em quando e quase por milagre uma palavra que nos é familiar; quanto ao resto são tudo coisas que se podem imaginar mas não entender. No fundo, a Mariana vai tentar preencher os buracos, imaginando.
R. T. — A propósito das tuas referências, numa entrevista, à figura de António Reis e também porque a paisagem vulcânica da ilha não é completamente diversa de algumas paisagens de Trás-os-Montes, este filme sugeriu-me uma relação com o JAIME e com a passagem da escrita para a pintura. De certa maneira, quando vi O SANGUE saí com a sensação de que o filme se via mas não se percebia e na CASA DE LAVA esse efeito existe mas de uma forma já plenamente justificada. No SANGUE havia algo que não se cumpria completamente, enquanto um dos temas de CASA DE LAVA é precisamente até que ponto é possível ou impossível conhecer as coisas e os seres, sejam eles cabo-verdianos, moribundos no hospital ou desconhecidos que se encontram. Este é um aspecto, embora paradoxal, muito coerente neste filme... tem a ver com o que se sabe ou não se sabe das personagens, com o que se repete ou não se repete... e está excelentemente anunciado pela conversa das enfermeiras no início, que supostamente pertence a outra aventura da protagonista (como no INDIANA JONES...) mas está carregada de sentido. É uma cena que aparentemente não tem continuidade no resto do filme, mas tem-na a outro nível. Ocorre-me que outra questão interessante é a do desempenho. Como é possível o desempenho de uma personagem marcada pela duplicidade de que aqui temos estados a falar? Se calhar, é sempre assim... I. M. — Um tema que me parece fulcral no filme é a perda da imunidade da Mariana. No princípio, a Mariana acha-se imune à morte. Lida com a morte mas a seguir lava-se, desinfecta-se, pinta-se. Acontece que vai ter de lidar com um «morto» que, ao contrário dos outros mortos, não é enterrado. E é como se, de repente, fosse parar ao sítio onde os mortos não estão enterrados... estão ali. Portanto não há imunidade possível naquele sítio, nem há vida enquanto os mortos não forem enterrados. Deixa de ser claro o que a Mariana esconde e o que a Mariana não sabe. Ela esconde que está, sem o saber, a repetir passos da vida da Edite. Vai tentando, vai-se enganando, experimenta abordar o mundo dos homens, depois o mundo das mulheres... P. C. — Há uma coisa que ainda não referi: as mulheres estavam sempre em pé, e eu não tinha tomado consciência de que ia filmar com um homem que estava sempre deitado. No entanto, decerto repararam que depois aparecem deitadas quando já estão muito cansadas, lá para o fim. O estar deitado corresponde a um estado de morte. R. G. — No princípio elas aparecem quase hieráticas... P. C. — Todos os dias tinha de me lembrar que tinha uma espécie de frango no espeto nas minhas imagens. O «morto» aparecia na posição horizontal e as mulheres deviam permanecer de pé. E estão mesmo de pé, à espera... porque a vida delas é estarem em pé e estarem acordadas enquanto os homens morrem, dormem, estão cansados demais, já sem forças. Isto é só para explicar que aquela série de planos fixos sobre as caras não é gratuita. A sucessão de caras anuncia uma paragem. A ausência de palavras e a paragem são um prenúncio de morte. Aqueles rostos anunciavam também que o filme ia ser um filme com mulheres onde as mulheres falam pouco. Naquele sítio as mulheres precisam de menos palavras, ao contrário do
que acontece na primeira cena com as enfermeiras onde se percebe que elas têm necessidade de falar e arranjam sempre maneira de falar. Saguenail — Há nos teus filmes uma problemática do lugar da morte, de transportar o morto. P. C. — Pois, eu coloco a questão assim: arranjar um morto e depois pôr lá a Inês. Normalmente as histórias são um rapaz, uma rapariga e uma pistola; um rapaz, uma rapariga e um carro; um rapaz, uma rapariga e um bando. A grande diferença é essa... S. — Fazer um filme é também filmar pessoas. E a história dos dois filmes do Pedro Costa é também a tua. Ela filma-te em dois momentos diferentes da vida. I. M. — Da minha vida? Minha, da Inês? S. — Sim. I. M. — Eu prefiro não pensar