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fotografismos e instantâneos
regina guimarães | marta caldas
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FOTOGRAFISMO (1) Depois de regada com água de palavras ela chega à janela a planta Por mãos de ser mulher é pousada no parapeito em lugar suspeito de espiar quem passa Por detrás das folhas luzidias o interior da casa perde nitidez pela frente a rua grita os dias da derrota Num só gesto de ternura deslocada se joga a dissolução da vida Cada entrada em cena de uma alma inesperada funda uma nova fronteira uma nova residência uma nova resistência a não ser que por acaso ou lapso que por obra ou manobra a cena seja mais que verdadeira
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FOTOGRAFISMO (2) A imagem é de alguém que me espia e faz de mim sua mascote pouco mais que animal de estimação pouco menos que um mote que apaga a conversa em lugar de acendê-la Tenho acima de trinta anos e abaixo de cem nessa imagem que poderia persegui-me não fora eu não sair do sítio e qualquer precipitação parecer despropositada aos olhos do grande ninguém que nos vigia Há para além de mim assim vestida a modos que atrasada no ir à escola ou pronta a ser sepultada braços que me carregam pernas que me atropelam olhos que fazem de mim terra queimada sem eu ser obrigada a sofrer em sintonia A imagem é de alguém que se zangaria sem querer dar a entender a cor do motivo a surdina do rancor é de alguém que me compõe me descompõe me passa uma rasteira e cai na cilada sua porém sou eu que saio enfarruscada incapaz de mostrar ou ser mostrada jaula sem besta absoluta e quadrada 5
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FOTOGRAFISMO (3) apaguei as nuvens no terço superior mas sobrou-me ainda a cinza a serradura o feno a farinha o pólen o pó como dar-lhes uso no céu senão nosso e como esbanjar essas palavras no inferno se visíveis as imagens já de há muito se sabia fazem os olhos maiores do que a barriga
FOTOGRAFISMO (4) grafismo é o anagrama de formigas 6
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FOTOGRAFISMO (5) Não sei se desejo ou vejo uma mãe vermelha e já não um mar um riacho de sangue onde nascer e só depois ria risonha regata mastros e bandeiras falsos metros rimas verdadeiras Não sei se vejo ou desejo o lado escondido do que não se esconde Salomão e a rasteira que ele passou às duas mães a do verbo feito carne a da vida como verbo face a face Não sei se vejo e não desejo esse recado colocado em lugar invisível a ninguém dirigido, ou seja, a mim Não sei se não vejo donde vim E venho ainda assim
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FOTOGRAFISMO (6) Eu dormia à minha porta pois já não podia entrar – perdera a chave e a noção de aquela porta ser minha. Fizera-me mais pequena para caber muitas vezes na pessoa que já fora e no desejo de ser. Do outro lado da porta – será que existia porta? – chegava-me a batida do teu coração amante. Em sonhos ininterruptos os meus olhos quase enxutos do que em vão chorara ou vira formavam novas palavras feitas de choques embates golpes pancadas compassos demoras pressas atrasos voos pausas e galopes. Dormia como se lesse como se sempre de novo a ler eu reaprendesse juntando-me a ti e a mim. 8
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FOTOGRAFISMO (7) estamos abraçados como que prontos entre duas danças mas rodeados por todos os lados de uma multidão entorpecida enquanto a música não dispara tomamos a palavra mais solenemente do que é costume do que nos é grato somos obrigados a elevar o tom até ao grito até à perda de fôlego pois é nosso encargo despertar um a um todos os presentes do presente
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FOTOGRAFISMO (8) Nem sequer o contrário do instantâneo apenas a imagem de outra imagem em trânsito e depois o desejo insaciável de fechar os olhos e ver. Nem sequer o contrário do efémero apenas a relação entre a sombra e a luz decaindo oblíqua e logo a seguir o desejo inconfessável de fugir por todos os meios às leis da perspectiva. Nem sequer o contrário do devir apenas um futuro eternamente recente e uma vez prestada a prova de vida o desejo insensato de passar à inacção. Nem sequer o contrário do idêntico apenas uma leve parecença mas o fardo de a carregar instante após instante e por arrastamento 10
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a datação a deserção a longa retirada.
