Feira (reinos desencantados)

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REINOS DESENCANTADOS Filmar em Portugal A manutenção de uma produção cinematográfica nacional é, do ponto de vista financeiro, uma aberração: o tamanho do país não permite, em caso nenhum, que um filme se torne rentável, nem sequer que os seus custos possam ser reembolsados. O cinema português está condenado a sobreviver graças ao "maná" do estado. O meio profissional é, à imagem do país, pequeno e fechado, vendo-se pois obrigado a alimentar relações turvas com os poderes estabelecidos. No fim do regime de Caetano, uma geração contestatária conseguiu exercer forte influência sobre as instituições surgidas ou remodeladas no pós 25 de Abril e criou as condições para a existência de um dos cinema mais originais da Europa, na medida em que se trata quase exclusivamente de um cinema de autores. Esses cineastas são ainda hoje os que filmam mais regularmente — além do "caso" Oliveira, Paulo Rocha, João César Monteiro, Fernando Lopes, Alberto Seixas Santos, António Pedro Vasconcelos, José Fonseca e Costa, etc. No entanto, as mudanças políticas dum país que se "normaliza" à sombra do modelo europeu, o abandono duma estética em que a capacidade de invenção compensava a falta de meios financeiros, as querelas internas pessoais, etc. instalam a produção num estado de fragilidade extrema. A dependência face ao poder constitui uma ameaça para uma categoria de criadores que oscilam permanentemente entre o espírito cortesão e o espírito contestatário — pois a moral do poder é sempre de essência aristocrática: aqueles, lembra-nos Alberto Savinio, "para quem o mérito pessoal em nada conta". Acresce que a sétima arte continua a não ser reconhecida pela elite cultural portuguesa — basta constatar a fraca presença dos "estudos cinematográficos" na Universidade — e que a crítica de há muito se demitiu do seu papel, limitando-se a exercer, na maioria das vezes, uma função promocional em favor dos filmes americanos e afins nos momentos em que vão estreando nas salas. Ninguém hoje encararia a hipótese de lutar pelo reconhecimento de um cineasta nacional original — esse reconhecimento, quando ocorre, passa pelo crivo inspirador da crítica estrangeira. A geração dos "anos Gulbenkian" apadrinhou as seguintes, mas nunca deixou afirmar-se mais de dois cineastas por década — João Botelho e João Mário Grilo nos anos oitenta, Pedro Costa e Teresa Villaverde nos anos noventa. As instituições, responsáveis pelas mostras de cinema português no estrangeiros, homologam esses veredictos; por conseguinte, o cinema português é certamente um dos domínios onde haverá que fazer mais reavaliações. O caso de José Álvaro Morais é apenas um entre outros mais (Pêra, Campos, Guedes, etc.), mas é flagrante. Apesar do Leopardo de Ouro em Locarno, a primeira obra de grande fôlego do cineasta praticamente não foi vista e, ao nível da opinião pública nacional, não alcançou o reconhecimento que a sua qualidade e a sua novidade permitiam esperar. O BOBO distingue-se, de facto, pela sua riqueza de construção — a complexidade estrutural das diferentes narrativas entrecruzadas opõe-se à linearidade flutuante das ficções intimistas do cinema português — pela sua mestria lírica — os planos-sequência asseguram o vaivém do símbolo à acção e encadeiam-se segundo uma "montagem de atracções" que só Oliveira parece dominar — para já não falarmos da profundidade da "mise en abyme" — que, através do jogo de paralelismos propõe um "sentido" para o acto de filmar, desempenhando uma função que é tudo menos decorativa. Ora, José Álvaro Morais não foi absolvido do crime de não-acabamento (o filme fora rodade sete anos antes) e deverá esperar mais treze anos até rodar a longa-metragem seguinte. Entretanto, a originalidade de ZÉFIRO terá passado desapercebida... Presentemente, o cineasta juntou-se à ganadaria de Paulo Branco e parece doravante poder filmar regularmente. Na medida em que todas as suas ficções se organizam em torno da temática resistência/desistência, a sua obra também haverá de ser lida como um percurso desencantado.


CANTIGAMENTE Nº 3 Primeiro filme, que José Álvaro reconhece sem contudo o prezar demasiado, não terá sido obra-prima mas antes primeiro rascunho da obra futura. Filme de encomenda, filme de montagem, submetido aos imperativos de uma série. Convém porventura considerá-lo retrospectivamente, descobrir nele os nós górdios que voltaremos a encontrar nos outros filmes, e constatar a ausência ou o estado embrionário dos laços que farão a originalidade do trabalho do cineasta. A primeira evidência é a abundância (e exuberância) da matéria icónica, dos episódios, das fontes: excertos de filmes, sketches encenados, imagens de arquivo, entrevistas. No entanto, essa matéria está organizada em blocos heterogéneos que se sucedem sem contudo se entrecruzarem — sem constituirem uma partitura musical, mestria de composição que mais tarde José Álvaro Morais viria a adquiri e revelar. O jogo dialéctico do contraponto já está todavia presente: a década de 40 é mostrada em toda a sua frivolidade, por contraste com os acontecimentos mortíferos à escala mundial. A associação "livre" é frequentemente brutal: a evocação do pedido de uma moribunda que desejava ouvir a "Polonaise" de Chopin chama abruptamente as imagens dos campos de concentração. Esta oscilação permanente, entre a leviandade das canções e a gravidade do drama político e belicoso no seio do qual elas se inscrevem, não é arbitrada, nem resolvida pelo filme: as canções são tão-só um indício da História e esta varia conforme o ponto de vista. A famosa "Lili Marlene", pano de fundo da trágica "dança" dos mártires da aviação, filmados em plena espectacularidade de desastre, mostra bem como nenhum discurso, de palavras ou de imagens, poderá alguma vez sustentar racionalmente o paradoxo que faz com que um belo objecto — o avião que nasceu do