Grapes of wrath (ford) (odu np)

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O ETERNO DESTERRO O cinema hollywoodiano sempre revelou a notável capacidade de abordar frontalmente a crítica dos defeitos do sistema (da corrupção à hipocrisia) sem pôr em causa o próprio sistema enquanto constelação de valores: a livre concorrência, a essência puritana da moral, etc. A crítica denuncia uma perversão do sistema e o remédio proposto conduz a uma reafirmação dos valores intangíveis desse mesmo sistema – na Europa, é isso que diferencia a crítica radical do surrealismo do comprometimento existencialista que se pretende um «humanismo». É a esse nível que GRAPES OF WRATH se destaca da produção americana clássica, ou mesmo da obra de Ford que nos seus westerns voltará a posições politicamente mais «correctas» – passagem de H. Fonda para J. Wayne. O genérico apresenta-nos uma árvore morta. É sob este signo que a fertilidade do solo e do sistema americano se encontra logo à partida questionado. O primeiro plano mostra um cruzamento: outras utopias poderiam desenvolver-se. o filme narra simultaneamente a tomada de consciência de um anti-herói (duplamente criminoso, ele acaba por verbalizar que o facto se ser «outlaw» lhe permitirá ver as falhas do sistema) e a odisseia de uma família, os Joad, que, por terem esquecido o passado, estão condenados a revivê-lo. Com efeito, a migração interna só parece insuportável aos Joad porque eles apagaram uma migração mais antiga: reivindicam o solo americano por nele terem nascido, trabalhado e sofrido. Em suma, umas escassas gerações aboliram a ancestralidade. Ora essa utopia na qual assenta o «Novo Mundo» é desde o início do filme posta em causa: os camponeses são expulsos, os direitos negados; mais tarde, as «forças da ordem» comportar-se-ão sistematicamente como provocadores – todos os valores são invertidos. Na sequência deste quadro negro, a acção intervencionista do governo, que obedece a um modelo planificado próximo do socialismo, aparece glorificada – a tentação socialista está subjacente a toda a trama do filme, já que Tom Joad, protótipo do bom americano, sincero, espontâneo, generoso, etc., é rapidamente assimilado aos «vermelhos» e decide, no fim da fita, que precisa de se juntar aos combates sociais para, segundo a palavra de ordem leninista, «aprender». Trata-se pois de um filme anterior à guerra fria. Esta América onde se morre à fome não corresponde de todo à imagem triunfante que se impôs depois da vitória dos «aliados». É necessário compreender que, no final dos anos 20, enquanto na Europa vingava a tentação do fascismo e o fascínio pela «Nova Ordem», os Estados Unidos estão politicamente dilacerados pela crise e a atracção pelo socialismo só se atenuará graças a uma política que por vezes afivela uma máscara muito semelhante ao rosto do socialismo: o «New Deal». E só a guerra resolverá estas contradições: os camponeses arruinados proletarizam-se nas fábricas de armamento do Norte. O exército e a C.I.A. tornar-se-ão os pilares da indústria e do controlo ideológico em todo o território durante um quarto de século. Na época, os documentos da F.S.A. (Farm Security Administration) circulam há vários anos. As fotografias de Walker Evans e de Dorothea Lange influenciaram fortemente as escolhas de luz de Gregg Toland para GRAPES OF WRATH. Curiosamente, essas fotografias foram tão marcantes que a opção estética por um alto contraste onde o preto domina conferiu ao filme uma mais-valia de verosemelhança: os Joad pertencem visualmente às imagens dos «okies» que nós conhecemos – estranhos desvios do «realismo». Na altura o efeito foi formidável. O filme também vale pelas obras que suscitou. Assim, depois de ter visionado várias vezes este «road movie» avant la lettre, Woody Guthrie – sem dúvida o maior cantor de «folk» americano – compôs, em maré de entusiasmo, as suas «Dust bowl ballads» e fez da declaração final de Tom Joad – «Wherever there is a fight, that’s where I’m a-gonna be» (onde quer que haja uma luta, eu estarei) – um hino. Pois os Joad, que a mãe define como «o povo» dão aos anónimos da miséria um rosto, o de Henry Fonda ou o de Jane Darwell. A utopia preconizada possui esse duplo rosto: o filho revoltado, decidido a consagrar a vida à justiça, e a mãe «rio» que assegura a permanência da vida e da estrutura familiar contra todas as vicissitudes – ambos se opõem ao «sistema»


caracterizado, contrariamente, pela diluição: os camponeses são expulsos pelos companheiros mais famintos às ordens de um gerente que ele próprio também se limita a executar as directivas de banqueiros distantes pressionados pelos seus accionistas… (e estes últimos tanto mais enraivecidos quanto ameaçados de ruina). O tema do filme é, em última análise, a necessidade de solidariedade. Exemplar se nos afigura a cena do primeiro diners onde a patroa começa por querer explorar aqueles clientes miseráveis só aceitando vender-lhes pão sob forma de sandwiches e acaba por oferecer dispendiosos chupa-chupas às crianças. Porque a solidariedade é contagiosa: os camionistas que observaram toda a cena recompensam a patroa pelo seu gesto dando-lhe uma enorme gorjeta. É a falta de solidariedade que, impedindo-os de se organizar, faz dos «okies» fura-greves e, pouco tempo depois, vítimas da sua própria submissão. Assim, o fim do filme responde a dois enigmas colocados pelas duas primeiras imagens: num mundo de valores invertidos, é tempo de mudar de caminho; quanto à esterilidade da terra, ela é «antinatural» e deve-se tão-só à ignorância, à ganância e à estupidez dos homens. Saguenail


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