na minha vida... P. C. — Em relação ao SANGUE este filme tem uma construção mais cerrada, mais mental. Sei que neste filme não há passos em falso. Os pequenos indícios, sinais, desvios, quando é que o mal e o pior podem acontecer e vão ou não acontecer, tudo isso é muito mais seguro neste filme. O SANGUE era menos dominado. Era quase como arranjar um morto, que por acaso era um pai (mas por acaso mesmo, podia ser outra coisa), e depois tentar meter lá duas pessoas que eu achava muito boas. Este filme é mais coerente. O que tem graça são as repetições mas elas são inconscientes. Não me apercebi logo que o centro dos dois filmes é o transporte de um morto. Só agora é que começo a pensar nisso e no que é que isso significa. Para mim significa uma coisa muito clara que é que o cinema está entre os dois planos, não acontece dentro de um plano. A mise en scène está entre os planos; num plano uma coisa está morta e noutro está viva. E a figura que eu inventei é o transporte do morto. O transporte do morto é realmente a fita a correr. Mas o que acontece é no meio dos planos e é a possibilidade de uma coisa se tornar viva ou não, de acordar ou de nascer. E, para mim, o cinema é mesmo isso: a possibilidade de que algo desperte. Quando se faz um plano, sacrificam-se imensas coisas, mata-se uma data de coisas. E isso foi algo que eu senti. No fim do SANGUE vê-se um braço. É um plano do miúdo mas está lá um braço. Nunca me passou pela cabeça que podia não estar lá o braço (há espaço no enquadramento para estar só o miúdo). No entanto, pareceu-me que precisava do braço e que se não o filmasse ficava perturbado. Eu sei, quando filmo um plano, que se deixar tudo de fora, fica tudo morto para sempre. É preciso um esforço enorme para que fique vida. Trata-se porventura de uma mecânica muito inconsciente mas eu penso que o trabalho de fazer um filme é próximo da evolução de um cadáver. R. G. — Mas podem acontecer milagres... P. C. — Não, não. Por isso é que eu frisava há bocado que é um processo muito sórdido. Não há hipótese nenhuma de um milagre. R. T. — O discurso do teu filmar é mais contraditório do que essa tua imagem de abatimento. No filme perpassa um discurso mais optimista.
P. C. — Pois. No fundo o filme diz que o mal está feito e para esse já não há cura. Portanto temos que fazer um filme sobre isso. No ideal, não deveria haver necessidade de filmes, nem de opiniões, nem de invenções. Fazer um filme já me parece um acto tão mórbido!! Porque fazer um plano é matar uma data de coisas. É um assassínio. O cinema deve ser entendido assim. Os filmes «grandes» só falam disso... O que é muito fácil é encenar isso em Cabo Verde onde a coisa nos é oferecida de bandeja. Quase não tens que fazer nada, são os próprios caboverdianos que to dão através do silêncio. Era o que o António Reis fazia, com muito esforço, em Trás-os-Montes. E é o que eu fiz, agora, sem grande trabalho. Estou a falar a sério. Em Cabo Verde, a morte é-te oferecida. É uma prenda. Está lá tudo. Estavam lá todas as coisas de que eu andava à procura. É como uma página em branco. I. M. — Em relação à pergunta que me fizeram há bocado. Penso que há coisas que devem manter-se em segredo. R. G. — A pergunta não era sórdida... I. M. — Eu também não estou a dizer que era sórdida. P. C. — O facto é que eu vejo muitas vantagens em filmar com o Pedro e com a Inês. Vejo muitas vantagens para mim. Não vou chegar ao ponto de dizer que eles têm vantagens em filmar comigo... Eu sabia que o Pedro ia ser bestial em Cabo Verde, apesar de ter consciência das dificuldades... Sabia que ia ser difícil para mim e para ele porque a nossa relação não é simples. Porém, aquilo que o Pedro fez aproxima-se muitíssimo! — e nunca isso tinha acontecido - daquilo que eu tinha pensado. Não quer dizer que seja melhor do que a Inês, mas ele está muito próximo daquilo que eu tinha pensado. A Edite, a Inês, os cabo-verdianos foram, pelo contrário, muito surpreendentes. Algumas decepções, algumas maravilhas. O Pedro saiu exactamente como eu imaginava. E isto torna-se um tanto obsessivo. Implica que eu não tenho grande vontade