desejo das asas — tenha sido posto ao serviço da destruição, do aniquilamento do mundo "abstracto", visto de cima como um mapa, mas também da própria carne moça dos soldados. Pois o acontecimento "decisivo" desta década de 40 é a guerra. Portugal escapou ao conflito — o que justifica a ligeireza das comédias lusitanas mas não deixa de realçar o cinismo que lhes é subjacente. Cinismo de base e de cúpula que se encontra bem patente no discurso que Salazar dirige "às massas" no fim das hostilidades. Entretanto, joga-se uma outra guerra, interna, e a parte final do filme está inteiramente virada para a questão do combate na clandestinidade e para a emergência duma estética neo-realista — na pintura e na literatura — que se opõe à fachada bonacheirona, revisteira e triunfalista do regime. Os documentos visuais que a isso se referem têm como cenário sonoro as canções corais de Lopes Graça, cujo tom de apelo não disfarça o profundo desalento que se instalara no espírito de quem ansiava (e lutava) pela mudança. A Segunda Guerra Mundial, do início ao fim de CANTIGAMENTE, aparece sob diversas facetas, desde o horror —campos de concentração e bombardeamentos, num primeiro tempo — à ameaça — bomba atómica na última sequência. O humor é, neste contexto, simultaneamente necessidade e cegueira — como o episódio de Vasco Santana, bêbedo, a conversar com o lampião "arrogante" muito bem parece querer ilustrar. CANTIGAMENTE talvez seja mais típico duma época — os filmes de montagem, documentais, floresceram no pós 25 de Abril, com a compreensível necessidade de revisitar a História desfigurada pelo discurso oficial do regime derrubado — do que de um autor. No entanto, certas marcas pessoais, tanto no plano temático como a nível formal, fazem deste trabalho um primeiro laboratório de experiências. A concepção do plano-sequência — reconstituição da gravação do folhetim radiofónico "Amor de perdição"; encenação numa longa panorâmica de um episódio do romance "Esteiros" de Soeiro Pereira


Gomes — enquanto unidade de passagem da esfera do anedótico — "bruitage' no primeiro, conversa das lavadeiras no segundo — a um extracto mais profundo — a ambivalência do profissionalismo dos actores, no primeiro — ou à dimensão simbólica — fuga e morte no segundo. O enquadramento é talvez um tanto largo, um tanto frouxo, não possuindo ainda a densidade dos que O BOBO nos oferecerá... Por outro lado, o facto de deixar um longo tempo de palavra (e expressão) aos entrevistados, permite que se vá além da irrisão da sua consciência limitada e que transpareça o seu empenhamento na vida. O cineasta dá provas de uma sensibilidade aguda à fibra vital, pronta a vibrar em cada ser mal se acham reunidas as condições de escuta, de eco. Pois a temática central da obra de José Álvaro Morais, a saber a sobrevivência à ruína das ilusões, faz a sua aparição neste filme heteróclito. A guerra, militar ou social, engendra dialecticamente as resistências, conscientes ou frívolas. Dramáticas — por oposição ao trágico da História — porque humanas. MA FEMME CHAMADA BICHO O título representa por si só um programa complexo: 1) ma dá-nos o ponto de vista, o de Arpad, que o cineasta adopta, adapta. 2) femme previne-nos de que o filme não é um "institucional" clássico, de que Vieira da Silva é visitada como pessoa, e não apenas como pintora, de que a pintura fornecerá tão-só indícios, um campo, para uma pesquisa mais essencial. 3) chamada, particípio passado, remete para a intervenção dos outros: o filme confrontará olhares, discursos sobre Vieira. A abordagem directa parece impossível.A imagem é o objecto interrogado. 4) bicho é um termo que simultaneamente exprime afecto mas também traduz uma certa "selvajaria", a ligação a um mundo alheio ao humano, ou pelo menos não socializado, que nos é fechado e se encarnará na criatura do gato que Vieira afaga no fim do filme. Além disso, a utilização das duas línguas não é inocente: por um lado, o francês, a língua "franca", de comunicação; por outro, a língua "materna", do íntimo. MA FEMME CHAMADA BICHO, segundo filme sobre o casal Vieira/Arpad — o primeiro fora realizado por Carlos Scliar em 1943, no Brasil — é um filme de encomenda centrado sobre a famosa pintora da Escola de Paris. Ora, bem feitas as contas, o cineasta mostra-nos relativamente pouca pintura — e, ainda assim, mais trabalhos de Arpad do que de Vieira. O cineasta mostra-nos lugares, lugares de inspiração ou de habitação — lugares transfigurados nas cores e nas linhas das telas — e neles partimos em busca de uma personagem, que assombra esses espaços, personagem que só aparece fisicamente ao vigésimo quarto minuto. O filme apresenta-se pois como uma procura, uma aproximação, uma interrogação do visível, isto é do enquadramento. Vieira é um enigma. Arpad, apaixonado, diz-nos o seu fascínio, a sua osmose, mas não pode revelar-nos a chave dum mistério que ele próprio partilhou durante toda uma vida, sem jamais o deslindar. Arpad avisa-nos da distância que separa pintar de dizer. Outros o revezam no papel do dizer, todos os que escreveram sobre Vieira e se tornaram autoridades na matéria, mas que não nos ajudam a aprofundar o segredo — entre Dora Vallier que confunde Lisboa com o Porto, Jean-François Jaeger que, ao falar de "fidelidade ao seu público" transforma a pintora numa espécie de artista de music hall (a linguagem do show business contamina a do "marchand"), Sophia que parece declamar alto para se ouvir ou Agustina que admite a possibilidade de se ter enganado, ela a adivinhadora, na sua interpretação do imaginário da pintora. A verdade é que, para além de privelegiar o seu ponto de vista, o filme reconstitui mais pormenorizadamente o percurso de Arpad do que o de Vieira: o segredo da pintura mora na própria pintura; Arpad viu e pintou a pintora a pintar. O cineasta, por sua vez, tenta criar esse efeito de mise en abyme; porém, Vieira não consegue pintar perante a câmara.


