Igualdade e diferença

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IGUALDADE E DIFERENÇA Entre o primeiro filme de Spike Lee, SHE’S GOTTA HAVE IT, e o seguinte, DO THE RIGHT THING, a ruptura é considerável — a verdade é que, entre os dois, Spike Lee rodou uma outra fita que não chegou aos ecrãs da Europa. O primeiro retrata as relações amorosas na comunidade negra americana; a própria sinceridade dos sentimentos expostos tende a mostrar que são universais — o sucesso do filme prendeu-se com o facto de o espectador branco poder participar nele, identificando-se com tal personagem ou tal outra; não é por acaso que a crítica o comparou a Woody Allen em cujos filmes a omnipresença dos indícios e das referências à comunidade judaica constitui um cenário mais familiar do que estranho. O modelo formal, meio godardiano, meio novaiorquino, facilitava a recepção na medida em que o espectador punha os pés em terreno conhecido. A primeira afirmação de Spike Lee, quanto à comunidade negra, era a da igualdade fundamental dos problemas e dos sentimentos. Uma vez estabelecido o postulado de igualdade, S. Lee atreve-se a reivindicar a diferença. DO THE RIGHT THING é concebido sob o signo da acção, desde o título que responde à pergunta de Lenine «Que fazer?» às citações finais de M. Luther King e Malcolm X. A diferença é claramente realçada pelo confronto entre italianos e negros, que coincide com o conflito patrão/empregado, comerciante/cliente, etc. O humor de Spike Lee, que não hesita em acentuar mais a caricatura dos irmãos do que a dos brancos — estes últimos pura e simplesmente não compreendem a miséria material e cultural dos vizinhos —, evidencia a incompatibilidade do modelo: o empregado, por muito que execute honestamente as suas tarefas não pode empenhar-se tanto no trabalho como o patrão que se auto-explora e explora os próprios filhos mas que colhe os lucros desse esforço; é inegável que a comunidade negra que frequenta a pizzaria, condenada a afirmar-se caricaturando o modelo que a exclui — sapatos mais vistosamente brancos, rádios mais barulhentos ( do mesmo modo que nos países do Terceiro Mundo as ditaduras são mais arbitrárias e a corrupção mais generalizada: a necessidade da afirmação ignora a hipocrisia do pudor) —, vive o quotidiano num contexto que exibe ostensivamente uma outra cultura onde não há lugar para os negros — as fotografias nas paredes remetem todas para o cinema e, através dessas imagens, Spike Lee enuncia o espaço cultural que pretende conquistar. O conflito, quando explode, revela o próprio absurdo do desespero: os negros são os únicos que ainda têm alguma coisa a perder — um, a vida; o outro, o emprego; a comunidade, um local de convívio. Os prejuízos do dono da pizzaria serão reembolsados pelos seguros e, de qualquer maneira, o filho queria vender o estabelecimento... Contudo, aquilo que foi destruído representa a insuportável presença de um sistema baseado não no ódio, mas, pior ainda, na exploração benevolente — é fundamental para o sentido do filme que o acto motor seja desencadeado por alguém que aparentemente não está em relação conflitual com os brancos, justificando assim a posteriori a desconfiança institucional destes últimos, reflexo fiel do seu estatuto de exploradores. Apesar do filme, cuja montagem descontínua, quase sob forma de «sketches», organiza uma progressão por alternância, se perder por vezes em derivações que contam aventuras dentro da comunidade negra — a descrição desta não é o objectivo directo de S. Lee — o cineasta encontrou um tom e um modo narrativo eficazes. O cinema político — no qual DO THE RIGHT THING se filia indubitavelmente — carece demasiadas vezes de humor de combate para que o aparecimento dos «joints» de Spike Lee não deva ser aqui saudado como merece. S.


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