de filmar com outros actores. E vê-se que os dois filmes são círculos muito fechados. S. — A minha pergunta tinha a ver com a forma como tu encaras essas tuas opções. Cada vez que eu escrevo um filme, julgo que estou a abordar uma coisa que não tem nenhuma relação com o que já fiz. Muito tempo depois, descubro que afinal é o mesmo filme que ando a fazer. I. M. — Se quiseres, no meu entender, não se deve interrogar o facto de o Pedro ter vontade de filmar comigo. É algo que eu não quero saber. S. — Eu começo a ver cada filme como um fragmento da vida dum actor. Daí a minha pergunta perante a situação «excepcional» de filmar outra vez com a mesma pessoa a encenar. I. M. — Mas os actores têm um privilégio em relação ao resto da humanidade que é o de viverem coisas que os outros não conseguem viver. Ou pelo menos que viveriam com muito mais consequências. Isso é um privilégio do qual retiramos benefícios. No entanto, detesto quando me perguntam o que há de mim numa personagem. Posso é tirar conclusões da personagem em proveito próprio, descobrir o que aprendi com a personagem. E aprendo muitas
coisas com as personagens. Foi o que aconteceu também com os filmes do Pedro. Aprendo coisas da vida. Mas são minhas, portanto não as digo. P. C. — Quer dizer, no meu caso, para quê ir procurar mais longe? É a lei do menor esforço. Ainda por cima, vejo como são complicadas as relações com os actores... e com as estrelas, deve ser pior. Este meu projecto também passou por arranjar assunto à volta deles. Começou assim e os outros actores vieram um pouco da mesma maneira. Tive que ir buscar o «morto» a outro sítio, dadas as dificuldades em arranjar actores em Cabo Verde. E como o Isaach de Bankolé, apesar de tudo, quis fazer o papel... R. G. — Apesar de tudo... R. T. — Pois... quis fazer de morto... P. C. — Ele só acorda na bobine 9. Na montagem, transformou-se quase numa piada. Nunca chegava a montar o Isaach porque estávamos sempre a montar antes... Começávamos a montar uma determinada versão e depois, na bobine 5, voltávamos para trás porque não achávamos que estivesse bem e nunca chegávamos a montá-lo a ele. Aliás, eu sabia que isso ia acontecer... S. — Uma pergunta, um pouco mais longe do filme, em relação à situação do cinema em Portugal. Dentro dos novos realizadores, alguns realizaram, um segundo filme, outros não... Paira uma incerteza quanto à continuidade da produção. O que pensas disso? P. C. — De há dois anos a esta parte, a situação começou a piorar. Ou seja, a ficar mais clara, para o bem e para o mal. Os dirigentes querem manter esta nova situação e lutam por isso. O que me aflige mais é a falta de iniciativa, principalmente por parte das pessoas mais novas. Não há primeiros filmes. Não vejo ninguém a sair da escola de cinema com projectos. Também há pessoas que já perderam a esperança ou que desistiram. I. M. — Aqui há anos, quando eu comecei a trabalhar, havia propostas, havia pessoas que apareciam com argumentos interessantes. Pessoas que faziam trabalhos perfeitamente distintos mas que tinham ideias, vontades. Neste momento, pelo que tenho encontrado, as pessoas que deveriam estar a preparar-se para fazer o seu primeiro filme, estão muito confusas. Como o discurso político dominante preconiza que não há lugar para projectos pessoais, as pessoas estão muito confusas. Não sei é como se consegue fazer um primeiro filme sem se ter um projecto pessoal. E a confusão tem vindo a criar um vazio. Os projectos que me têm apresentado — e apresentam-me alguns — deixam-me desconcertada. Porque não percebo sequer onde é que as pessoas querem chegar, nem o que querem contar. Acho que neste momento reina uma grande confusão na cabeça das pessoas em relação ao que o cinema é. Não sabem se é uma mercadoria, se é uma arte, como é que se devem exprimir, o quê, porquê... No fundo, o que é que querem contar. É impossível interpretar esta situação do ponto de vista dos casos individuais. Julgo que se trata dum problema político. A política que se pratica tem feito tudo para tirar às pessoas a vontade própria. S. — Como é que se vive do cinema como actriz?