Aproximação falhada, portanto. Filme sobre a impenetrabilidade da esfera íntima, sobre a resistência à agressão exterior — e, a esse título, é extraordinário o plano em que Vieira, iluminada por baixo, conta que, à sua chegada à "Mareschalerie", o castelo onde ia habitar a esmagava e que fora obrigada a vencer a força rugosa e elementar das pedras e das traves para poder continuar a pintar. E a seguir, de repente, surge a visão dum ser oriundo das lendas primitivas, fantasma, bruxa e pintura ao mesmo tempo: Vieira maquilhada de azul — negativo revelador de uma verdade visível mas indizível. Vieira pintada funde-se no universo da pintura. Primeira longa-metragem de José Álvaro Morais, nele encontramos, em estado embrionário, as estruturas que sustentarão as suas obras posteriores: a) A bipolarização: todo o início do filme assenta numa montagem de vistas das cidades de Paris e de Lisboa. Paris, local do encontro e da junção entre o Norte e o Sul, Lisboa, lugar da luz e da raiz — Mário Cesariny e Arpad verbalizam sucessivamente esta grande oposição, com cuja impossível fusão nos deparamos tanto nas telas de Szenes como nas de Vieira. Tal montagem paralela parece, à primeira vista, procurar semelhanças: a água e os barcos, as escadas e os prédios, as pontes e os vagões do metro ou os eléctricos. Ora, as aproximações denunciam precisamente as diferenças: o leito estreito do Sena versus a vastidão quase oceânica do Tejo, os bateaux-mouches parisienses versus os navios de carga, a geometria previsível dos prédios versus o amontoado do casario, a velocidade do metro versus a pachorrenta lentidão do funicular... Só a montagem materializa as aproximações, tal como só o pincel de Vieira reúne, na tela, a ordem geométrica e a heterogeneidade objectal. b) O caos íntimo: a excepcional felicidade conjugal que emana das palavras de Arpad e de Vieira é apenas uma das facetas de uma relação em que a partilha passa por necessidades de solidão — cada um tem o seu atelier separado. À consciência de um movimento da "modernidade", em Vieira, contrapõe-se uma visão mais "elementar" de Arpad. As duas concepções cruzam-se e fundem-se nas telas figurativas do quotidiano, mas a pesquisa pessoal impede que se confundam. O olhar apenas percepciona aquilo que inventa. Arpad inventa Vieira que a essa invenção se presta. Porém, a objectiva é sentida como intrusa e Vieira, que frequentemente pintou no meio de estudantes ou de amigos, sente-se incomodada, paralisada pela câmara. No centro deste filme, como dos seguintes de José Álvaro, encontramos o indizível, o infilmável do coração e da cabeça. c) O papel da teatralização: a maquilhagem final de Vieira funciona como revelador poético, à imagem do que acontece com a peça adaptada de Herculano no enredo do BOBO ou com o diálogo de Lorca no PEIXE LUA. A chave é pois de natureza poética, encerrando em si a evidência da visibilidade e o hermetismo do irracional. O BOBO Não se deve hesitar, a propósito do BOBO, em falar de obra-prima. A complexidade estrutural do filme — parente da arquitectura dos grandes romances da modernidade, de Proust a Butor —, que bastaria para colocar a obra em lugar de destaque no seio da produção nacional e até dentro da cinematografia narrativa dominante — não chega contudo a constituir um critério de qualidade válido. É porque, a despeito do emaranhado dos fios condutores, a trama observa uma linha contínua, que O BOBO se revela um projecto conseguido e ímpar: cada sequência doba a meada onde se insere, mas ilumina também o desenho da urdidura, o que faz com que a montagem por alternância nunca signifique ruptura — como acontece com as sequências mais famosas de montagem paralela, de OUTUBRO ao PADRINHO. Além disso, os enquadramentos largos anulam a opacidade psicológica das personagens, sistematicamente filmadas numa relação no mínimo dual com os outros, e criam uma "distanciação" que norteia a leitura do filme a um nível abstracto do qual as imagens são tão-só ilustração simbólica; esta


dupla leitura, constante, assenta simultaneamente na evidência poética das imagens e na composição arquetípica. Composição e montagem, eis o segredo da arte de José Álvaro Morais — cujos frutos voltaremos a identificar no ZÉFIRO e no PEIXE-LUA. Atentemos nos primeiros planos do filme, em cima dos quais corre o genérico, planos necessários e suficientes para alicerçar e instalar a estrutura: 1 - A lua velada de nuvens — pontuação temporal e símbolo dramático; 2 - A aparição do anjo no sótão — chave quanto à relação João/Francisco, com a sua carga de ambivalência: será que o anjo traz a graça ou o castigo? Recordação de infância e primeira ocorrência do tema do disfarce e da representação; 3 - O carregamento do corpo de João para dentro da ambulância e a partida dos carros — nó do drama: a morte no princípio e no fim; primeira visita ao estúdio, lugar em si duplo (interior onde circulam carros), lugar de resolução violenta do drama afectivo e político (presença dos polícias, detenção de Francisco); 4 - A taberna onde só vemos entrar marinheiros, enquanto a conversa de Rita e Francisco, fora de campo, adquire o seu estatuto de voz off; 5 - Com a transição assegurada pela personagem do marinheiro, corrida de Rita, a preto e branco, no Padrão dos Descobrimentos; primeira mise en abîme com um duplo estatuto: reflexo caricatural, tanto do filme como da situação de Rita, que quer ficar quando o seu amante quer — aqui é obrigado a — partir, e