GREGOS E TROIANOS
Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto. Jorge Luis Borges, El hacedor JAS quer jogar em todos os campos. Figuração e abstracção, simbolismo e gratuidade, traços e manchas, rascunho e assinatura, inacabamento e exposição, técnica e espontaneidade, memória histórica e contemporaneidade. As telas de JAS são povoadas. Todavia as figuras só têm valor de sinais. Eminentemente simbólicas, a sua significação permanece – faz questão de permanecer – indecifrável. Os sinais neste caso remetem apenas para o arbitrário taumatúrgico do pintor. Os motivos são em número reduzido e repetem-se de tela para tela. Não referem nenhuma realidade externa, nenhuma mitologia reconhecível; unicamente, por alusão mais do que por citação, a uma história da pintura. O alcance dessas figuras não deve transbordar das telas. Há nelas animais, principalmente pássaros e peixes, por vezes cães que talvez sejam lobos, e serpentes. Reconhecemos os habitantes do Éden, ainda por nomear. Eles representam a nossa origem – peixes do pântano primitivo, pássaros imitando os querubins celestes –, na terra ou no céu, darwiniana ou cristã. O casal de serpentes ignora o seu papel de tentadores. Há nelas o humano – o humano, não homens ou mulheres, pois os corpos estão tão-somente esboçados, os contornos encetados, a figuração incompleta. São elementos humanos: caras, olhos, torsos. Por vezes um pé, destacado, imóvel, privado de função. Por vezes uma mão que é também uma garra e também uma coroa. O homem ainda não acabou de ser criado, ainda não foi sagrado. O olho domina: o espectador é observado pela tela. JAS propõe-nos uma génese da génese, uma pintura mais fetal do que feita. A própria paleta das cores, reduzida a dois ou três tons por tela, ainda está por desenvolver. As cores não preenchem os contornos, pelo que as silhuetas parecem ter sido esvaziadas de sua carne, formas sobrevivendo ao ser como a luz sobrevive às estrelas. Os pescadores ainda não são pecadores – desde o início da heresia cristão que se joga com esta homofonia –; os peixes ainda não são metades de sereias; no centro do jardim da tela, a árvore não sabe se deve deixar crescer as folhas ou secar. Inspirando-se longinquamente na «nave dos loucos» de Bosch, JAS empreendeu pintar uma arca e cada tela é uma tábua dessa construção. Pois de uma minúscula nuvem, de um olho, eis que há gotas a começar a cair. A seguir, o dilúvio... Saguenail, 27 de fevereiro de 2017