Filmes de papel

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FILMES DE PAPEL Tendo o cinema standard adoptado um modo de ficção narrativa, estabeleceu-se uma certa confusão quanto ao papel e à natureza do argumento. Quando um espectador conta a «história» de um filme, limita-se a resumir o argumento — ora, se o mesmo espectador entrar nos pormenores de tal acção particular, já começa a descrever a encenação; da mesma maneira, a «mensagem» de um filme é assimilada ao argumento -- por outras palavras, à parte verbal e verbalizável do sentido; uma parte da crítica, no fim de contas, debruça-se tão-somente sobre o argumento. Tanto bastaria para provar a importância que lhe é atribuída e contudo toda a gente sabe intuitivamente que um bom argumento nem sempre resulta num bom filme e que, em contrapartida, um argumento indigente pode servir para a produção de uma obra excepcional — é o famoso caso de A SEDE DO MAL de O. Welles. I — GRANDEZA (HISTÓRICA) Os meios financeiros e humanos em jogo para a feitura de um filme são de tal ordem que não é permitido esbanjar — para além do esbanjamento que é, por si só, a realização de um filme em estúdio —; o argumento tem por função limitar, tanto quanto possível, a improvisação e o tempo que esta implica — cada hora de rodagem cifra-se em centenas de contos. O argumento é antes de tudo um ponto de referência para a contabilidade. Godard lembra que, nesse aspecto, a escrita dos filmes reproduz a história do nascimento da própria escrita («Argumento do filme PAIXÃO») — os primeiros vestígios de escrita deixados pelo homem são inventários de mercadorias. O argumento é o documento a partir do qual são efectuados os dépouillements que permitem organizar a produção e a régie — do orçamento ao plano de trabalho. A «história», a «mensagem» não precisam de ser desenvolvidas para que o produtor e as entidades que financiam o filme avaliem o seu interesse em termos de sucesso comercial provável — é costume lerem um resumo de algumas páginas: a «sinopse». O argumento ideal deveria pois apresentar-se como um inventário dos cenários, das personagens, dos fatos, dos acessórios, das acções, etc.. Ora não é isso que de facto acontece. Foi talvez o desenvolvimento do cinema que engendrou a «cultura de massas» (cf. Edgar Morin, «O Espírito do Tempo»). Muito cedo, o cinema vai adaptar os produtos que prefiguravam esta cultura: romances populares, folhetins. Trata-se portanto de produtos literários e a identidade do modo de expressão verbal escrita faz deles uma espécie de modelo para o argumento. Todavia, este último destina-se a um uso meramente interno — os argumentos publicados são revistos, reescritos, romanceados a fim de se tornarem objectos de leitura porque não era essa a sua vocação inicial. O argumento standard apresenta-se pois como um romance reles, composto essencialmente de descrições e de diálogos. Desde as origens, a promiscuidade com o domínio literário, mesmo tratando-se de uma «subliteratura», representou para o cinema, na época vizinho do espectáculo de feira, uma promoção cultural. O argumento começou por ser uma adaptação. Ainda hoje, a maioria dos filmes nasce de adaptações de romances ou peças teatrais de sucesso. Assim, o argumento foi pouco a pouco adquirindo uma especificidade literária em relação a uma segunda etapa consagrada à composição das imagens: a planificação. A fábrica hollywoodiana racionalizou precocemente a produção deste outro documento de trabalho e separou a escrita do argumento da concepção da planificação. O realizador só pode intervir na segunda etapa — sendo-lhe eventualmente concedidas alterações do script —; a primeira era confiada a «especialistas» da escrita. Grandes escritores foram contratados para trabalhar pontualmente para o cinema — sobretudo nos Estados Unidos: Faulkner, Hemingway, Steinbeck, Brecht, Hammett, Chandler, A. Miller, etc.; mas o mesmo também sucedeu na Europa: Prévert é o exemplo mais conhecido, no entanto este tipo de colaboração por vezes ainda ocorre: A. Robbe-Grillet (O ÚLTIMO ANO EM MARIENBAD), A. Bessa-Luís (FRANCISCA). Em todos os casos, o resultado, não raro responsável por uma inovação ao nível do cinema, revelou-se pouco satisfatório para os escritores — citemos, no tocante aos Estados Unidos, o violento artigo de Chandler «Escritores em Hollywood»; Robbe-Grillet preferiu assegurar ele mesmo as realizações seguintes (Duras, cujo contacto com o cinema começou também através de