também contraponto, pois este mesmo episódio introduz o flash-back que constitui o enredo do filme — os acontecimentos que decorrem na última semana que antecede a estreia da peça teatral homónima, antes da morte de João — flash-back que começa justamente com a partida de Rita. As peças do puzzle são colocadas na mesa, mal a imagem passa, a cores, para rodagem desta mesma corrida, e todas as personagens se integram numa continuidade cronológica: Rita filma enquanto Francisco dirige os ensaios; a polícia vigia-os e faz a ponte entre os vários espaços. As personagens são os nós onde se cruzam os diferentes fios narrativos: Francisco (Fernando Heitor) é ao mesmo tempo: a) o marido de Rita, numa relação conjugal difícil em que, apesar do amor que os liga, ele não consegue reter a companheira; b) o amigo de João, a quem está ligado desde a mais tenra infância, numa relação perturbada e desigual mas que ele não pode pôr em causa — tanto assim é que se vê obrigado a não aceder ao pedido de Rita no sentido de o expulsar de casa — embora não o possa ajudar — João será assassinado durante um ensaio; c) o encenador da peça adaptada de um romance de Alexandre Herculano, forçado a gerir os conflitos, pessoais e de grupo, que põem em risco a representação; d) o actor que interpreta a personagem do Bobo e o narrador da peça, ora de fraque, ora com fato de guizos, ora comentador/leitor do texto de Herculano, ora protagonista do enredo a trocar palavras com os outros; e) o narrador do filme que evoca a evolução dos acontecimentos em flash-back, bem como os seus sentimentos no decorrer daquela fatídica semana; f) o menino de boas famílias que tem de prestar contas à mãe, à governanta, etc. Por seu lado, Rita (Paula Guedes) é: a) a mulher de Francisco, a viver em casa da sogra e farta dessa situação; b) a actriz do filme "rétro" sobre a guerra colonial; c) a actriz que se recusa a entrar no elenco da peça montada por Francisco, em relação de rivalidade com as actrizes que trabalham sob a direcção do marido; d) a interlocutora do narrador — off quase até ao fim do filme — que lhe responde e preenche, fornecendo pormenores, certas lacunas do relato e algumas perguntas a pairar; e) a filha de "João de Portugal" — interpretado por João Guedes, seu pai na vida real —, actor na peça e pólo de um dos triângulos amorosos do filme (ele ama Jorge, que ama João...) etc. João (Luís Lucas) é: a) o amigo de infância de Francisco; b) o amigo de Andy, que ele talvez tenha matado — são as fotografias de João no quarto, com as paredes salpicadas de sangue, que dão azo à chantagem de Jorge; c) o receptador das armas que pretende vender — o que subentende um passado


revolucionário activista e, ao mesmo tempo, a posição de traidor ideológico; d) o objecto do desejo/ódio e da chantagem de Jorge; e) a testemunha de um rito de iniciação, primitivo e selvagem, numa ilha do Mediterrâneo, etc. Nesta trama vai-se inscrever um segundo dispositivo diegético que justifica o título do filme e decorre da adaptação teatral do romance de Herculano. O BOBO coloca a problemática — a fundação de um novo estado, com um paralelismo evidente entre a luta pela independência de um reino nascente e a necessidade, depois do 25 de Abril, de conceber uma república democrática, liberta do regime salazarista — e configura a estrutura ambivalente das relações entre as personagens — que assenta na traição aparente: Egas parece trair o seu juramento a Dulce, pois na véspera da expiração do prazo ainda não deu notícias suas; Dulce parece trair o seu, ao aceitar um casamento, não consumado, com D.Duarte, quando só se trata de salvar Egas; D.Duarte parece trair as regras de cortesia da nobreza, prestando-se ao jogo do Conde de Trava, embora só o faça para proteger Dulce; a própria Rainha recusa o reino a D.Afonso Henriques apenas para preservar o valor da conquista — e, se o Conde de Trava faz figura de vilão, é por ser o único a agir sem segundas intenções. Este tema, constantemente glosado, das falsas aparências contamina a outra narrativa e impede que o único mistério do enredo venha a ser resolvido: qual a razão pela qual João quer vender as armas? Mas o paralelismo não pára aqui: Jorge só mata João por necessidadede fornecer um traidor — aos olhos dos traficantes apenas João ou Jorge podiam trair — enquanto o espectador sabe que a detenção ocorre porque o polícia, dissimulado na teia, ouviu a última conversa na qual foram fixadas as disposições da venda e marcado o encontro. O tema da traição, afectiva ou ideológica, está no coração da intriga: não responder a uma solicitação, de amor ou de cumplicidade, é algo por cada um percebido como uma traição. Last but not least, entre o enredo de Herculano e a intriga do filme estabelece-se um outro elo, na medida em que Francisco desempenha o mesmo papel de "bobo" na peça e fora dela. Mesmo papel psicológico: aquele que, com os riscos que isso comporta, diz o que pensa ao "vilão" — o Conde de Trava ou a polícia —, sem necessariamente compreender os motivos das acções das personagens — não consegue evitar o malentendido entre Dulce e Egas, o mesmo acontecendo com João e Rita, Jorge e João, etc. Mesmo papel estrutural, com o mesmo duplo estatuto de narrador off e de interveniente in, de comentador e de protagonista. Confidente da Rainha, no primeiro caso, sabe da necessidade duma acção violenta para que se cumpra a independência e a formação de um novo estado; cúmplice de João, no segundo, admite