FALHAR OS ACTOS Os (re)visionamentos, separados por curto prazo, de LAS HURDES e de MISÈRE AU BORINAGE não deixaram de me inspirar — a par de uma estranha surpresa a que voltarei — algumas reacções mais ou menos epidérmicas da alma que é, na melhor das hipóteses, uma cabecinha muito dura. Caramba! Quanto valem as convicções do ser pensante sempre que se torna ser filmante?! Entre o povo esquecido pelo mundo e rejeitado pela história de que Buñuel nos oferece um clínico retrato e o proletariado miserável da região mineira em luta por um futuro menos degradante que Storck e Ivens nos apresentam, vai a exacta distância que opõe os pré-conceitos subjacentes ao acto de encenar o real que, mais óbvio não pode parecer, não passa de uma categoria do imaginário (e viceversa, como o afirmou Jehan Mayoux, poeta surrealista, militante pacifista, revolucionário e caçador de evidências poético-filosóficas). Para Buñuel, os Hurdanos são selvagens milagrosamente sobreviventes num mundo "civilizado", são o terceiro mundo nas traseiras da casa onde ninguém vai por causa do medo do escuro. (São o tesouro fundador daquilo que fará a feliz fortuna de obras-primas como LOS OLVIDADOS ou VIRIDIANA). Las Hurdes localizam-se numa região de natureza tão agreste que os próprios monges, perante a hostil interioridade, capitularam. Se ainda existem habitantes em semelhante habitat é por puro engano do acaso e a selecção "natural" se encarregará (o filme não se priva de o provar) de os suprimir lenta e implacavelmente. Os Hurdanos não existem, são o passado mal enterrado de uma Europa à beira de experimentar toda a sua maravilhosa tecnologia numa carnificina que durará meia dúzia de anos e eternos estragos. São os "damnés de la terre" que não se levantarão pois não têm direito a hinos, nem a esperança. Porquê assim? Não por nada haver a fazer, mas porque será porventura menos árduo olhá-los como figuras de pesadelo (dos pesadelos costuma ser possível despertar...). A Espanha, que não participará na grande guerra porque se terá esgotado na que internamente a dilacerou, não pode ver estes seus filhos lazarentos como promessas. Assim fala entre linhas, este documentário, por muito que a surpresa me custe. Sabe-se que Buñuel não filmou nem montou propriamente na urgência, se bem que o tenha acarinhado como obra sua e difundido como obra de denúncia. EGO-1; ALTER-0. Outro galo canta do lado do BORINAGE, já que para Storck e Ivens os mineiros, enquanto proletários em luta, encarnam o projecto de futuro revolucionário da humanidade. Eles, "forçats de Ia faim", são os heróis do dia e de uma utopia que os transcende e os torna não só mais vivos que a própria vida - nenhum obstáculo pode entravar a sua luta - mas também esperanças únicas de um renascimento, de um mundo outro, melhor. Claro que para se obter uma proposta de leitura tão empolgante de uma luta dura como a greve, é necessário que o humor e a vitalidade das imagens e das personagens silenciem a voz da discórdia e do desgaste (ausente no filme), essa arma que o poder brande até que se aplique o ditado "em casa sem pão todos ralham e ninguém tem razão"... O fervor de Storck e Ivens atinge tais cumes que o próprio trabalho da mina aparece engrandecido e a prossecução da actividade mineira é vista como um benefício e não como uma calamidade. Quanto vale a convicção do ser pensante sempre que se torna ser filmante? Numa escola primária hurdana, Buñuel encontra uma estampa que representa uma espécie de "menina" em trajo antiquado. A presença desta imagem naquele contexto parece-lhe tão absurda quanto ensinarem às crianças indígenas o mesmo que se ensina aos miúdos no país colonizador e no resto do planeta! Curiosa rejeição do elemento intruso num discurso que tenta diagnosticar os males do isolamento. E são graves as lacunas de fraternidade de que podemos aperceber-nos (quantos cadáveres a deplorar!) – logo após dois movimentos de aproximação bem diversos (o ritual de "castração simbólica" em La Alberca e o panorama internacional das lutas operárias) somos obrigados a enfiar o nariz na negação do outro: o outro, em vias de extinção no meu imaginário (o selvagem); o outro, em vias de apropriação pelo meu imaginário (o herói). Pois Adão e Eva que, como é consabido, se amavam como irmãos, foram expulsos do paraíso. E que outra coisa vemos em LAS HURDES e MISÈRE AU BORINAGE senão uma versão pessimista e
uma versão optimista da terra enquanto anti-Eden? E que serão as obras de mestre senão as que, como estas, falham tão redondamente na adequação dos sentidos aos sentidos que nos expulsarão, mais tarde ou mais cedo, do paraíso das boas intenções? Regina Guimarães