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FOTOGRAFISMO (9) Olho o que me é contíguo a ponto de perder a nitidez ou a santidade o que vem dar ao mesmo. Usei auras que me foram emprestadas a ponto de as desgastar e não poder devolvê-las como se não fosse capaz de cuidar de mim e delas. Olho o que me trata com in diferença com deferência perco tempo a não ensaiar vénias. Usei o espelho que fora confiado e transformei-o num mapa ilhas de prata flutuando em plúmbeos oceanos e o barco dos olhos procurando abordá-las. Olho o que está por detrás e diante de ti sossegando intempéries transtornando bonanças com um lápis na mão e na outra o coração da corça. 12
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FOTOGRAFISMO (10) Faço uso do direito de ser vista de mãos dadas de braço dado também ou de olhos postos no chão. A quem devo esse impulso e a quem se deve a missão de me olhar quando procuro a sombra da solução onde ela tiver caído? A criança abriu a dança e todo o baile parou – ninguém ficou sem resposta mas faltaram as perguntas que viajam sempre juntas e chegam por atacado. Dança ou passeio ou namoro solos em solo molhado fora de alcance da lei a que chamaram acaso.
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FOTOGRAFISMO (11) Lembro-me de soprar e de tossir e de cuspir para deitar o muro abaixo. Lembro-me de ter pena ou vergonha de não ser eu ali lavada em lágrimas amuada até ao extremo de perder toda a confiança. Lembro-me de reconhecer todos os habitantes do muro – formigas, musgos, líquenes, minúsculas flores e espelhos miniaturais. Lembro-me de forçar a derrota de me esforçar de mais de arranhar as costas das mãos e as maçãs do rosto para ser uma figura ao gosto do fundo.
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FOTOGRAFISMO (12) só a besta de carga conseguia penetrar no santuário sem deixar algo de si à porta rezar de pé ou de joelhos de cara erguida ou de rosto cabisbaixo assemelhava-se muito a enumerar funções – algumas nunca efectivas outras nunca imaginadas em todo o caso a besta de carga enquanto celebrante corpo de oferenda ou simples bicho tresmalhado tinha aquela porta feita à sua medida
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FOTOGRAFISMO (13) subiu-lhe uma cor à cara subiu-lhe um sabor à boca desceu-lhe uma velha dor transformada em pensamento mas ficou fora de casa ladrando ao mundo que passa sem remorso já quebrara toda a loiça do amor e a música que em si trazia a todos ensurdecia…
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FOTOGRAFISMO (14) Não o voo apenas a sua sombra como que escapando então à tentação do desenho Não a sombra apenas a sua fuga o descarrilamento que nos soa a confissão Não o dono desse gesto não a dona desse corpo mas sim a estreita passagem de uma luz para mais luz de um tempo para outro Não o gesto desse dono não o corpo dessa dona mas sim música de mundo sem maestro
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FOTOGRAFISMO (15) vinha vestida de livro de luto de luto por um livro abrira-se numa página qualquer para não se deixar amarfanhar fechara-se sem ruído como se o seu pensamento já tivesse sido lido folheada por estranhos rasgada por parentescos não chega ao fundo da rua nem ao início da história vinha vestida de luto folhas e folhas em branco e o texto colado à pele denso e negro gotejando
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FOTOGRAFISMO (16) se sobejasse um recanto à sombra da grande culpa nenhuma árvore seria mais frondosa mais antiga passa uma criança e trepa até ao topo da copa passa um vento e despenteia a cabeleira nervosa passam risos de aguaceiro frases curtas escaldantes gargalhadas fulminantes eis que a árvore fica nua se sobejasse um refúgio ou um nome proibido o olho confundiria a figura com o fundo o fruto com seu caroço e a sombra com o mundo
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FOTOGRAFISMO (17) os astros ressonam alto como marinheiros ébrios e o barco do céu à deriva faz as vezes de todos os sonhos nossos ou ainda não fixando o céu a ponto de multiplicarmos as estrelas e reduzirmos o escuro a quase nada entendemos de que modo nos tornamos escravos das formas somos o alvo e a distância onde se lavra se crava essa espécie de acusação olhando e olhando apenas agora sem disfarce depois sem intenção enfim fechando os olhos e segregando a noite por dentro órgão novo e talvez nova função