a necessidade do abandono da violência no contexto de Portugal pós-revolucionário — mas a esse abandono corresponde o do próprio país. Paralelismo e contraponto, identidade e inversão mais uma vez. A encenação da peça é simultaneamente fiel ao texto de Herculano e, de maneira assumida, kitsch — próxima da estética da adaptação de PERCEVAL por Rohmer, ou da sua cópia em Portugal, SILVESTRE de João César Monteiro, enquanto as armas no apartamento, a sequência de Francisco e Rita na cama, não deixam de lembrar PIERROT LE FOU ou a discussão conjugal em LE MÉPRIS de Godard. Todavia, o filme nem vem a ser godardiano, nem rohmeriano: a peça é filmada com movimentos de aparelho e mudanças de décor extremamente líricas e absolutamente "anti-teatrais", recorrendo o cineasta a maquettes e a uma ocupação do espaço não-frontal (por exemplo, a passagem do interior para o exterior da tenda de D.Afonso Henriques, com um verdadeiro cavalo em cena). Por outro lado, o cineasta não hesita em recorrer à figura "tabu" do campo-contracampo — tanto nas cenas de confronto como nas de escuta (a polícia a espiar João; Rita a ouvir, ao despertar, a conversa de João e Francisco, etc.). A voz off, que rectifica, explica, sem se dirigir a nenhum interlocutor visível, justificase, em última instância, pela existência de um espectador-juiz. Acresce que, para além dum papel lírico-simbólico — na maneira de filmar a "peça" — e de um, mais tradicional, de narração-testemunho, o cinema intervém en abyme, de dois outros modos, com duas outras funções: o cinema-memória, através da inclusão do diário de bordo filmado de uma viagem à


Grécia —com o seu estatuto de trauma original — e o rito de iniciação dos jovens pescadores, que não nos é mostrado, mas que consagrará a separação de João e Andy (o primeiro participa, enquanto o segundo, doente, fica no barco); o cinema-interpretação, através do filme que Rita está a rodar, filme esse onde se misturam cenários pintados —estética teatral — e cenários reais com movimentos de aparelho — travelling lateral de acompanhamento da corrida de Rita no Padrão dos Descobrimentos, travelling circular quando ela chora no ombro do pai — estética lírica — e onde se misturam também uma situação realista com uma linguagem banal — a partida para a guerra colonial do noivo, estética naturalista — pervertidas pela versificação — estética da irrisão, na tradição revisteira. Caracterizado pela hibridez e por uma visualidade "rétro", a fita dentro da fita funciona como negativo do filme de José Álvaro... Todas as tramas assim tecidas mantêm entre si relações de paralelismo e de inversão. Todas são simultaneamente simbólicas de uma situação de actualidade que não precisa de ser especificada — o pós 25 de Abril — e de uma situação arquetípica — edipiana: o pai de Francisco suicidou-se enquanto este esperava João no sótão (João representa sempre a culpa recalcada); mas Afonso Henriques também não tem pai e, por outro lado, sabe-se que a "morte do pai" ilustrou, no plano alegórico, a aspiração à mudança de regime na cinematografia portuguesa (recordemos BRANDOS COSTUMES de Alberto Seixas Santos, mas o próprio BENILDE é uma interrogação acerca do aparecimento de uma criança sem genitor). Ao cabo da longa noite de rememoração — o flash-back é, ao mesmo tempo, reconstituição (sonho em estado de vigília) e balanço —, que confirma o abandono tanto dos projectos de revolução, aos quais a morte de João veio pôr um ponto final, como dos projectos de fuga de Francisco, e formaliza a reconciliação do casal, rompe uma desencantada aurora. O tema da viagem assombrou todo o filme — viagem inicial e iniciática à Grécia; viagem irrisória e quotidiana de comboio, que pontua as sequências e separa os locais do drama, entre os estúdios da Tóbis e a vivenda de Cascais. Essa viagem "abortada" surge em todos as obras de José Álvaro Morais e adquire uma importância crescente — antítese ou exorcismo do lusitano exílio interior. A mestria de José Álvaro reside na capacidade de gerir a multiplicidade das referências — históricas, estéticas, etc. — convocadas e homogeneizadas no objecto-filme graças ao jogo dos paralelismos. Porque a complexidade aparente da estrutura oculta a sua função aglutinadora dos diversos níveis — de narração como de leitura — e o contante trabalho de eco — entre o nascer do sol sobre tela no fim da "peça" e o romper da aurora sobre o Tejo, por exemplo — que ela engendra. E, a propósito de "aurora", não resistimos à tentação de recordar a famosa descrição que Giraudoux dela nos oferece no final da sua ELECTRA : "quando o dia nasce, como hoje, e tudo está estragado, tudo está devastado, e o ar no entanto se respira, e perdemos tudo, a cidade arde, os inocentes matam-se uns aos outros, mas os culpados agonizam num canto onde o dia desponta". O BOBO consegue o tour de force de reconciliar a estrutura fragmentada do romanesco moderno com a densidade linear do épico, ou mesmo do trágico, da tradição clássica. ZÉFIRO ZÉFIRO apresenta-se como uma viragem na obra de José Álvaro Morais; após o corte que separa a rodagem do BOBO do seu acabamento, após um segundo corte com a aventura infrutífera da CORTE DO NORTE, o cineasta tinha que filmar ou desaparecer. ZÉFIRO surge duma encomenda subordinada ao tema do percurso — trata-se, na origem, dum episódio destinado a uma série televisiva europeia —, desafio suficientemente maleável para permitir a realização de um verdadeiro filme de autor.


