fun in the chinese laundry A DAMA DE SHANGAI é uma charada cuja solução tem menos sentido que as pistas. Estética do estilhaço (do vitral?) para uma solução estilhaçada no sentido estrito da palavra. E se persistirmos neste mau gosto das palavras, diremos que Welles transforma a ruiva mais glamourosa da história do cinema num caco (oxigenado), num objecto robusto e frágil como um falso jarrão chinês. O fascínio daquilo que é conhecidamente postiço tem muito a ver com esta aventura de marinheiro sem cera nos ouvidos que embarca voluntariamente num negócio de sereia. Do magnetismo do topónimo Shangai ao seu reverso vertiginoso em Chinatown, do vasto mar de bolso ao aquário policiado, a verdade é lambida como um sorvete, depressa porque senão derrete; no fim não fica nada (um nada personificado), a não ser o crime da sede e a inconsistência da vítima que Deus castigado(r) fez apetecível. A viagem (metáfora da morte doce, com as suas etapas, o seu estado terminal e apoteótico) é uma capitulação activa e felizmente frívola. O farniente, a fruição dos prazeres convencionais do cruzeiro (exotismo de cartaz) conduzem O'Hara a um «porto» onde impera a lei da memória. E de repente o espectáculo, que é feito para esquecer, transforma-se em colar de recordações. É a essência da fita desnudada pelo seu próprio artesão. O cinema, é sabido, foi para Welles infidelíssima amante, prometida, explicada, esfriada. Quer dizer, primeiro feita como/pelo amor, depois montada na postura do sonhador de pesadelos. Neste quadro, a atitude moralista — esconder para mostrar, deformar para evidenciar (Camus dizia que a mentira sublinha a verdade) — coincide com o sofrimento do cineasta. Mas em Welles a falsa dama denuncia a falsa puta que por sua vez ressuscita a necessidade ontológica de ambas para o desejo e seu forro de fantasia poderem funcionar. O espectador pede romance, o filme atira-lhe a parábola à cara. O primitivismo ético de Welles não parece estudado; será? A felicidade, enquanto conceito burguês., pertenceria então a uma reserva movediça de enunciados e emblemas, cuja realização, num palco de coexistências encenadas pelo homem, se traduz na ruína. A podridão do reino da Dinamarca pode ser definida na medida em que a sua dosagem é objecto de cálculo. Meios e fins excluem-se por pertencerem a zonas diferentes do saber e do fazer. O cinema é um meio de expressão (de combate?) suficientemente complexo para servir, num tempo recorde, todas estas contradições cozinhadas. O «homem moderno» até é capaz de pagar para ver isto. Se o deixarem. R.G.