uma colaboração com A. Resnais, optou pela mesma via de autoria total); Agustina Bessa-Luís ainda não renovou a experiência. Actualmente, os argumentistas americanos são recrutados de preferência no meio dos autores de teatro — o discurso verbal continua a ser preponderante no cinema de ficção — e é cada vez mais frequente muitos deles tornarem-se realizadores — P. Shrader, O. Stone, L. Kasdan, A. Rudolph, etc. Na medida em que o enredo permanece o elemento essencial que garante o sucesso de um filme — logo a seguir à fama dos intérpretes, mas o star-system, já não é tão eficaz como era há trinta anos —, o estatuto do argumentista passou de «especialista» a «criador». Na Europa, um número escasso de argumentistas partilham a responsabilidade da maioria dos filmes de «autor» — em França, destacam-se dois nomes: J.-C. Carrière e G. Brach, poliglotas, que trabalham com realizadores de vários países. O argumentista tem pois um papel ingrato, posto que trabalha por encomenda e visto que deve apagar-se perante o realizador; mas a sua maleabilidade assegura justamente uma estandardização mínima das ficções e o argumento constitui, ao fim e ao cabo, o melhor meio de controlo sobre o cineasta. Conquanto a adaptação tenha sido amiúde posta em causa, o estatuto do argumento mantém-se intacto — neste ponto, mais uma vez, Godard constitui uma excepção. E no entanto foi no seguimento de um ataque frontal contra este modo de escrita dos filmes — o célebre artigo de F. Truffaut «D'une certaine tendance du cinéma français» — que o estatuto de autor, formulado por eles enquanto críticos, foi definitivamente adquirido pelos realizadores da «nova vaga». A noção de autor implicava, para esses cineastas, o controlo completo de todas as fases criativas da realização, isto é, não apenas a encenação mas também o argumento — floresceram nesse tempo os argumentos originais — e a montagem. O critério de escolha de um colaborador para o argumento deixa de assentar no savoir-faire de um profissional ou na «verve» de um dialoguista. A opção será norteada pela amizade — Truffaut e J. Gruault — ou pela prática de uma colaboração mais alargada — S. Schiffman participa no argumento, é anotadora e trabalha na montagem. II — MISÉRIA (TEÓRICA) O sentido, no cinema, passa pela emoção. A imagem é de essência poética, dificilmente racionalizável sem recorrer a uma simbologia inconsciente. Essa emoção caracteriza-se por uma participação momentaneamente total do espectador, cativado por uma imagem. Tal imagem traduz uma situação que o argumento construiu com maior ou menor coerência — o factor de surpresa é essencial mas existem outros modos de fascínio: a travessia da piscina no fim de NOSTALGIA de Tarkovski baseia-se numa adesão, através de reminiscências decerto infantis, e apresenta-se como um desenlace sem surpresa, ao contrário do voo dos pássaros saídos do manto da «madona» no princípio do mesmo filme. Na memória a imagem mantém-se enquanto o 'enredo se reduz a um esquema desgastado. Ora, os momentos de emoção, nos quais se condensa fundamentalmente a totalidade do sentido do filme — os dois paralíticos abandonados na estrada deserta em NASCIDO EM 4 DE JULHO, o sorriso amargo de Glenda Jackson no último plano de A INGLESA ROMÂNTICA, etc. — são raros, e muitas das vezes pouco espectaculares — a emoção funciona melhor a partir de um processo de identificação, o grande plano de um rosto basta-lhe — e relativamente independentes das peripécias que supostamente a justificam — o «suspense» hitchcockiano privilegia tais momentos e negligencia a composição racional da intriga; a «montagem das atracções» eisensteiniana teoriza esse princípio. A emoção é basicamente uma paragem provisória do