I. M. — Já se viveu melhor. Quando comecei a trabalhar, havia a esperança de encontrar pessoas com projectos. E é isso que nos faz ter vontade de trabalhar como actores: querer participar na realização duma ideia que alguém teve. Como vivem os actores neste momento? Basta acender a televisão e vê-se de que vivem os actores. Não vivem do cinema! Se calhar vivem melhor, mas a gente olha para a cara deles e percebe que não vivem felizes. E tudo isto tem a ver. Tem a ver com os projectos pessoais. Escolher ser actor é uma decisão que ninguém toma levianamente. Quando se decide ser actor é porque se quer algo. Pelos vistos, rapidamente se deixa de querer. Não se pode apontar nenhum caso a dedo... isto é uma atitude geral. Os projectos pessoais acabaram porque deixaram de ter valor. Passam a prevalecer os interesses de Estado. Esta desvalorização reflecte-se na criatividade. S. — O cinema português, apesar de ser um cinema de Estado, escapou durante muito tempo à intervenção do Estado. Aliás, a maior parte dos cineastas nunca tiveram um discurso crítico em relação a esse mesmo Estado... I. M. — Não era um cinema de Estado. Era um cinema financiado pelo Estado, não era um cinema de Estado. Neste momento é que se pretende cinema e cultura do Estado. S. — Sim, aí é que bate o ponto. O Estado financiava os filmes embora em certos casos não houvesse dúvidas quanto à posição dos cineastas. O Estado financiava os filmes do Paulo Rocha, do João César Monteiro, do João Botelho. Mas o facto de o financiamento provir exclusivamente do Estado era, em si, um risco... I. M. — O risco não é ser financiado exclusivamente pelo Estado. O risco é o Estado querer fazer uma cultura de Estado. Isso é válido para o cinema, para o teatro nem se fala... R. T. — Mas se tomarmos como referência a visibilidade dos filmes portugueses, não é esse cinema de Estado que passa nas salas. O outro cinema, porventura imaginário, não é visto nas salas. S. — Mas continua a dominar o imaginário dos que têm poder e dos que sonham com o poder... R. G. — Faltam discursos radicais. P. C. — Aquele cinema português, tal como era entendido, matou-se a si próprio. Matou-se a si próprio porque era como no tempo do Bach: havia trinta mil Bach(s). E isso não pode ser. Quer dizer, não passa duma ilusão. E acho que, em certa medida, há uma razão para este «querer fazer leis», para esta «limpeza». Digo isto porque a minha relação com o cinema português é com os cineastas não com os filmes. Não tenho diálogo nenhum com os filmes a que chamaram exemplos do cinema português. Não quer dizer que não goste de algumas coisas. Mas da maioria não gosto. Acho que aquilo a que se chamou escola portuguesa foi uma fraude. Há-de continuar a haver filmes, quem os quiser fazer vai fazê-los. Quem tiver energia para isso. Quando falo do peso da morte do cinema português, estou a falar a sério. Muitas pessoas desistem. Desistem porque não têm razão para fazer cinema. Não têm razão poética. Quando não existe razão poética, não há nada a fazer. Pode-se copiar o Reis ou
