Far east

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FAR-EAST A preocupação de descentrar, desenquadrar, desenraizar, é fortemente determinante na concepção global deste SWEETIE bem-vindo da longínqua Austrália. O insuficiente contacto que temos com o cinema australiano já nos revelara atmosferas de uma violência rara que percebemos como familiar e contudo estranha: SWEETIE não só confirma essa impressão algo híbrida — objectos e sujeitos «conhecidos» sob ângulos «inesperados» — como, de certo modo, a reforça, posto que o filme se defende do psicologismo terrorista postulando uma imprevisibilidade aquém da tragi-comédia. O desrespeito pelas regras de construção não pretende desconcertar gratuitamente o público: a fraternal bizarria da intrusa (a doce Sweetie) só adquire uma dimensão de desafio moral porque o filme começa por encenar demoradamente a sua ausência, descrevendo as amarguras amorosas da mana e inserindo-a num mundo de neurótica normalidade. Sweetie é sensual, terna e espontânea. Por contraponto, a irmã é frígida, rígida e calculista, mas sobretudo incapaz de lidar com uma qualidade típica (no plano biológico ou simbólico) daquilo a que chamamos seres vivos: as raízes e o enraizamento. Esta fobia é, aliás, alvo de outros tratamentos ao longo do filme: os pais, separados, só conseguem reatar a relação interrompida num território neutro e longe do lar; na cena de enterro, a irmã comenta em off que na própria sepultura, em tudo anónima, foi preciso serrar uma raiz. As personagens de Jane Campion movem-se num quotidiano de pesadelo infantil dominado por tiques de auto-censura. A permanente tensão, essa nos antípodas do onírico, que os seus comportamentos engendram parece ser condição necessária para manter intactos os sítios e sentidos conquistados. Sweetie é o dinossauro frágil, condenado a desaparecer porque ocupa espaço demais — a envergadura do bicho ameaça esmagar os ninhos que a família «colonizou». O enquadramento, muitíssimo apertado, ora encerra as figuras num campo claustrofóbico, ora as transforma em molduras dum campo vazio — trata-se de visualizar a impossibilidade de passar das marcas e não menos de pessoalizar essas marcas. Por outro lado, a composição, frequentemente assimétrica, ceifa os pontos de equilíbrio sem que a cineasta procure compensar pela montagem a sistemática perda de centro de gravidade. SWEETIE é, no primeiro grau, a história da criança que não cresceu. Todavia, uma análise atenta dos parentes da protagonista mostra que também eles se quedaram numa perigosa indistinção entre si próprios e os outros enquanto objectos de amor. Esse caos emocional engendra monstros. A criança-prodígio é uma pura invenção do pai, indirectamente acusado de esmorecer no fluxo de afecto que a modelou. Sweetie não pode corresponder às esperanças insensatas que o pai nela depositou — e note-se que as tais esperanças se cristalizam em torno da ideia de subida ao palco —, logo o correr dos anos implica um desgaste da ficção paterna e uma perda inevitável do lugar que fantasmaticamente lhe estava reservado. A menina mimada transforma-se em mulher indesejada. Pintada de preto, nua, disforme, vem a morrer quando definitivamente se desfazem as fantasias do pai. A queda da cabana na copa da árvore (árvore sinónimo de esplendor da raiz e, plasticamente, raiz que se expande no céu) ocorre na presença da família enfim re-unida. O filme é rematado por um plano fixo que contrasta com a agitação da cena de imolação: sob fundo de arvoredo, Sweetiemenina, ataviada como uma pequena estrela de cinema, canta para uma plateia familiar doravante ausente. Jane Campion presenteia o espectador com a patética mensagem que um pai infiel outrora ensinou à filha: «Ama-me sempre como no princípio». Perante esta singela paródia de Shirley Temple, nenhuma plateia deseja sentir-se amestrada. A falsa Shirley Temple meneia-se para alto desprazer de quem vê. R. G.


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