tempo — é por isso que o cinema a ela se presta, dado que o espectáculo cinematográfico constitui uma paragem provisória do nosso tempo quotidiano. A essência de uma história é, pelo contrário, resumir, logo acelerar uma sequência de acontecimentos. Um filme divide-se em «cenas», em «momentos» em que o tempo se distende. A distensão é simultaneamente uma concentração em que as forças se materializam num objecto, numa personagem, num gesto ou até numa palavra ou numa melodia. A concentração pode ser conseguida por um estreitamento do campo, do enquadramento, por um jogo de iluminação, por um efeito de montagem, etc. Não resulta directamente do argumento. A função do argumento é justificar convencionalmente essas cenas — sabe-se que Victor Hugo escrevia os poemas a partir de uma ou duas imagens, vindas por


«inspiração» e logo sob forma de verso e que a seguir compunha o poema de maneira a incorporar as tais imagens-chave inspiradas num todo coerente para cuja redacção recorria a técnicas de efeito comprovado (antíteses, por exemplo): esta técnica de «verbo de encher» é a do argumento sem tirar nem pôr. Como o enchimento é, em termos quantitativos, superior aos momentos «fortes», o argumento corre o risco de matar a emoção. Quanto à emoção contida no próprio enredo, não é de essência visual — portanto nem sempre funciona em cinema —, e posto que não se baseia em imagens verbais, limita-se a algumas receitas, variações sobre os mitos e rosário de desgraças. Mesmo para os filmes cómicos, o argumento só pode desenvolver os «ditos espirituosos» — execráveis filmes de M. Audiard em França — ou o cómico de situação — reserva inesgotável de Molière. Sem falar daqueles que vivem dos actores, nenhum argumento conseguiria dar corpo ao humor dos filmes de Tati. Por outro lado, enquanto o argumento nunca trouxe a menor inovação à estética cinematográfica, constata-se que o afastamento — quer ocorra na altura da rodagem ou mais durante a montagem — em relação a um argumento inicial muitas vezes contribuiu para o questionamento de certas figuras esclerosadas: do banho turco para esconder a falta de fatos em OTELO de O. Welles à supressão por motivo de duração do contracampo no carro em O ACOSSADO de Godard (que a ultrapassagem de um obstáculo material possa ser fonte de criatividade não torna pertinente institui-la como princípio de trabalho). No entanto esse afastamento acontece sempre: o filme acabado nunca corresponde nem ao argumento inicial nem sequer ao modelo que o realizador podia ter imaginado. O argumento só deveria então funcionar como guide-line, referência estrutural. Restam os diálogos. Sem discutir aqui o papel proeminente atribuído ao material verbal nos filmes, limitar-nos-emos a indicar que, contrariamente ao que acontece no teatro, o actor não tem de dar corpo às belezas e subtilezas do texto, mas de tornar credível uma personagem caracterizada mais por uma presença — inclusive gestos e entoações — do que por um discurso ou uma linguagem. Além disso, as próprias condições da realização de um filme — cuja continuidade é retalhada plano por plano — dificultam o empenhamento do corpo do actor na pele de uma personagem. A esse nível, a necessidade de respeitar um diálogo escrito antes da escolha dos intérpretes, logo sem ter em conta as suas sensibilidades individuais, não facilita as coisas. A escolha extrema da adaptação teatral por Manoel de Oliveira permite-lhe tirar partido de uma forma coerente dos diálogos que passariam menos naturalmente com uma opção mais realista — como sucede em O PASSADO E O PRESENTE e mesmo em BENILDE OU A VIRGEM-MÃE. Os diálogos continuam a ser um dos pontos fracos do cinema português. O cinema americano resolveu o problema reduzindo o diálogo a uma das componentes da atmosfera realista reconstituída — amputando a sua função semântica, que é tributária da acção, e linguística, pouco mais do que fática (cf. os numerosos artigos e entrevistas do dialoguista de A COR DO DINHEIRO na altura da estreia do filme). III — PAPELADA (PRÁTICA) Contudo, os custos crescentes de fabricação de um filme