o Rocha de trás para a frente, mas a razão não se pode inventar. Isto é um bocado chocante, mas é o que penso. Portanto, o poder diz e muito bem — neste caso, muito bem — que isto não pode ser assim. Porque nós não estamos a pensar, não estamos a pensar sobre nós, não há progressos na mise en scène. O que aconteceu agora foi o pior possível porque devia ter sido pensado por pessoas que se dessem ao trabalho de pensar. O problema é que os dirigentes tomam sempre a pior imitação do António Reis ou do Paulo Rocha como sendo de outro Reis ou outro Rocha. Contudo isso nunca foi verdade. Mas há muita gente que andou sempre a fechar os olhos perante isso. Eu digo sistematicamente isso no estrangeiro: «Não, não, desculpem lá...». O famoso «rigor» da escola portuguesa foi a palavra mais gasta que imaginar se possa. Dou-lhes toda a razão quando eles dizem que é preciso fazer filmes de uma certa maneira porque eles ali vêem o rigor. Vêem um rigor, na forma de montar um plano com uma pistola a matar um tipo qualquer. Aí há de facto um «rigor», um «saber». Eu nunca fui convencido pela estética da taça das três laranjas pousada numa mesa com quatro marrecos a dizerem uns textos. O cinema é uma coisa que se vê. I. M. — Eu pessoalmente conheço autores portugueses, ou seja, pessoas com ideias. Não sei se se pode falar do cinema português em geral. Mas isso não impede que me faça aflição esta situação de estagnação, de confusão, que faz com que as pessoas não saibam sequer para onde devem ir... parece que não há solução... R. G. — Mas vocês não acham que a existência de um poder que pretende elaborar um discurso convincente, isto é, terrorista, com vista a instituir uma cultura de Estado, deveria, pelo contrário, suscitar uma onda de reacções criativas? Porque tu dizes que a política mata a criatividade... ora isso é que eu não entendo. Entendo que, ao nível de um mercado, que sempre foi frágil em Portugal, isso possa ter consequências terríveis, mas não entendo como é que isso pode destruir a criatividade. Acho que isso deveria pelo contrário desencadear uma vaga de indignação. Os criadores deveriam virar costas a esse Estado que os quer aniquilar... I. M. — Eu também não entendo... Estou a falar de coisas que observei, que li, que me vieram parar às mãos, inclusive propostas... R. G. — Estamos a falar da «nova geração», ou seja, de pessoas que não têm história para trás. No caso do teatro, por exemplo, eu não entendo como é que pode ser uma fatalidade que leva ao desaparecimento da actividade teatral que o Estado não dê subsídio para fazer teatro. Isso não rima. O teatro não passou a existir porque o Estado o subsidiou. A vontade de fazer teatro deveria ser mais forte do que todas as políticas culturais por mais imbecis ou terroristas que sejam. I. M. — A situação no teatro até se clarificou. Mas o certo é que não tenho encontrado muitos resistentes. Tenho pena, mas não tenho encontrado. P. C. — Foi muito gasta esta treta da escola portuguesa porque o cinema são histórias individuais. Eu estou um bocado do lado dos reaccionários. Eu não vejo nenhuma relação — e
estou preparado para discutir isso — entre o que eu faço e o que faz o João Botelho. Isto não é um juízo de valor. São dois mundos diferentes. R. T. — Em meu entender, a escola portuguesa deixa de existir a partir do momento em que é formulada como tal. Como será o caso da Nouvelle Vague... O teu discurso tem razão de ser, se pensarmos em termos de fazer «escola portuguesa». Talvez, de resto, a escola portuguesa já tenha dado o que tinha a dar. P. C. — Como todas as escolas, se ela de facto existiu, começou hoje a dar os seus subgéneros e subprodutos. S. — Quando falei em cinema português, pensei, não em «escola portuguesa», mas, em cinema feito em Portugal. Os filmes portugueses que vemos são realmente, quase sempre, filmes de autor. Isso é o que é mais surpreendente e é surpreendente que isso tenha persistido no contexto geral das várias cinematografias. P. C. — Sofre aliás um ligeiro embate quando confrontado com outro