HUMANO, NUNCA DEMASIADO HUMANO Como abordar a obra de Renoir? Talvez seja necessário interrogar o seu valor de evidência. Com efeito, a força da evidência jorra dos filmes de Renoir conquanto se possa constatar que eles não obedecem à linearidade da narrativa cinematográfica tradicional. Multiplicidade de personagens, multiplicidade de enredos. Renoir compromete-se a fundo mas os seus filmes não defendem uma tese. Porque as relações que neles se tecem não são dialécticas, as personagens acompanham-se mas seguem percursos diferentes — a guerra não tem o mesmo significado para P. Fresnay e J. Gabin em A GRANDE ILUSÃO e o encarceramento também não —, só se encontram quando as barreiras são intransponíveis — P. Fresnay e E. Von Stroheim —, estão sempre deslocados — L. Jouvet em LES BAS-FONDS — mesmo quando não têm consciência disso — só o DÉJEUNER SUR L'HERBE levará P. Meurisse a pôr em causa a sua investigação científica. O olhar de Renoir é sempre crítico — não existe adesão a uma personagem, excepto uma profissão de fé, várias vezes reiterada, no «colectivo» e no «popular» — mas invariavelmente benevolente. É esta aceitação da contradição, este interesse por um heroísmo quotidiano, logo irrisório, esta fé num princípio soberano do prazer que me parecem, mais do que qualquer opção no plano formal, dar o tom tão imediatamente reconhecível aos filmes de Renoir, conferindo-lhes a tal aura de evidência que é feita à imagem da própria vida, no seu fervilhar magnífico e absurdo. Renoir não encena conflitos mas situações e filma a adaptação das suas personagens a um meio que a priori elas rejeitavam, mas que vão transformar num espaço de vida — a prisão em A GRANDE ILUSÃO, o olhar burguês em BOUDU SAUVÉ DES EAUX, o dormitório em LES BAS FONDS, a rua em ELENA ET LES HOMMES, o palácio em LE CARROSSE D'OR, etc. Todo o heroísmo se revela nesta adaptação. Em contrapartida, o «herói» tradicional — muitas vezes incarnado por J. Gabin — acaba por sentir-se inútil num mundo em que a luta pela sobrevivência varreu os falsos valores míticos. Assim, Renoir relega para o plano dos acessórios de papelão toda a tradição histórica da tragédia e a psicologia monolítica que lhe corresponde. Aquilo que Renoir ataca, tanto mais profundamente quanto não o faz de forma agressiva, não se dando ao trabalho de criticar abertamente, tão-só limitando-se a ignorá-la, é uma concepção da «história», com moral retrospectiva, simplificação do humano segundo um modelo racional, valores maniqueístas e demonstratividade. Renoir filma no presente e a única história é a da sobrevivência, tanto às catástrofes como às ilusões. O heroísmo deixa de ser exemplar quando o vemos corporizado na mulher que rema no fim de UNE PARTIE DE CAMPAGNE ou em I. Bergman ao separar-se de J. Marais em ELENA ET LES HOMMES. Confunde-se com o sacrifício que Renoir mostra mas não exalta — a única liberdade é a do vagabundo (BOUDU) ou dos ciganos (ELENA). Atrás duma grande desenvoltura, Renoir dissimula um profundo pessimismo. É significativo que até ao ROI D'YVETOT — em que o amor não exclui a serenidade mas passa pela aceitação do adultério — a relação amorosa seja sempre apresentada como uma fonte de problemas e não como uma solução mítica. Curiosamente, o reconhecimento de Renoir não suscitou uma análise da sua obra tendente a realçar a que ponto o empenhamento político, nunca renegado, do autor o levou a excluir todos os desenlaces mistificadores tradicionais — o fim convencional só pode surgir como «clin d'œil» para atenuar o fracasso dos protagonistas, como saída para personagens secundárias — a intriga amorosa do CARROSSE D'OR, a fuga com os ciganos em ELENA ET LES HOMMES. Renoir sempre condenou as suas personagens prisioneiras das regras sociais e procurou, na margem dos altos feitos que a História selecciona, a verdadeira grandeza dos humildes — esta posição, latente no parti-pris dos sketches de LA MARSEILLAISE ou LA VIE EST À NOUS, torna-se parente em THIS LAND IS MINE, com a personagem desempenhada por C. Laughton; basta comparar este filme com o muito «dialéctico» HANGMEN ALSO DIE de Lang, a partir dum argumento de Brecht, para perceber que a visão do «povo» é mais autêntica em Renoir: enquanto Brecht encena uma entidade abstracta encarnada por personagens trágicas, transpondo as atitudes nobres para heróis que pertencem a outra classe social sem contudo pôr em causa o carácter mistificador do modelo e dos valores manipulados, Renoir propõe uma personagem ridícula, cobarde, enxovalhada, cuja tomada de consciência não evitará a morte absurda.
Todavia, este pessimismo não é desespero. Renoir não se cansou de celebrar os pequenos prazeres e os grandes impulsos, confiante no sol que inunda os seus últimos filmes, e no movimento da água que corre sem consideração pelos limites humanos, morte e nascimento. Mestre sem lições para dar, pessimista confiante, Renoir restitui-nos alguns sabores elementares e uma energia que pessoalmente me evoca A. Cravan: «Eu, a quem basta uma melodia de violino para me dar raiva de viver; eu que me podia matar de prazer; morrer de amor por todas as mulheres; que choro todas as cidades, eu estou aqui porque a vida não tem solução». S.