implicam um período cada vez mais longo de montagem da produção, durante o qual o realizador em expectativa nada pode fazer a não ser sonhar com o projecto e aperfeiçoar o argumento. O facto de o financiamento dos filmes doravante ser assegurado principalmente pelo sistema das co-produções ou dos subsídios de Estado, que se decidem em comissões com base no argumento, transformou este instrumento de trabalho no elemento essencial do filme na fase da pré-produção. A actividade dos cineastas é — se a medirmos em tempo, energia, etc. — infinitamente maior no papel do que na película. A escrita de projectos é o sector onde, dadas as necessidades das televisões ainda em pleno crescimento, a procura é maior. Na medida em que o custo da escrita é ínfimo, é também o sector em que a censura é mais feroz — de facto, não há investimento a recuperar. Os realizadores escrevem. Se o projecto for rejeitado, escrevem logo outro argumento, mais padronizado, mais vendável. Se o novo projecto for aceite, como a recolha de fundos suficientes pode demorar meses, quando não anos, voltam a escrevê-lo, «melhoram-no». O argumento do filme AQUI D'EL REY, por exemplo, conheceu pelo menos três versões diferentes — não contando com as modificações de pormenor — no decorrer da sua produção. Podemos tentar


compará-las — aqui fica uma palavra de agradecimento a António Pedro de Vasconcelos que amavelmente nos deu o seu acordo. (É voluntariamente que empreendemos este estudo sem ter em considerações as modificações que terão necessariamente ocorrido no momento da rodagem e da montagem: tais transformações não são previsíveis com base no argumento; é nossa intenção analisar um projecto e não um filme). À partida foi evidentemente uma alteração do quadro da produção — financiamento maioritariamente de televisões, incluindo a RTP e cadeias estrangeiras — que esteve na origem das modificações: um filme em duas partes transforma-se numa série televisiva em quatro episódios de 50 minutos e depois em três episódios de 90 minutos — a duração do projecto foi crescendo com o tempo. Por outro lado, a primeira redacção foi elaborada em colaboração com V. Pulido Valente, enquanto o desenvolvimento da segunda é da autoria de C. Saboga — cada um dos argumentistas vai privilegiar no enredo os aspectos valorizados pelos seus interesses pessoais. A tentativa de restituir um retrato bastante fiel das forças políticas em jogo no período que precede a queda da monarquia em Portugal apaga-se da primeira para a segunda versão: desaparecimento de personagens como Franco e da análise das relações contraditórias entre os liberais e Mouzinho, em favor de uma tipificação — o poder (José Luciano), a tentação da ditadura militar (Mouzinho) e a oposição (personificada por uma figura nova, Manuel o anarquista); a simplificação da dimensão política representa por um lado um alargamento da audiência — o discurso não pretende debruçar-se sobre a história política de um país em particular — e a adopção de um modelo de referência consagrado — de A CARTUCHA DE PARMA à ÁGUIA DE DUAS CABEÇAS (O MISTÉRIO DE OBERWALD) passando por SENSO —: deslizou-se do político para o literário. A maioria das cenas acrescentadas vai desenvolver a intriga amorosa: a aventura paralela dos criados — padrão teatral dos séculos XVII e XVIII —, planificação dos episódios em função da relação dos amantes — eliminação das cenas no bordel sem ligação directa com a evolução da paixão —, justificação «lógica» dos obstáculos surgidos — por isso a personagem de Gastão tem de se transformar numa criatura absolutamente «maldosa»; a tipificação faz as vezes da psicologia. Em contrapartida, a racionalização geral da narração altera os dois protagonistas: a Condessa de Vinhais, aristocrata frívola apanhada na armadilhada de uma derradeira paixão, adquire uma envergadura trágica — na última versão, enlouquece —, enquanto o Tenente Lorena, no início uma personagem «pura» que se vai atolando nos meandros da dissimulação «civilizada» e da diplomacia, transforma-se num jovem ambicioso mas fraco, que não sabe mostrar-se à altura