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FOTOGRAFISMO (18) à falta do mais preciso chamar-lhe-emos mulher em tom de aviso e censura chamar-lhe-emos pastagem verde a ferros arrancada à floresta enquanto virgem chamar-lhe-emos deserto confissão sob tortura sem rasto em forma de rosto chamar-lhe-emos maré relógio prenhe de luas crivado de mil ponteiros chamar-lhe-emos abismo e uma queda inacabada lhe servirá de medida chamar-lhe-emos fantasma e talharemos lençol em sua branca barriga chamar-lhe-emos rajada consigo medindo forças soprando entre nada e nada chamar-lhe-emos chamada língua colada ao palato
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e escrita se desbotada chamar-lhe-emos paisagem cenografia de ecos puro efeito de fachada estaremos sรณ de passagem
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FOTOGRAFISMO (19) quem abre a porta é a dona da casa, agarrada a seu pano do pó, criada para todo o serviço de si mesma, inchada de muitos anos em pulsos e tornozelos aqui não se abre a estranhos mas a curiosidade é maior que a vida, a pequena nuvem de poeira que, à sua frente, levanta faz-lhe brilhantes os olhos a manhã tem destes trechos entre fachada e traseiras momentos de suspensão partículas à luz dançando cobras coisas casas caras e causas particulares pairando no ar do tempo
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FOTOGRAFISMO (20) se queres perder inocência não toda porém bastante escolhe só as más razões e um cavaleiro andante que te feche em biblioteca entre curral e pastagem que te abandone num monte montada em velho corcel que te vele à cabeceira contando ovelhas ruins que te desperte beijando os pés e a boca abstracta que te sirva verbo e carne e te ofereça de presente uma mesa encantada põe-te mesa ao sol poente que se assuste quando dormes tão bem e profundamente que se assuste quando acordas soltando a trela dos dias que se engane e que estremeça que se engasgue e core e chore que te conheça de cor sem saltar nenhuma parte 24
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FOTOGRAFISMO (21) agora fonte e retina nascente retendo água e olho de madrugada onde o gado vai beber agora ruminação existo logo resisto de antemão à contramão e por antecipação agora me faço espelho e tudo já me parece anterior ou posterior ao que não vejo em redor agora me guardo e salvo dobrada até me tornar minúscula comestível moro em quem me murmurar e ora clara ora turva emudeço na esperança de ser a parte que muda e o par com quem ela dança
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FOTOGRAFISMO (22) escrevo para a morada errada duvidando do endereço como se adivinhasse que o envelope se abriria semeando poesia a despropósito escrevo sobre esse erro dispensando o papel e o papel da caligrafia virgem a página e virgem quem não a leria escrevo a carta que tão longa não se envia a que se adia para partir muito atrasada a que se adianta e se perde e é devolvida à procedência ao remetente e à demência a que se acha já rasgada e poderosamente humilde escrevo anonimamente e só eu cedo à chantagem só eu sofro do nome que me esconde só eu me alegro sabendo que nenhum pombo do meu reino era correio gozo sem entraves desta mesma liberdade de resposta da lembrança sem retorno da fadiga a meia encosta e do regresso das aves 26
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FOTOGRAFISMO (23) se montanha onde era mar se mar onde era ilhéu se ilhéu onde era eu se mesa onde havia cama se cama onde havia chão se chão onde havia eu se praça onde estava sarça se sarça onde estava charco se charco onde estava eu se sopro onde tinhas torre se torre onde tinhas poço se poço onde já me tinhas se nós onde passam outros se outros onde passam muitos se muitos onde eu não passo de quando a quando me guardo aguardando o teu abraço no lugar onde o meu fardo troça do peso que sou a si próprio comparado?
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FOTOGRAFISMO (24) passada a primeira sarabanda a primeira agitação por sua alta recreação o criador susteve o gesto inventando incentivando e cultivando o desde sempre o desde então o maldito mecanismo de acção versus reacção o bando a outra banda o banditismo o turismo de massas a deportação dos seres o modo de estar a incursão a excursão a expedição punitiva a canção em carne viva e o garrote na veia e a artéria principal e o tráfico em economias de ponta e o tráfego em horas de ponta e o trabalho braçal por excelência e a aparência contra a aparência etc. enquanto isso 28
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o céu azul esganando gaivotas o céu vermelho enganando as praças o céu cinzento emparedando o céu violeta envenenando o céu negro espumando o céu rosa evanescendo isto é: clamando por ausências de que falamos pois quando dizemos perigo e descrevemos o inimigo à imagem e semelhança do que está a acontecer?