Estamos, mais uma vez, perante um vaivém, um fluxo e um refluxo do qual acompanharemos apenas uma parte, sabendo que a outra existe e que o percurso é simultaneamente mostrado e anulado. O achado de José Álvaro Morais consiste em sobrepor, montando-os em paralelo, dois movimentos: o primeiro de natureza ficcional e da ordem do pretexto — a fuga dum assassino cujo crime se vem a revelar fantasmático —, ilustra o segundo, científico, discursivo, — o contributo civilizacional dos árabes na península ibérica e a marcha da História —, sendo que ambos se contaminam e pervertem. O primeiro é mudo, frágil, assente em sinais dramáticos convencionais: o olhar esgazeado de Marcello Urgeghe, a corrida, o esconderijo. O segundo é complexo, abstracto, e só pode apoiar-se em indícios indirectos: mapa em relevo, monumentos e ruínas. Ora, a evidência e a imediatez visual do primeiro fazem passar a abstracão conceptual do segundo que se constrói a partir de paradoxos: Lisboa é uma cidade do Sul, situada além da fronteira setentrional desse espaço mítico — o Tejo —, como os "judeus" são os árabes assimilados pelos "nordistas" cristãos. Esta contradição interna, em que cada elemento (objecto, monumento, rito, conceito) transporta os rastos dum passado antitético — o Mediterrâneo no Atlântico, o paganismo no monoteísmo, o Islão a mercar dentro do Cristianismo militar, a sinagoga nos alicerces da capela, etc. — constitui a originalidade do tal Sul mental, ao mesmo tempo memória e desejo. Assim, o percurso da fuga — a do assassino e a do cavaleiro mouro — também é uma estrada de comércio e o território da reconquista, prelúdio da expansão e das Descobertas quinhentistas... As imagens (relevos, monumentos, paisagens) vão radicar este trajecto conceptual numa realidade visível em que os vários tempos históricos se cruzam. E a arte de José Álvaro Morais consegue condensar num punhado de planos cada etapa desse paradoxal percurso mental. São convocados episódios arquetípicos — o camponês detido pelas força policiais — , figuras marcantes da banda desenhada — Corto Maltese —, referências cinematográficas — a dança do marinheiro no cacilheiro — recordações de infância corrigidas pela revisitação simbolista — o barqueiro —, quadros dum fantasmático levantamento antropológico — os cantadores das polifonias alentejanas —, etc. que pontuam os dois percursos principais — encarnados por Marcello Urgeghe e Luís Miguel Cintra — sem outra justificação que não a coerência poética da sua presença. A arte de José Álvaro Morais é uma arte da montagem, que permite passar de uma lua "real" para uma lua pintada, de um movimento de descida a uma panorâmica sobre um mapa, da evocação de uma conquista militar a um plano sobre um carro de polícia. ZÉFIRO, tanto quanto vento do sul, é o vento da História que dispersou as cinzas de S.Vicente e as fez viajar até à ponta que de seu nome é chamada, antes de as trazer de volta à cidade que, embora tenha em suas armas os corvos do santo, na verdade o esqueceu e o substituiu por outro padroeiro: Santo António (cuja evocação já rematava CANTIGAMENTE)... O nó das raizes é cego, inextricável. A identidade, a fixação, não passam duma soma de percursos e de cruzamentos. No entanto, à amargura decorrente da constatação de que a sobrevivência exige o massacre das ilusões (que pairava no BOBO), sucede a afirmação de que adaptação, enquanto valor vital, não exclui o vestígio — fragmentário, indicial, simbólico — dos sonhos e dos mitos devorados pela História. Pois a História é apenas o relato do mais recente vencedor. Pouco interessado pela determinação de quem será o último a rir — e a vencer — José Álvaro recolhe e reinventa as imagens daqueles que se esconderam, que perderam mas lutaram, pelos sonhos de quem o futuro é moldado. No fim de contas, a vítima do crime inicial reaparece viva no desenlace; quando a cena volta a ser representada, o narrador sábio sai do seu espaço para intervir no outro percurso e impede a história de se repetir... ZÉFIRO, média-metragem documental, contém tantas ficções encenadas como O BOBO, sem o pretexto da mise en abyme — o teatro dentro do cinema (do filme) à maneira de Rivette. A riqueza desta "obra de encomenda" é um viveiro, uma fonte onde o trabalho posterior irá beber, acentuando-se alguns dos meandros temáticos: o Sul, em PEIXE LUA. Porém durante esse tempo fértil que foi o de um reencontro com o cinema, ao desencantamento causado pela perda das ilusões sobrepôs-se o puro júbilo dos sonhos ressuscitados. Na esfera onde o ser e o parecer das coisas se reconciliam.


PEIXE-LUA José Álvaro fez questão de inscrever PEIXE-LUA na continuidade dos filmes anteriores. Por um lado, o barco, prenda de noivado de Maria João, chama-se "Zéfiro" e Maria João tem um poster de Corto Maltese pendurado no quarto; Zé Maria retoma em Córdova a exposição histórica, encetada em ZÉFIRO... Por outro, o filme abre com uma aurora na cidade de Lisboa, imagem de fecho do BOBO e de abertura de MA FEMME CHAMADA BICHO. No entanto, a estrutura do filme nada tem a ver com a dos outros: os dilemas, apresentados na primeira cena, que afectam a vida de cada um dos protagonistas — preservação de uma liberdade transgressiva e feita de digressões ou fixação ditada pelo casamento, para Maria João; difícil destrinça entre as ligações sentimentais e as relações económicas com a família Calheiros, para Gabriel — resolver-se-ão provisoriamente na cena final. A narrativa é relativamente linear e respeitadora da cronologia, entre a sequência de abertura e a do desenlace, na medida em que a constante introdução de acontecimentos em flash-back não lança novos enredos, antes explicita, graças ao retorno ao passado, as dilacerações, contradições, paradoxos e incertezas do presente relacionamento entre as personagens. Estrutura bastante mais "clássica", sob a aparente descontinuidade das cenas. A complexidade em