da paixão da condessa — quando na primeira, se entregava a ela perdidamente ao descobrir a paixão e por ela se deixava dominar. O princípio e o fim do filme sofreram poucas modificações — na primitiva versão, o herói só aparece na quarta cena (as três primeiras relatavam e comentavam a sua chegada), depois passa a ser mostrado em montagem paralela com a Condessa desde a primeira cena; o suicídio final de Mouzinho é desdobrado na segunda versão (primeiro vê-se o suicídio e depois ouve-se a narração do mesmo) para ser minimizado na versão definitiva (só se ouve o relato) — mas o corpo do filme, que equivale ao segundo e ao terceiro episódio da versão intermédia, fora seriamente alterado: a primeira versão funcionou como uma «reserva» de cenas fortes cuja ordem inicial podia ser mudada — no fundo, as cenas têm mais sentido por si próprias do que em articulação com o desenrolar do enredo. Trata-se portanto de um «enchimento» em dois andamentos: 1º) encontrar as cenas intermediárias que justificam racionalmente os momentos fortes nos quais o filme se alicerça; 2º) transformar essas cenas intermediárias em cenas fortes para justificar a sua inserção. O sentido profundo do filme deslizou imperceptivelmente da fábula desenganada sobre a traição dos ideais, dentro da qual a paixão desempenha um papel, que conduz à traição do amor, para o retrato de um mundo em que a traição é institucionalizada — a história paralela de Rosa e Manuel, os criados, é também uma história de traição; as contradições do herói são de tal ordem que a sua traição é rapidamente previsível (o «mau da fita» é uma espécie de álibi ficcional); só a Condessa, logo de início dada como traidora do marido e do amante, é que se empenha na aventura a ponto de comprometer a posição social, a saúde e o futuro (quando na primeira versão ela se resignava e o herói, ao tomar para si o lugar do «mau» junto do Rei. como o fizera junto da Condessa, teria de certo acabado por tomar também a atitude de cinismo que caracteriza aquela figura negativa).


No entanto, o argumento modificado conserva necessariamente vestígios do seu estado — e do seu sentido — inicial. Assim, é provável que novas alterações tenham surgido no decorrer da rodagem — a cena acrescentada de frente-a-frente entre a mulher e a amante (a Condessa), potencialmente um momento forte, não parece, mesmo na última versão ter um desenlace satisfatório (i.e. que mantenha a tensão) —, ou da montagem — a cena do botão achado (quando o episódio em que o dito botão é dado como perdido foi suprimida) na casa dos encontros clandestinos; a cena da visita da noiva ao quartel (enfraquecida na medida em que se lhe sobrepõe a questão do relacionamento do herói com Mouzinho e o episódio da entrega de uma carta da amante); etc. O risco é, no fim de contas, que este argumento, tantas vezes refundido durante os cinco anos que demorou a montagem da produção, e que ainda poderia ser retocado, funcione como um entrave, inibindo as intuições que sempre surgem na altura da rodagem, perante um cenário ou no élan de uma cena de composição. O argumento é o único referente comum dos participantes no filme: técnicos, actores, assistentes, etc. Pode servir de base para suscitar propostas de realização prática — da iluminação a um gesto ou a uma entoação —, mas quanto mais a equipa é pesada mais o argumento funciona como um dogma — a eterna preocupação da perda de tempo que equivale a uma perda de dinheiro. No momento da rodagem, a divisão das tarefas, a diversidade das preocupações pontuais são de tal ordem que só o realizador consegue manter claramente em mente o sentido da cena dentro do todo que é o filme, sentido esse que o argumento exprime de maneira superficial. O realizador é «autor» na medida em que sabe conservar uma distância em relação à ilustração do argumento. IV — PRONTO-A-VESTIR (MERCADO) Presentemente, os principais produtores são as cadeias de televisão. As exigências da televisão diferem profundamente das do cinema: a rentabilidade é garantida pelas vendas às outras televisões e pelas receitas da publicidade — fixas em função da duração; os índices de audiência têm um significado menor porque só intervêm em termos de concorrência entre as cadeias e a fidelização do público, conforme as faixas horárias, mantêm-nos relativamente estáveis. Logo não é o «sucesso» — traduzível em receitas de caixa — que justifica a produção. O «telefilme» a priori é exibido apenas uma ou duas vezes. Por último, ainda que por vezes as televisões se lancem em produções de prestígio, a regra é reduzir ao máximo os custos e a duração do fabrico. A televisão tem de produzir muito — posto que a ficção continua a atingir os maiores índices de audiência e é ela que fideliza o público — sob pena de ser forçada a pagar, cada vez mais caro, os programas estrangeiros. A qualidade é de somenos importância; muito pelo contrário, convém não perturbar os hábitos do público e mantê-lo numa preguiça intelectual tão próxima quanto possível da sonolência. Os realizadores de televisão estão perfeitamente rodados para a produção desta mediocridade em série, mas a falta de imaginação é tão grande que se constata uma cruel escassez de argumentistas. Aviso aos interessados: o futuro mora ao lado. Todas as receitas gastas, as situações mais requentadas podem ainda servir — a crítica de televisão é por assim dizer inexistente e em todo o caso desvalorizada —, devido à inflação quantitativa dos programas — lance-se mão das personagens mais tipificadas —, as subtilezas psicológicas ficam a cargo dos diálogos (sobretudo, escrevam-se muitos diálogos posto que são a figura narrativa menos onerosa) —; nada de inovações pois nunca deixam de ser caras e arriscadas — é útil não esquecer que aqueles que pretendem dirigir-se a um público analfabeto só conseguem projectar o seu próprio analfabetismo transparente sob a máscara do desprezo —; o argumentista deve aprender a aceder a todas as propostas de alteração vindas da produção —, mesmo as televisões privadas adoptam o modelo original da televisão monopólio de estado, i.e. têm como ideal absoluto o funcionalismo —; e, acima de tudo, evitar como um tabu qualquer referência ao cinema: profissionalmente, as duas actividades são antagónicas — se bem que, ao nível da função social, a diferença entre «fazer sonhar» e «fazer dormir» seja bastante retórica. Recentemente, os apoios financeiros à escrita de argumentos florescem em toda a comunidade europeia. São privilegiados os argumentos que implicam à partida uma co-produção entre várias televisões de diversos países. O argumento «europeu» deve portanto prever a deambulação do protagonista de país para país — levado pelas exigências de uma investigação, levado pela maré


histórica de um êxodo ou por uma vaga de emigração, etc. Dentro de dois anos vai ser o prato forte, até os realizadores portugueses no desemprego já lançaram mãos à obra. Um conselho prático: executar imediatamente um story-board — a verdadeira referência para a cultura de massas é, mais ainda que o romance popular, a fotonovela (mais próxima de uma actualidade indefinida do que a banda desenhada de grande distribuição, muito tributária dos géneros — guerra, western — historicamente ultrapassados). Uma dica: conquanto tenha desenvolvido notáveis meios técnicos de trucagem, o vídeo continua, no plano estético, submetido à gravação directa da imagem; uma carreira fulgurante não deixará decerto de se abrir ao argumentista que souber integrar essas possibilidades de trucagem simples — que neste momento se destinam apenas a fins decorativos e em geral estão reservadas aos genéricos — numa ficção que os justifique racionalmente. O cinema talvez não esteja moribundo, mas as suas condições de produção — após duas grandes rupturas (o «neo-realismo» e a «nova vaga»), o modelo americano do filme de orçamento elevado voltou a impor-se — ameaçam as hipóteses de renovação estética, logo o futuro que o espera. Em contrapartida, a era do argumento mal começa a alvorecer, pois o número de filmes na história que ficaram no papel prova-nos que o argumento pode prescindir do cinema. S.


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