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INSTANTÂNEO à 1h 37 de 19 do 6 de 2003 houve um tempo longinquamente próximo do passado em que explicar-te era explicar-me e complicar-te e por aí fora montanha acima e sarça ardente moisés sempre febril sempre doente berrava numa alcofa − no rio nadavam princesas tantas imperialmente tantas que eu não podia atravessar-te e de margens muito sei por ter ficado a olhar-te com os olhos rasos de água e ninguém que a bebesse
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houve um tempo em que aprendeste os maus tratos mas não comigo que sou sapo a desoras e quem comigo se deitasse apenas poderia um corpo a corpo com a palavra dada a faca espetada numa pausa a espada colada ao desejo de ser ferida − toma nota que eu nada sei da vida nem sequer os caminhos que lá vão dar moisés eloquente e propositado nascera no rio mais quente que vai de lago a lago como de olhar a olhar sem se perder no meio da prece apenas transbordando
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INSTANTÂNEO às 1h 07 de 20 do 6 de 2013 não reponho mas respondo pela verdade acima dos factos ariadne só podia ter confiado ao seu amado um fio pouco mais comprido do que um pavio de vela porém sim ela o acrescentaria fazendo-se fiandeira de sua própria pele transformando o fino tegumento em história de cordel e em cordão umbilical ou não fora o Minotauro seu meio irmão carnal o caso é que findo o castigo o combate o perigo o dislate oracular ariadne toda ela descascada como um fruto erecto toda ela ferida e carne viva era mais temível do que uma luta a travar
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o que prova porventura que se pode confiar em quem confia e mais do que isso seriam enlaces e desenlaces que escapam completamente Ă pobre mitologia
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INSTANTÂNEO das 0h56 de 21 do 6 de 2013 há esse jogo do querer dizer quer dizer infância quer dizer infâmia muda de roupa e fato ora falante ora mudo para irmos a jogo é preciso termos as regras do nosso lado e agir como se e quando aparentemente estivesse tudo perdido se acaso lançamos os dados incautos eles poderão não cair não rolar não desenhar o e no tapete quem disse que o céu é terreno neutro e que a terra é isto que o céu promete?
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INSTANTÂNEO DAS 0h40 de 22 do 6 de 2013 dizia para um homem para outro na bruma do banho turco: «tu ora vens de facas ora de beijos na boca.» não falava de amor ou sexo esse sujeito mas sim de sua sujeição propriamente dita da suspensão do olhar de uns aos lábios de outros… falava − com pouca prosa mas bem diluída em falsa cor e falsa névoa − de que cada gesto ou mudança é uma vitória sobre não se sabe o quê ou uma derrota por não se sabe quem algures no radical irredutível das palavras que nunca lavam as mãos nem sequer ajustam contas com a limpeza das contas
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INSTANTÂNEO às 1h04 de 23 do 6 de 2013 descobrir o jardim a partir dos seus fundos incultos do recanto onde se amontoam folhas e galhos secos talvez um osso de vaca e uma perna de boneca descobrir o caminho a partir das bermas da magra erva e da flor tímida dos restos da passagem dos amantes dos distraídos e dos que têm buracos nos bolsos descobrir a casa a partir das fissuras, das manchas de bolor, dos torvelinhos de pó que voam perto do chão das cartas que dormem debaixo dos móveis do que esteve para ser queimado mas sumiu descobrir o corpo e a paisagem de olhos fechados descobrir o poço pelo som da moeda a cair descobrir a torre e a invenção do desejo descobrir a mão como um escrito sublinhado a vermelho um livro profusamente anotado a cinzento
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INSTANTÂNEO das 3h06 de 24 do 6 de 2013 se nada me tivesse sido anunciado negado mostrado proibido descrito ocultado prometido indevido não haveria razão para esta grande dor de estar a ocupar o lugar do que não é não, eu não creio ser o centro do mundo porém alguém me empurra para o meio da arena dizendo-me que sou a fera e o gladiador e sorrindo alusivamente porque matar e morrer são apenas duas das faces do inevitável e todas as outras nos atraem como becos sem saída e espelhos sem travessia? o meu amor levou-me tão longe que agora não sei voltar nem sequer responder pelo que fiz onde mora quem me pode perdoar ainda ou já me pode perdoar? 43