PEIXE LUA não reside na arquitectura em si, mas sim na densidade e multiplicidade dos pólos de atracção sentimentais: no tempo diegético de uma semana (como no BOBO), Maria João rompe com o amante, reata amores com Gabriel e acaba por casar com José Fernando, enquanto Gabriel recorre aos serviços de duas prostitutas, faz amor com um cigano de Córdova e com Maria João, embora se venha a perceber que, de facto, está apaixonado por Zé Maria — o episódio com Afonso, o terceiro irmão, pertence às reminiscências do passado. O filme descreve um percurso plural, entre a margem Sul do Tejo — que separa o pequeno burgo da cidade de Lisboa — e Córdova (ida e volta para algumas personagens, regresso para Zé Maria), no decorrer do qual as relações, em situação de total desequilíbrio no início, se vão restaurar e atingir uma estabilidade (precária) no fim. Convém examiná-las uma por uma, tentando avaliar o peso de renúncia e a carga de aquisição que esse trajecto representa para cada personagem. Porque toda a subtileza de PEIXE LUA se deve ao desenho das diferenças de sentido desse mesmo percurso, consoante estamos a falar do ponto de vista desta ou daquela personagem: Gabriel ganhará a casa — e seu restauro — e poderá assim reaver uma parte do património que João Calheiros usurpara a seu pai. Ao consegui-lo, romperá, de algum modo, a associação, em pé de desigualdade é certo, com João Calheiros, mas reatará, em posição de cumplicidade amorosa, a ligação com o herdeiro Zé Maria. A promoção social proibida, que passaria pela legitimação da sua relação com Maria João, é substituída por uma legitimação contratual que o eleva ao estatuto de proprietário — tãosó da casa. A manter-se a sua ambivalência sexual, o seu "caso" com a arquitecta Marina parece ser definitivamente mera obra de fachada, já que Gabriel se despede, com um significativo beijo de adeus, da figura feminina do desejo: Maria João, casada de fresco. Maria João abandona rebeldia e liberdade, recebendo — como seu irmão Afonso, uns anos antes — o prémio da maior "putada" do ano, prémio que recompensa, em vésperas de matrimónio, o "bom" uso da liberdade aristocrática, apresentando-se como uma espécie de dote, mas sancionando, de facto, a renúncia e o comportamento conformista. Zé Maria abandona a fuga/exílio em Espanha, retoma o seu lugar de filho mais velho e de herdeiro, de gestor da quinta. Reata, já noutro pé, os seus amores com Gabriel.


Rafael abandona a sua carreira de toureiro e os riscos que ela comporta. A mãe talhante recupera seus dois filhos — Gabriel dança com ela, em sinal de reconciliação. Após uma louca semana de hesitação, as decisões são tomadas. Após uma juventude de transgressões, a ordem é restabelecida. Constatação algo desiludida — mas fascinada — da falta de consistência da revolta juvenil no meio abastado dos Calheiros. A transgressão não passa, num universo burguês e calculista, duma veleidade de aristocracia — o Tio Nini tem disso perfeita consciência. "Road movie" que retoma o tema da partida abortada, mas desta feita sob a forma do abandono voluntário dos turvos sonhos de emancipação — explicitando, de algum modo, o mistério da mudança de João no BOBO —, PEIXE LUA encena uma deambulação errática, mais do que uma partida — o barco "Zéfiro" começa por flutuar num oceano de cereais — onde se inscreve o regresso. A desistência assombra para sempre as personagens — lembremos, a este título, o movimento acrobático da câmara que passa de Rafael, e seu gesto irrisório de oferta do cartaz da sua derradeira corrida a uma criança, a Gabriel, na postura de treinar, frente ao espelho, as figuras dum desporto que ele próprio já de há muito abandonou. Maria João estabelece o elo entre os dois pólos, Gabriel — que ela vem arrancar ao sono no início do filme, que ela leva, adormecido, para Espanha, e que ela deixa em Sanlucar, depois de se lhe ter oferecido no barco, significativamente fora do meio aquático — e Zé Maria — que ela arranca ao exílio andaluz, convencendo-o a acompanhá-los e a quem ela trouxe Gabriel, em jeito de oferenda. Este "chassé-croisé" de sentimentos que se viram ao avesso encontra-se verbalizado no diálogo da peça O PÚBLICO, de Garcia Lorca, que surge cinco vezes ao longo do filme cujo título dele se inspira. O diálogo de Lorca enuncia, no modo poético, a relação de amor e de poder que liga duas personagens, através duma série de metamorfoses virtuais, na qual o assédio passa por várias fases de agressão e abandono, jogo de sedução dos sentidos cuja parada é a exigência de uma impossível definição sexual: "ser um homem". O primeiro diálogo aparece como um simples flash-back — Gabriel e Zé Maria, adolescentes, teriam representado, sob a direcção do excêntrico tio Nini, aquela obra de Lorca — no momento do reencontro em Córdova. A segunda emergência já não deixa qualquer dúvida quanto ao valor metafórico do diálogo. A terceira e quarta ocorrências, em que as personagens aparecem trajadas com um guarda-roupa "teatral", criam um espaço superior da representação, onde se mima e se verbaliza o indizível e o inconfessável das vivências. A última aparição da mesma contracena — em grandes planos — apresenta-se como uma rememoração do texto de Lorca, que os dois amigos projectam mentalmente quando se cruzam na casa de banho, durante o casamento de Maria João. Os outros troços de flash-back do filme referem-se à figura do tio Nini e à dilaceração que ele representa — entre dois sistemas de valores, duas formas de educação, dois modos de sexualidade —, exceptuando a visão, duas vivenciada por Gabriel, da bofetada infligida a Maria João na esquadra — parêntese dentro do qual cabe toda a história da rebelde, desde o anúncio da ruptura do casamento (a transgressão) até ao "beijo à noiva" (a acomodação à ordem social), exceptuando ainda um diálogo no cais em que Zé Maria propõe a Gabriel que com ele parta e este último a isso