tipo de cinema. I. M. — Eu sou a favor, absolutamente a favor, da existência em Portugal de um cinema comercial decente. Um cinema comercial real que acabasse com as confusões. Há uma confusão enorme com estas categorias e designações, como «comercial» e de «autor», em Portugal. E essa confusão é que engendra a falta de criatividade. As histórias, os argumentos que lemos dão uma no cravo outra na ferradura. As pessoas deixaram de ter vontades vitais de dizer coisas. Ora, eu acho legítima uma vontade vital de agradar a dois milhões de pessoas. Mas não misturem tudo... S. — No caso dos actores, teriam a vida facilitada se houvesse mais cinema. E mais cinema implicaria haver cinema comercial. Os furos possíveis seriam maiores do que neste impasse a que se chegou. P. C. — O que se passa agora é um bocado insolúvel. As regras e as directivas são muito claras. Se se cumprir o «programa», o chamado «programa narrativo» que é o programa do governo... S. — Mas tu não cumpres... P. C. — Eu não cumpro porque trabalho sobre uma coisa muito especial, uma coisa sobre a qual, acho eu, ninguém trabalha. E é a minha safa. Eu não tenho passado no cinema português. O João Mário Grilo ou o João Botelho, e muitas outras pessoas no cinema português, têm um passado. E vivem relativamente bem com esse passado. Eu sempre vivi num corpo doente, à beira da morte, em coma. Há um ou dois ou três filmes do Oliveira ou do Rocha. Poucos do Oliveira. Há assim umas coisas de vez em quando, planos, imagens, sons. É a própria história da produção desses filmes que marca, como seja a história da produção dos filmes do Reis, todos eles epopeias. Foram muito difíceis de fazer... Ficar quatro dias à espera de filmar um plano!? Num filme normal é considerado um delírio. Se fores ao IPC e disseres que vais estar quatro dias à espera que o sol esteja em tal posição... Mas isso aconteceu. Como aconteceram as histórias do Paulo Rocha. Mas dificilmente isso acontecerá outra vez. Ora o que eu achava
interessante era isso mesmo; as catástrofes da produção. Em Cabo Verde, viveu-se algo de parecido. Por um triz, tínhamos um naufrágio, felizmente havia uma ilha. Nos meus filmes, tenho sempre a sensação que o pior está para chegar. E depois as pessoas lá se safam duma maneira bizarra, mentem, usam umas manhas. E lá se chega ao fim de uma hora e meia, sem se saber bem como. Do género limite-limite. Era essa a sensação que eu tinha nos filmes do Reis e do Rocha. Portanto, a história da produção em Portugal foi sempre uma história de naufrágios. Histórias de esforços, de resistências, de guerra, que eu ouvi contar. Agora esta ideia de «programar» filmes... Acho que o cinema não pode ser assim tão programado. Vão falhar os que tiverem «embalagem» para isso, os que tiverem «argumento» para isso, as chamadas «boas histórias». Vão falhar porque nós não temos nada para oferecer a não ser a Lei... I. M. — Se houver um filme por ano, há 99% de hipóteses para que não seja bom. Se houver dez filmes por ano, há mais hipóteses de surgir um bom filme. É uma questão aritmética. Todos os belos discursos no sentido de se realizar um filme por ano com uma grande produção, muito planeada, são pueris e condenados ao fracasso. Quantas vezes na história do cinema se viram filmes realizados e lançados com muito dinheiro que não tiveram sucesso nenhum, e filmes que foram rodados um pouco por acaso e tiveram um sucesso enorme. Quando falo de sucesso, não falo só de sucesso comercial, falo também da qualidade. Estoume nas tintas para a escola portuguesa, se