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INSTANTÂNEO às 0h48 de 26 do 6 de 2013 se levares toda a minha música até às paragens onde o silêncio é de ouro traz-me de lá a água das palavras ocultas devagar com mil cuidados na concha das mãos sentada a esta hora em que o escuro se deixa respirar até onde falivelmente consigo fazê-lo ouço na cabeça as tuas aflições de flauta e acrescento-lhes o arfar do pastor o bafo quente dos bichos um colar de estrelas gélidas mas não te esqueças da água que corre sílaba a sílaba até esculpir o regaço das fontes o leito dos rios e até a soberba infunda dos mares que entre si trocam bofetadas no lugar de carícias
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INSTANTÂNEO às 0h37 de 28 do 6 de 2013 parece que até o mar se enganou de sentido quando escolheu as marés para ser visto e ouvido até o mar se desmancha sob a pressão tão lunar que ao longe a luz se transforma em apelo ou em aperto parece que até a praia se enganou grão a grão na modéstia dessa jóia que é só multiplicação
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INSTANTÂNEO das 23h 49 de 1 do 7 de 2013 ao contrário da árvore que assim ou de outro modo já pressente folhas e se aflige em flores, um dia despertarei com outros braços com mais pernas – para acenar? para caminhar? – mas não saberei o que deles fazer nem que ideia poderá ligá-los e desligá-las de mim porque nada se altera consoante o génio de que nos aterra desterra e acolhe e sempre seremos apanhados em flagrante delito de insuficiente surpresa
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INSTANTÂNEO das 0h36 de 3 do 7 de 2013 eu não teria nunca como responder-te porque as palavras correm contra o tempo para que a ilusão do contrário seja possível mas sendo o tempo que a resposta leva esse longo momento que a resposta traz leio nos olhos que não te satisfaz a pequena amostra e contudo ela viajou todos os perigos no fundo dos meus olhos desde a primeira luz eu não teria nunca como contrariar-te porque as palavras se deitam para despertar e não são submissas quando parecem sê-lo mas sendo esta alegria de nos levarmos a sério uma espécie de brincadeira só nossa de criança só nossa em segredo renascida deixo-te a pequena amostra sangrenta e não o panorama deixo-te os cinco dedos a arder neste lado invisível da vida
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INSTANTÂNEO das 0h04 de do de 2013-07-04 num sonho que me obrigava a acordar de outros sonhos e de ele mesmo com calhaus nos bolsos e nos sapatos eu passeava numa floresta azulíssima e como não andava perdida apanhava pedras imaculadamente brancas que viravam pão negro mal eu as tinha na palma da mão os deuses, acreditava eu entre migalhas, estavam bem localizados mas um bebé pronto a nascer da minha orelha não me deixava perceber donde vinha o som seria da fome ou do caminho que nascia a certeza da divindade?
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INSTANTÂNEO das 2h07 de 5 do 7 de 2013 um sapato abandonado e um baile em seu redor o coração de uma corça e um espelho embaciado uma torre fumegante mas a casa adormecida uma menina ao relento e o lobo dentro da cama as ruínas de um banquete na cidade sitiada um coração trepador e um gigante derrotado o cavaleiro montado num fantasma de cavalo três desejos flutuando no poço estreito do olho sapo prezando ser sapo mas princesa desprezada o fio da voz rasgando camisa de homem feliz todo o estio numa noite todo o sítio num só estado 49
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INSTANTÂNEO das 23h37 de 5 do 7 de 2013 noite dos pequenos silêncios tão breves e embaraçosos que neles tudo cabe sobretudo a desmedida de que me culpam de que me culpo já não sei por que ordem nem por ordem de quem noite das costas contra costas como se mares marulhando distantes colassem todas as terras do pensamento banhassem com gritos de criança assassinada todos os momentos em que o ócio nos pensa quando julgamos não pensar nada noite de frente a frente a frente sem outra batalha que não o corpo amado que nem se vence nem se presta a derrotar-nos pois o seu exército avança grácil e desarmado desirmanado porque feito de irmandades impossíveis de confessar e duríssimas de roer noite do lado a lado sem outra aresta que não o desejo de jamais a limar
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INSTANTÂNEO às 23h59 de 6 do 7 de 2013 este perfume intermitente de pólvora e de incenso esta invisibilidade de estrela ocultando estrelas este sabor profundo a fruta não colhida este visco de cantiga colada às cordas vocais este silêncio que crepita são asas derretendo entre céu e terra
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INSTANTÂNEO das 0h52 de 8 do 7 de 2013 ontem pelo dia fora uma voz que não reconheço serviu-se da parede do meu corpo e ecoou essa desinência de montanha em marcha essa inocência sem perigo que só os criminosos a sós podem verificar era impossível ser mais do que lugar comum ou incomum ou apenas lugar de paragem por onde tudo passa até não se encontrar outro desejo mais singular de estar a bordo do mundo de estar nas bordas do mundo e beber o mar até a terra se dizer firme
