Exílio crónico

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EXÍLIO CRÓNICO O espectador de um filme de Tarkovski é obrigado a entrar numa estética nova, a aceitar deixar-se guiar pelas imagens sem poder adivinhar a sequência da articulação do discurso fílmico. Esta receptividade do espectador, que não se traduz em passividade, só se torna possível graças à força estética das imagens — na obra de Tarkovski é lícito falar de «imagens sonoras», tal é o grau de refinamento e cuidado com que o realizador trata o som (barulhos, timbres vocais, música). O som, ao contrário da projecção intermitente das imagens, forma uma corrente contínua que permite passar de um espaço visual em três dimensões a um espaço-tempo fílmico em quatro dimensões do qual o espectador ocupa o íntimo e não o ângulo da pirâmide invertida (cuja base é o ecrã) onde é habitualmente colocado. Em Tarkovski a imagem nunca é exuberante, barroca — nem mesmo nas cenas de «acção» de Andreï Rublev — antes joga num despojamento algo «primitivo» — baseado numa estrutura geométrica simples — e simultaneamente numa nitidez fotográfica excepcional que satura todos os seus elementos e os organiza em labirinto. A penetração do espectador nas imagens, ou antes das imagens na consciência do espectador, implica um esquecimento de si por parte deste último — em vocabulário de psicanálise, o esquecimento do «eu» para deixar o campo aberto ao «si» — ou melhor um esquecimento das estruturas convencionais da ficção. Esta eliminação dos argumentos virtuais que o espectador tem em mente implica uma «regressão» ou pelo menos um regresso aos processos de compreensão infantis ou mesmo «primitivos», na medida em que estes são dominados pelas forças «elementares»: o fogo e a água. O tempo desempenha um papel preponderante: este avançar no espaço mental inscreve-se numa duração. De onde advém um ritmo muito lento que permite ultrapassar a instantaneidade da imagem, a actualidade da acção, de forma a que o esquecimento desague numa memória das Origens. O processo excede o simples fascínio e aproxima-se da hipnose. Há uma evolução na filmografia de Tarkovski do VIOLON ET LE ROULEAU COMPRESSEUR (O VIOLINO E O CILINDRO COMPRESSOR), onde se retrata a observação dos gestos e das formas significativas para a criança, à INFÂNCIA DE IVAN, onde o drama reside justamente na impossibilidade de manter esta compreensão «primária» e primordial num contexto sócio-histórico dado, passando por ANDREI RUBLEV, que reconstitui esta busca da idade do ouro e a postula como única via da arte. A partir deste filme, Tarkovski assume a função mística do artista restituindo não a consciência de uma perda, mas a possibilidade de acesso deste domínio à consciência — a revelação. Cada filme analisa diversos aspectos das implicações desta busca, em particular as exclusões social e familiar, que podem ir até à perda dos bens — O SACRIFÍCIO ou até da família — NOSTALGIA. Porém, a partir de SOLARIS, esta revelação é assimilada a uma redenção na qual o destino da humanidade inteira está em jogo; nos seus dois últimos filmes, Tarkovski propõe claramente uma metamorfose da PAIXÃO em que o indivíduo toma a seu cargo a sobrevivência do mundo. Assim, em certa medida, Tarkovski repete-se indefinidamente de filme em filme, limitandose a modificar as condições funcionais desta demanda. A repetitividade reforça e simultaneamente opõe-se à dilatação da duração de cada cena. Os filmes de Tarkovski descrevem um percurso de iniciação redentor, mas tanto as vias como os fins são infixáveis: a busca pode ter por único objecto a submissão, a resignação — SOLARIS — ou pelo contrário a decisão — NOSTALGIA —, pode não ser bem sucedida — STALKER, pode visar redimir uma catástrofe objectiva — STALKER — ou totalmente subjectiva — NOSTALGIA —, pode até conseguir anulá-la — O SACRIFÍCIO. É evidente que se trata apenas de um pretexto para a ficção, pois o filme é em si a busca que dá a ver. O objecto do filme — da busca — é, indissociavelmente, uma comunhão com as forças elementares, e uma comunicação, uma transmissão da consciência do desafio a outro personagem — a mulher em O ESPELHO, o escritor em NOSTALGIA, a criança em O SACRIFÍCIO. As forças simbólicas elementares permanecem de um filme para outro (o fogo e a água, como já mencionámos) e representam os instrumentos da purificação na linha de todas as tradições místicas. A omnipresença destas define por si só as imagens tarkovskianas, com o brotar e o gotejar


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