há, se não há. Trabalhei com realizadores muito diferentes, com vontades diferentes. É isso que eu recordo com prazer. Se há uma coisa que faz com que me sinta atraída por um filme é perceber que ele nasce de uma necessidade vital de o fazer e de o mostrar. Há decerto uma explicação para eu não encontrar actualmente vontades vitais. Entretanto, se só houver um filme por ano, a probabilidade de surgirem bons filmes é escassa. Megalomanias não me convencem. P. C. — Não me parece que isso seja muito a ideia deles. Por exemplo, acho que este meu filme é uma coisa totalmente inatingível para os tipos do IPC... I. M. — IPACA!!! P. C. — E também para alguma crítica. É uma coisa séria de mais. E isto quer dizer que é muito pobre o que se passa. Que as pessoas que estão no IPC são muito pobres, que a crítica é muito pobre. Pobre no sentido de doente. Gostava que me dissessem alguma coisa sobre o meu trabalho. Mas, pelo que me dizem, fico com a sensação de que é Arte... Pois claro que é... Há aqui um problema com os dirigentes do cinema e com a crítica que não faz o seu trabalho e, acima de tudo, mais grave ainda, é a questão da ficção... Porque há um problema de ficção na Zita Seabra. O problema da Zita Seabra não é um problema de argumento, é de ficção. Uma gaja que esteve presa, que foi do PC, e que hoje está onde está, tem um problema de ficção. Ela imagina-se a ir de chauffeur para o IPC, para um Instituto de Cinema... que não existe. É preciso dizer-lhe: «Ó minha senhora, isso não existe. Você está a fazer um trabalho que não existe! Você pode fazer tudo o que quiser, mas isso não existe porque é uma ficção! Você anda
a acalentar ficções na sua cabeça!». Ela passa a vida em festas, em apresentações, em representações daquilo... Aquilo agora é pura representação. Não é um problema de argumento porque um argumento tem leis, e a sua qualidade depende muito do talento de quem o vai realizar e dos actores que o vão interpretar. Em todos os países no mundo se fazem filmes normais... depois há umas obras que escapam à normalidade. Mais perversas, mais lacunares, mais estranhas, mais artísticas, mais experimentais... É assim em todo o lado. Cá não. Há alguma coisa que está muito errada, muito doente. São vários corpos doentes, o dos realizadores, o da crítica e o dos dirigentes. Mas como todos acham que estão muito bem... Eu penso que vou escapar a isso porque trabalho sobre isso. Escaparei sempre porque é a única coisa que não me podem tirar. S. — O último argumento do Paulo Rocha era também sobre esse vírus e essa ficção. P. C. — Pois, mas os argumentos são outra coisa. Aí a bola bate sempre na trave, porque o argumento não é o filme. Há milhares de argumentos aprovados pelo júri do IPC que não têm pés nem cabeça, que não têm qualquer valor comercial ou artístico. Escondem-nos bem escondidos. Claro que é uma tarefa muito difícil para quem avalia e julga, porque há sempre uma margem de erro. A Edite falou-me por exemplo, do argumento de A VIA LÁCTEA, um filme do Buñuel em que ela entra. É um argumento que leu e tem em casa... mas nunca viu o filme que lá está escrito. O argumento foi uma coisa para arranjar dinheiro. E o filme que dali resultou foi aquela obra incoerente, estranha, maluca. Mas voltando aos dirigentes actuais: uma boa parte deles são totalmente incultos. I. M. — Eu também acho... P. C. — Não sabem, não conhecem, não viram. Portanto são efectivamente incultos. A outra parte... são oportunistas. ENTREVISTA CONDUZIDA POR: ANTÓNIO ROMA TORRES, REGINA GUIMARÃES E SAGUENAIL