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INSTANTÂNEO à 1h19 de 10 do 7 de 2013 conjurando amargura não apenas a minha não apenas a muita voltei ao lugar onde só o defeito é profundo e abre perfeitas estas asas não as minhas não as muitas falemos pois dos deveres do intruso e das coisas belas porque a uso a uso a uso se me enfado e me confundo ó belo senhor da luz estilhaçada ó belo senhor da sombra remendada vê até onde me queres e sirva eu para nada porque vir e servir é o encanto deste lugar a reboque de outro mundo
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INSTANTÂNEO às 0h27 de 11 do 7 de 2013 Atrás da parede branca haverá infindáveis correrias escadas subidas descidas salas de luto festivas ruas arrombando montras canções à porta fechada frases livres de sentido filhos pródigos em alta fogo brincando com fogo enquanto que deste lado a noite levada em ombros como peregrina exausta não saberá responder onde a pergunta faz falta apenas babar palavras para marcar um caminho sobre o qual as nunca ditas possam agora ser escritas
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INSTANTÂNEO às 0h59 de 12 do 7 de 2013 alguém se reclinou nas minhas costas alguém comeu na minha boca alguém bebeu nos meus ouvidos alguém dormiu nos meus ombros alguém chorou nos meus cabelos e eu fugi para casa
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INSTANTÂNEO às 0h20 de 13 do 7 de 2013 sigamos de olhos fechados abrindo mão do coração e deixando-o rolar pelas pedras como o rubro bebé passa de colo em colo até não voltar à mãe que o tem debaixo de olho sigamos como se de cor conhecêssemos o desconhecido ou como se desconhecêssemos subitamente o que nos é familiar sigamos porque alguém nos precede sem nos perseguir e alguém vai na dianteira sem nos guiar sigamos em par até nos cruzarmos com o que seremos e face a face nos alegremos sigamos até à fonte até ao pequeno regato 56
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até ao meandro onde o amor engrossa e sai fora do leito porque já é mar porque já é toda a nudez da lua toda a dor da maré
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INSTANTÂNEO às 22h27 de 21 do 7 de 2013 Trazer no corpo impressos o cheiro a labores e ócios já não os nossos mas os que correram muito à frente para espalhar a notícia Trazer na cabeça os carimbos do corpo estranhamente regulares como as horas de um relógio mais secreto do que os seus ponteiros mutilados Trazer o olhar a reboque em sua paisagem de página branca ao ritmo da roda ainda mal inventada e gentilmente manca Trazer-me até ao local de encontro que não marcaste pois o chamamento ignora a voz capaz de o transportar de o entornar e de o beber de novo.
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INSTANTÂNEO às 0h41 de 23 do 7 de 2013 As crianças organizaram o seu governo sombra e todo o sol lhes obedece e mais sol ao sol houvesse. A noite caiu precisa com ar de quem já correu este mundo quando outro para vir descansar à nossa porta velha cadela velando dores e queixumes maninhos. Mas as crianças estão reunidas escrevem leis com mil alíneas em línguas mais estrangeiras para jamais serem entendidas. Esta noite embacia tudo quanto brilha e do seu bafo saem estrelas rasteiras asteróides de saliva meteoros de mãos dadas. As crianças ficam juntas em seu sono de poder e enquanto mo permitirem dormirei no quarto ao lado. E sobre a água dos olhos está o meu amor deitado. 59
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INSTANTÂNEO às 0h40 de 24 do 7 de 2013 a criança esconjura sem palavras o medo do que lhe vai por dentro esventrando bonecas e outros brinquedos de seu jogo ofensivo se diz que é inofensivo mas quando arranca olhos e faróis já deixou de ver quando corta cabelos e pêlos já lhe mora para sempre um frio nas costas e já milhas de levíssimos véus lhe travam o pé de dança ou seja a marcha descompassada e livre de si para si
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INSTANTÂNEOS entre Braga e Porto pela 1h de 25 do 7 de 2013 1 Pode a língua já valer-se de seu subentendimento julgando por onde cresce o desejo imperativo de que se levante o vento onde sopra a calmaria apagando uma a uma todas as sombras do dia Pode a língua só valer-se do teu subentendimento onde me cabe a ilusão de que alegria é tormento 2 Por todas as vãs palavras se cobram acções de rasgo ou somente sobressalto − do palco não se vê palco e as deixas espalham um cheiro pois é estranho haver entranhas e a fome forma famílias. O mar embala mobílias à tona não sendo barcos mas em maré de milagres flutuando ainda assim.
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para a Simone