Iconoclastia

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ICONOCLASTIA Verifica-se um fenómeno Coppola (como se descobre uma nova estrela) que faz com que um autor afinal bastante versátil, tanto ao nível dos argumentos (um filme familipolicial, um filme de guerra, uma comédia musical, um filme de adolescentes) como dos estilos (montagem tradicional seguindo os actores em O PADRINHO, montagem aleatória (ver adiante) em Apocalypse Now, encadeados em DO FUNDO DO CORAÇÃO, montagem elíptica em OS MARGINAIS), venha a ser promovido à categoria do realizador mais importante da década, comparado até a Godard (por Michel Mardore). Julgamos que um realizador importante é aquele que consegue mudar a nossa abordagem do cinema e fazer-nos entrever novos campos; e parece-nos que não é o caso de Coppola. Recapitulando: o único efeito que destacamos em O PADRINHO (uma vez que a qualidade da direcção de actores, na medida em que se não volta a constatar nos filmes seguintes, não pode ser atribuída a Coppola) é a utilização da montagem paralela na última sequência; tal não constitui novidade, a teorização já tinha sido efectuada por Pudovkine no tempo do mudo. Em Apocalypse Now, a novidade reside na utilização sistemática das técnicas de montagem televisivas: encadeados intermináveis, no início do filme; montagem rápida e síncrona, com uma multiplicidade de ângulos, até então nunca vista, já no corpo do filme. Ora, estes efeitos técnicos fornecem-nos as figuras seguintes: analogia visual entre as hélices duma ventoinha e as dos helicópteros — analogia no máximo digna duma canção de S. Gainsbourg J'ai cru entendre les hélices d'un quadrimoteur mais hélas c 'est un ventilateur qui passe au ciel du poste de police Quanto à montagem síncrona das vinte câmaras, torna-se perfeitamente aleatória: nenhuma razão para que o plano em que os helicópteros atravessam a pantalha da direita para a esquerda se situe antes daquele em que aparecem de frente ou daquele outro em que atravessam a pantalha em sentido contrário; acresce que a utilização da perspectiva sonora faz com que, ao passar brutalmente do interior dos helicópteros para a aldeia, perdemos toda a noção da progressão dos ditos; resumindo, Coppola parece-nos ultrapassado pelas possibilidades técnicas do material de que dispõe e acaba por não poder controlar nenhum dos efeitos; montagem e banda sonora contradizem-se e digladiam-se. Evitamos falar do argumento que converge para a total confusão entre o messianismo, o mito dos pioneiros e do novo mundo e o reino lúdico de Shambala crucialmente polvilhada de T.S. Eliot. O qualificativo «aleatório» vem confirmado pela indecisão do próprio realizador quanto ao fim — logo quanto à moral — a dar ao seu filme. DO FUNDO DO CORAÇÃO retoma a técnica dos fundidos encadeados, sistematizando-a. Coppola a ela sacrifica o ritmo indispensável ao género escolhido (o argumento é feericamente imbecil). No entanto, a partir deste filme, e tendo em conta as actividades de Coppola como produtor, começamos a distinguir alguns vectores no seu trabalho: Coppola põe efectivamente em causa a cinematografia tradicional americana opondo-lhe uma estética de cinema europeu: abandono da montagem em continuidade, ruptura com os efeitos demasiado anunciados, importância crescente dos planos natureza morta (actores fora do campo), acumulações das citações, etc.. É esta introdução do cinema europeu que caracteriza a obra de Coppola, mas ela perde-se no meio de preocupações contraditórias: recurso a uma técnica ultra-sofisticada e submissão inconsciente aos chavões do código hollywoodiano. A marginalização voluntária é inconsequente: o modelo europeu já de há muito mina o espaço estético hollywoodiano por dentro, através da presença nos EUA de numerosos realizadores de origem europeia (Sternberg, Lang, Hitchcock, etc, etc, etc). Os contornos desta vontade de europeização e do seu carácter irrisório confirmam-se fortemente com OS MARGINAIS. É-nos possível analisar, nesta última fita, os aspectos filiados na estética hollywoodiana e os enxertos duma reflexão herdada do cinema europeu cuja história o realizador


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