História mortal história mortífera

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História Mortal, História Mortífera Eis um cadáver com passado incómodo! No «longo martirólogo» da história do cinema (a expressão é de Deleuze) Orson Welles ficará sendo, entre os grandes, aquele cujos filmes mutilados, inacabados, nem sequer começados são mais numerosos do que os que pôde levar a cabo. Welles morreu e só incompletamente falamos dos seus filmes porque não vimos, porque não veremos nunca, It' s all true, Moby Dick, Don Quixote, etc., nem o tal King Lear cuja produção publicamente anunciada permitiu a Jack Lang, Ministro da Cultura em França, justificar o acréscimo do orçamento consagrado ao cinema e para o qual o realizador jamais viu um chavo. Com Citizen Kane, Welles parecia, aos olhos dos críticos que na época viram o filme, ter reinventado totalmente o cinema — e no entanto, Georges Sadoul, que nunca lhe perdoou o facto de ser americano, verteu muita tinta para o demonstrar, o cineasta se limitara a encenar de forma absolutamente original processos já conhecidos; durante os vinte anos seguintes, todos os seus filmes, apesar de lhe terem sido tirados das mãos antes da fase final da montagem, exploraram um pouco mais profundamente certas potencialidades do cinema e acabaram por se impor como obras-primas: Se quisermos circunscrever o domínio explorado por Welles — que evidentemente abrange uma ínfima parte do possível, do exprimível pelo medium — constatamos, todavia, que abarca a maior parte do cinema até hoje realizado, cujos produtos comparativamente nos parecem insípidos. O cinema de Welles alicerça-se no actor. Existe uma tendência para atribuir à sua dupla actividade de actor de teatro e de cinema uma impressão de teatralidade no desempenho dos actores nos seus filmes; a representação nunca é natural, há sempre uma discrepância porque cada um deve esforçar-se por ser ao mesmo tempo o personagem fictício e o seu próprio personagem (cf. toda a cena do elogio do personagem: «Let's drink to character» no início de Confidential Report. Donde a ambiguidade de todos os personagens desempenhados por Welles; donde a pujança do duelo Vargas/Quinlan que é também o duelo Heston/Welles em Touch of Evil — ora essa discrepância é algo semelhante, num registo diferente, àquela que Godard pede aos seus actores; mas em vez de fazer desaparecer a personagem que representam (assim Rita Hayworth parece sempre hirta nos grandes planos de Lady from Shanghai por ser incapaz de assumir o seu papel e não por ignorar o teor deste), Welles confia nos seus actores. Mas a personagem assim criada é previamente julgada pelo autor, dentro da própria trama diegética, depois pelo actor e finalmente por Welles que dirige a câmara, antes de ser submetida ao julgamento do espectador. «Em Welles o sistema do julgamento torna-se impossível mesmo para o espectador... sobretudo para o espectador… Welles arranca sempre personagens impossíveis de julgar e que não devem ser julgados, personagens que se furtam a qualquer julgamento. Se o ideal de verdade se desmoronar, as relações de aparência deixarão de bastar para manter a possibilidade do julgamento» 1. O julgamento torna-se antes múltiplo, confrontado com outros; embora não haja verdade com V maiúsculo, nem consenso a partir do qual elaborar um julgamento, a ideia de julgar não é recusada por Welles — que sempre defendeu o seu empenhamento e não poupou os seus contemporâneos — mas remetida para uma verdade que só pode ser íntima. Todos os filmes de Welles são parábolas em torno desta confrontação: verdade absoluta, histórica ou simplesmente social, falsa, impossível, etc., contra uma verdade íntima que pronuncia a sua própria sentença. «Rosebud» é, ao mesmo tempo, esta verdade íntima e a condenação de Kane; o drama de O Processo situa-se no desfasamento entre as respostas da instituição ou de outrem e a busca de K; para não falar da auto-condenação de Macbeth ou de Othello. Toda a encenação de Welles visa pôr em evidência — colocar no primeiro plano, tecnicamente falando; assim se justifica a utilização das focais curtas deformantes e da profundidade de campo — a presença de uma personagem, actor e protagonista, juiz da situação. Deste modo, a situação é duplamente mediatizada pela câmara e por essa presença — o processo é mais complicado ainda; visto que a presença é dupla, personagem/actor. A verdade íntima é o último lugar inacessível na medida em que foi mediatizada por tantos juízos — quantos espelhos Rita Hayworth e Everett Sloane têm de quebrar até poderem encontrar-se? — mas também a mais segura das condenações — a filha de Arkadin não acredita nas revelações sobre seu pai, a condenação não vem dela — e a única garantia de liberdade: é o facto de a História Imortal ser


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