REINOS DESENCANTADOS Filmar em Portugal A manutenção de uma produção cinematográfica nacional é, do ponto de vista financeiro, uma aberração: o tamanho do país não permite, em caso nenhum, que um filme se torne rentável, nem sequer que os seus custos possam ser reembolsados. O cinema português está condenado a sobreviver graças ao "maná" do estado. O meio profissional é, à imagem do país, pequeno e fechado, vendo-se pois obrigado a alimentar relações turvas com os poderes estabelecidos. No fim do regime de Caetano, uma geração contestatária conseguiu exercer forte influência sobre as instituições surgidas ou remodeladas no pós 25 de Abril e criou as condições para a existência de um dos cinema mais originais da Europa, na medida em que se trata quase exclusivamente de um cinema de autores. Esses cineastas são ainda hoje os que filmam mais regularmente — além do "caso" Oliveira, Paulo Rocha, João César Monteiro, Fernando Lopes, Alberto Seixas Santos, António Pedro Vasconcelos, José Fonseca e Costa, etc. No entanto, as mudanças políticas dum país que se "normaliza" à sombra do modelo europeu, o abandono duma estética em que a capacidade de invenção compensava a falta de meios financeiros, as querelas internas pessoais, etc. instalam a produção num estado de fragilidade extrema. A dependência face ao poder constitui uma ameaça para uma categoria de criadores que oscilam permanentemente entre o espírito cortesão e o espírito contestatário — pois a moral do poder é sempre de essência aristocrática: aqueles, lembra-nos Alberto Savinio, "para quem o mérito pessoal em nada conta". Acresce que a sétima arte continua a não ser reconhecida pela elite cultural portuguesa — basta constatar a fraca presença dos "estudos cinematográficos" na Universidade — e que a crítica de há muito se demitiu do seu papel, limitando-se a exercer, na maioria das vezes, uma função promocional em favor dos filmes americanos e afins nos momentos em que vão estreando nas salas. Ninguém hoje encararia a hipótese de lutar pelo reconhecimento de um cineasta nacional original — esse reconhecimento, quando ocorre, passa pelo crivo inspirador da crítica estrangeira. A geração dos "anos Gulbenkian" apadrinhou as seguintes, mas nunca deixou afirmar-se mais de dois cineastas por década — João Botelho e João Mário Grilo nos anos oitenta, Pedro Costa e Teresa Villaverde nos anos noventa. As instituições, responsáveis pelas mostras de cinema português no estrangeiros, homologam esses veredictos; por conseguinte, o cinema português é certamente um dos domínios onde haverá que fazer mais reavaliações. O caso de José Álvaro Morais é apenas um entre outros mais (Pêra, Campos, Guedes, etc.), mas é flagrante. Apesar do Leopardo de Ouro em Locarno, a primeira obra de grande fôlego do cineasta praticamente não foi vista e, ao nível da opinião pública nacional, não alcançou o reconhecimento que a sua qualidade e a sua novidade permitiam esperar. O BOBO distingue-se, de facto, pela sua riqueza de construção — a complexidade estrutural das diferentes narrativas entrecruzadas opõe-se à linearidade flutuante das ficções intimistas do cinema português — pela sua mestria lírica — os planos-sequência asseguram o vaivém do símbolo à acção e encadeiam-se segundo uma "montagem de atracções" que só Oliveira parece dominar — para já não falarmos da profundidade da "mise en abyme" — que, através do jogo de paralelismos propõe um "sentido" para o acto de filmar, desempenhando uma função que é tudo menos decorativa. Ora, José Álvaro Morais não foi absolvido do crime de não-acabamento (o filme fora rodade sete anos antes) e deverá esperar mais treze anos até rodar a longa-metragem seguinte. Entretanto, a originalidade de ZÉFIRO terá passado desapercebida... Presentemente, o cineasta juntou-se à ganadaria de Paulo Branco e parece doravante poder filmar regularmente. Na medida em que todas as suas ficções se organizam em torno da temática resistência/desistência, a sua obra também haverá de ser lida como um percurso desencantado.