se recusa — o regresso de Zé Maria cicatriza a ferida dessa separação. Enquanto O BOBO mostrava relações em planos largos, PEIXE LUA tenta evidenciar, em grande plano, sentimentos que nenhum dos protagonistas consegue propriamente exprimir ou dominar claramente. À dilaceração ideológica sucede a do desejo que esquarteja a alma das personagens. Duma estética da "mise-en-scène", José Álvaro Morais passou para uma estética da "performance" — Beatriz Batarda é extraordinária, na sua encarnação frenética da maria-rapaz; Francisco Rabal, simultaneamente montruoso e terno como um velho príncipe-sapo, domina com um só mover de pestanas o elenco habitual de José Álvaro Morais: Paula Guedes, Fernando Heitor, Marcello Urgeghe... Depois da "descoberta" do Sul em ZÉFIRO, o cineasta inventa, a partir dos elementos da representação convencional do Ribatejo — manadas de touros, corridas, cavalos, planície, ciganos, etc. (sem hiato


aparente com a Espanha andaluza sua irmã) — um Sul mental (mas não prosaicamente marialva), caracterizado pela contradição entre o desejo inefável e a crueza carnal — emblemática deste binómio, a personagem da talhante que deu nomes de anjos aos seus filhos... O pai está ausente ou desvalorizado, a mãe merece estar morta e ser tão-só fotografia, a ordem e a lógica da transmissão da propriedade têm que ser restabelecidas após um difícil percurso de auto-mortificação dos filhos entregues a si próprios e em posse duma liberdade com a qual não sabem que fazer, porque lhes faltam os pólos de referência: o Sul é a direcção que não magnetiza a bússola. PEIXE LUA é assim um cruel enterro da mocidade e do celibato: José Álvaro Morais parece simultaneamente fascinado pela vitalidade da juventude, promissora de rupturas (ou até de revoluções), e profundamente desconfiado da sua real vontade de resistir à pressão do conforto ou da herança. É na juventude que assenta, no fim de contas, a reprodução da ordem instituída. QUARESMA Se no seu último filme, José Álvaro Morais parece mudar de rumo e virar-se decididamente para o outro pólo — o Norte — , a estrutura e as temáticas mantêm-se e, ao se aprofundarem, inflectem: trata-se ainda de luto, passa-se mais uma vez do luto à renúncia, o cineasta analisa de novo o duro processo de normalização. O "Norte" de QUARESMA começa por ser uma luz fria e sombria que atenua as tonalidades demasiado vivas; a esta luz corresponde uma estética de contenção, de rigor, em todos os sentidos da palavra, inclusive os mais temíveis: já não há movimentos de câmara barrocos, a montagem já não multiplica os paralelismos, a austeridade impera. O despojamento realça o drama. O luto de O BOBO era o das ilusões revolucionárias, o de PEIXE-LUA dizia respeito às ilusões de liberdade e às estroinices juvenis duma jovem herdeira, em QUARESMA o objecto de nojo é o próprio desejo e as perturbações que, na sua essência, ele encerra. Ora, conquanto o pessimismo de José Álvaro Morais se acentue, a um outro nível o sentido desses nojos alterou-se: o luto é memória, impossibilidade de apagar ou esquecer tanto o melhor como o pior e, sem deixar de ser doloroso, revela-se positivo. Mudando de rumo, o cineasta aproxima-se do mais íntimo: foi filmar à Covilhã, na casa em ruínas de seus antepassados e encenou o funeral de seu avô. O íntimo urde-se na trama dum passado obscuro em que o mítico (os Templários) e o vergonhoso (as relações familiares com o ditador Salazar) se entrecruzam. As qualidades de QUARESMA sobressaem por comparação com PEIXE-LUA de que o primeiro constitui uma espécie de reverso: David ocupa uma posição semelhente à de Gabriel, ligada ao clã sem lhe pertencer propriamente (o parentesco de "primo" é mais neutra do que a de filho do encarregado); Beatriz Batarda de certa maneira desempenha, desta vez num registo doentio mas com igual brilho, o mesmo papel nos dois filmes, embora a adopção dum ponto de vista fixo — o de David — realce o seu lado patético e, ao mesmo tempo, ameaçador. O papel do marido é talvez o menos claro — o realizador fala de amor louco a propósito duma personagem cujos cálculos e cuja duplicidade/dureza em matéria de negócios não parecem com esse sentimento. A esposa apresenta-se mais propriamente como a sua "fraqueza". Por fim, as características do tio Nini (o monstruoso e o ambíguo) encontram-se aqui desdobrados em duas figuras, o anão e o invertido, cuja presença ganha em mistério — quem mata o segundo, única testetemunha do "pecado" de David e sua prima? — aquilo que a secundarização lhe rouba em fascínio. A força de Quaresma reside, em boa verdade, na amplificação do não-dito — entre as personagens — , do não-explicado — ao espectador. A sombra de Hitchcock domina todo o filme — o cano de espingarda emergindo do tronco de árvore, a cena da boneca rebolando nas escadas que levam à praia — mas não há justificação (não há Mac Guffin); o suspense manifesta-se pois com toda a pujança da ameaça projectiva e fantasmática — o desejo é "desvio" e "loucura".


O vento assombra as encostas da Covilhã onde David vai reencontrar o passado. O vento é agente, tanto de erosão — do passado — como de exacerbação — do desejo. O Norte do filme — a Dinamarca — onde David vai estudar a utilização das eolianas a fim de obter "energias novas", não-poluentes surge, no plano simbólico, como uma escolha assumida duma outra função desse vento cuja acção escapa ao domínio dos homens. A fatalidade da normalização não se combate com ilusões, por muito dramáticas e exaltantes que elas sejam. Abandonando a pacotilha dum Sul inventado, José Álvaro Morais parece evoluir para uma postura de serenidade, ou pelo menos para a plenitude da maturidade. Sem renunciar à inquietação ontológica que o habita, o cineasta explora lucidamente seus sobressaltos — por outras palavras, encaminha, lenta e seguramente, para o classicismo.


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