I CAN’T GET NO SATISFACTION Godard tem vindo a definir-se como o cidadão do cinema abaixo de todas as suspeitas. Sempre pulsaram nos seus filmes um desejo de apropriação e uma imodéstia sistemática toleradas (ignoradas? desprezadas?) na poesia mas execradas na forma cinematográfica que se humilha perante as soluções de continuidade do real. Quando o cineasta faz pelo muito, comenta-se que faz pouco do espectador, ou que faz acima do que pode, que é como quem diz «faz pelas pernas abaixo». Noutro sítio, confiava eu que Godard tem o volúvel à-vontade das mulheres e essa vocação de provocar em todos os sentidos do termo. Por, isso o difícil direito à contradição é tão central na sua obra: levada a sério, também ela nos atraiçoa. Agora, Godard dá a cara, cede ao prazer de protagonizar e de contracenar, enquanto morto, com os sopros de inquietação (mística ou pelo contrário) que se atravessam na porta estreita da narrativa para não deixar passar o afecto. Campo: de concentração. Note-se que o cineasta confia na palavra e desconfia, porque ela vem de antes e cria para destroçar. Ora se há projecto louco na investida godardiana, é mesmo a tentação de criar imagens insubstituíveis como se esculpisse na água. A palavra é legenda a decifrar embora expressamente formulada na interrogativa e a composição desconcerta porque tem por objecto o desconcerto. Enquadramento: falta de ar. Godard lança-se na reciclagem de mitos, sem critério de proveniência ou grandeza porque, aquém da rede de aparências, atribui mais peso à matéria do que à forma e faz de conta que não varia sobre a indignidade dos temas. Talvez por severidade, enclausura os excessos infantis dos actores e receitalhes a pose e o fardo de uma meditação inútil. A primeira fixação, frouxa, química, faz-se através do desamparo dos actores, suspensos em histórias alheias, e cada vez mais nitidamente excluídos da máquina pensante em que o filme se transforma. Godard não procura captar as pessoas por detrás das stars, starlettes e figurões com quem trabalha, prefere pegar-lhes pela ponta da inconsistência, a fim de discorrer sobre a falta de humanidade: em O DESPREZO, Brigitte Bardot, sex-symbol dos anos 60, situada no tédio nascente de uma conjugalidade banal, coloca as únicas perguntas inesperadas na sua boca — «Gostas meu rabo?». Não é pois surpreendente o fascínio do realizador nem tanto pelo policial, cujos cordelinhos os seus filmes enriçam numa data de nós cegos, mas pela polícia. Retrospectivamente, na sua aparição como denunciador em O ACOSSADO, quase se lê a premonição de outra vertente da sua obra: a busca de culpados, necessidade tão tirânica que a dada altura perde sentido e reduz-se ao fogo da paixão que tudo arrasa (Carmen, feita Electra, revista por Giraudoux, corrigida por Godard). O próprio relacionamento masculino-feminino aparece contaminado, intoxicado pelo reflexo policial: as mulheres não sabem o que querem mas sabem o que não querem e os homens vice-versa. Os encontros apresentam-se como momentos de captura (é um pouco aquilo que, a outro nível, Maria enuncia ao explicar que entre ela e o futuro do seu ventre a relação é «não poderem escapar um ao outro», tal o elo que liga o polícia ao criminoso). O cinema de Godard, por muito que tente resvalar para uma atmosfera íntima de «depois da lição», evita escrupulosamente a ironia — o autor mal esconde o desdém que sente pela génese das verdades — mas cultiva de bom grado o cómico: muitos dos recursos e das combinatórias do desfasamento foram historicamente experimentados pelos, média e salvam certas personagens dos seus filmes de uma demasiada insegurança. O «saber» é uma exaltação que exclui os moldes académicos. Se o espectador se puser no lugar do aluno, não lhe chegam as meninges: bem feito! Efectivamente, JeanLuc Godard não usa a perversão, pelo menos no plano da retórica... morde mas mostra a barriga. A nostalgia do anímico e do natural conjuga-se com a presença profusa da música, aqui pleonástica e sensual, ali complemento de sinais. O cineasta intuiu desde o início um parentesco produtivo entre a música e o cinema da mesma maneira que desenterrou algumas questões deixadas em aberto pela pintura, nomeadamente nas técnicas da sobreposição e da colagem. A reflexão sobre as outras artes roça aliás uma certa embriaguez: o barro não contém a vocação de vaso, apenas a disponibilidade, talvez. A narrativa godardiana contempla ora a polícia, ora o cinema, ora ambos, mas a aproximação entre o policial e o cinematográfico nem é límpida nem aprofundada nos seus aspectos éticos. Ao cinema hold-up, o tonton chéché de NOME CARMEN parece contrapor o «mock-film», sem película nem
câmara antes com os cinco sentidos alerta, não vá o real fugir-lhe de vez, e posto que o recíproco já é verdadeiro. O próprio do corpo será não estar de bem com nada, não estar seguro e por isso amar descarnadamente os fetiches. Godard defende uma estética da insatisfação. R. G.