INÊS NEGRA teatro de rua site specific
Momento 1 Fala da Arrenegada (do cimo das ameias) Do alto deste castelo de Castela aliado a Inês lanço o apelo de vir enfrentar meu zelo e a mais ninguém dou recado. Se és Negra como te pintam, o meu desafio é claro. Que teus olhos não me mintam fitando os meus com descaro. Se és Negra, o negro te valha: o que vales vem mostrar-me neste campo de batalha te convido defrontar-me. Se a teu rei tens respeito, se amas o reino que é seu, assim salvarás o peito do fidalgo e do plebeu. E que entre nós tudo valha: pedra, pau, espeto, espada... De fora fica a maralha e a nata será poupada. De ventre de fêmea veio todo o varão e donzela... Duas mulheres sem receio certamente bastarão para pôr fim à querela. Os órfãos não chorarão, nem gemerão nossas gentes, nem mesmo se queixarão esfaimados e doentes. Se és mulher assinalada entre o demais mulherio, ó Inês Negra endeusada responde à minha chamada e aceita o meu desafio.
Momento 2 Fala da Inês Negra (do pátio) Ó da Vila, ó de cima inimiga figadal e fidalga viperina, salta já do teu pombal e o corvo vem enfrentar que o peito te há-de bicar até sem sangue ficares e no raso chão rolares. Cá estou e aqui te espero, Inês em seu desespero de ver a terra natal nas mãos de quem nos quer mal. Tareia de criar bicho te hei-de dar ó estafermo. Reduzida a puro lixo irás parar ao inferno. Só num ponto tens razão: poupar o rei e o povo. Não deve morrer em vão nosso monarca tão novo, nem deve finar-se quem trabalha para seu bem. Ó da Vila, ó de alto, desce lá da tua ameia p'ra mulher mulher e meia ao teu apelo não falto se queres apanhar tareia desta negra que te odeia. Fala do Rei João (rodeado de exército de espectadores) Homens leais de Melgaço pasmai perante a bravura e perante a fibra de aço que esta mulher madura revela emprestando o braço a causa tão nobre e pura. Pasmai que nem o mais forte dos meus fortes cavaleiros assim enfrentou a morte a sós e sem mais rodeios. Castela sofreu derrota retumbante e verdadeira em campos de Aljubarrota e uma simples padeira
sem espada, elmo nem cota fez nossa glória certeira. Mulheres que o futuro sois do nosso duro presente possam mil luas e sóis e a fortuna inclemente fazer de vós um padrão de força e de insubmissão. Falas mansas, aventais, sabão, vassouras, panelas e outras coisas demais não devem servir de trelas à força que vos faz belas. Inês Negra tua história não mais será esquecida pela força da memória serás mais forte que a vida.
Momento 3 Fala do exército português (sussurrado) Ana Ina Inês Ina Ina Nós Duas Uma Três Negra Negra Voz Vai-te a ela e vai por nós... Fala das hostes castelhanas (um tom acima da anterior incitação) Ó da vila, nobre dama, de Castela protectora nós te fazemos senhora da sorte que aqui se trama. Nós te fazemos patrona da gloriosa Castela dona de nosso destino... Por ti toca o grande sino que anuncia o combate e que tua nomeada merecida e conquistada levará a toda a parte. Fala do exército português Te arrenego arrenegada com Castela amigada no castelo acastelada pela Negra amotinada logo serás humilhada derrotada, castigada. Fala de D. João Começai pois o combate! Seja leal vossa luta sem desonrosa trapaça nem vergonhoso dislate pois ao cabo da disputa a pertença desta praça caberá a quem vencer se a vitória merecer. Vá...! Doa a quem doer...!
Momento 4 Incitações do exército português Hei Inês, dá-lhe uma sova. Hei ó Negra, dá-lhe uma coça. Ó da Vila caixão à cova Ó da Vila sem compaixão. Hei Inês, tira-lhe o pio Hei ó Negra, tira-lhe a tosse Ó da Vila, bicho vadio Ó da Vila, antes não fosse...
Momentos 5 / 6 / 7 8 /9 11 / 12 VAIAS DA ASSISTÊNCIA I Pisa-lhe os calos! Torce-lhe um braço! Puxa-lhe os cabelos! Quebra-lhe o cachaço! Vaza-lhe os olhos! Aquece-lhe nos rins! Fura-lhe os miolos! Arranca-lhe o nariz!
II É pô-la a uivar! É pô-la a ganir! É pô-la a chiar! É pô-la a fugir! É pô-la a ranger A miar e a suspirar...! É pô-la a gemer É pô-la a ladrar! Chama-lhe cadela Bezerra desmamada Ovelha ranhosa Raposa assanhada. Chama-lhe má raça Ursa má lambida Pata choca, patarata Toura enraivecida. Chama-lhe cornuda Mafarrica, pé de cabra! Chama-lhe peluda Desdentada, vaca magra! III À unhada sem compaixão à dentada
e ao chapadão! Ao beliscão e ao pontapé sem dó nem perdão assim é que é! É dar-lhe nas ventas! Cortar-lhe o pescoço! Picar-lhe a carne Moer-lhe o osso!
Momento 13 Fala de Inês Negra Vai-te Arrenegada Não puxes mais por mim...! Eu te quero amortalhada Mas por respeito a meu rei Que não decidiu assim Te deixo partir poupada. E, no fundo, eu bem sei Que sofrer este vexame É mais cruel e infame Do que em combate morrer... Mas não resisto a dizer Que o melhor desta vitória Não será o que a memória Decerto há-de reter. Morta em vida eu te sinto, Eu te avisto e eu te vejo: Esse era o meu desejo Essa é a minha recompensa E a alegria tão imensa De que o povo anda faminto. Dentro do teu castelinho Atrás da tua muralha Dormindo em lençóis de linho Ignoras o sentimento De quem dorme sobre a palha E tem o merecimento De suar cada migalha Que lhe serve de sustento. Vai e não voltes senhora. Pede ao castelhano vil Que lamba essas tuas feridas Dez, vinte, cinquenta, mil De que sangras nesta hora Todas elas merecidas. E diz ao nosso inimigo Que por cá sobram ineses Bem nascidas, boas reses, Todas do mesmo feitio Do mesmo lado do rio E parecidas comigo. Juntas ou sós eu te digo Somos o pior perigo Que ele deve temer Se nos quiser combater. Pois temos o sono leve
E a mão destra e pesada. Se não lhe basta o que teve Que venha apanhar porrada Desse prazer não nos prive E ora viva quem vive...! Fala da Arrenegada Nada direi do que dizes... A derrota reconheço Sem dúvidas nem matizes Mulher de sangue na guelra, Inês Mais que Tudo Preta... Mas que o povo não cometa O erro de amar a guerra. Se aqui lhe crescem raízes Diversas das de Castela Convém contudo lembrar: Uma seara é mais bela Do que homens a pelejar; Um celeiro é mais útil Do que um exército fútil Treinado para matar. Não te amofines, Inês, Eu me vou, vou-me de vez. Eis rompido o terno laço Que me ligava a Melgaço. Possa o rei que é um rapaz Sem barba nem experiência Aprofundar a ciência E a qualidade sagaz De vos governar em paz. Quando olhardes a fronteira Cuidai que breve é a vida E que a linha derradeira Apartadora da morte Nem é firme, nem é forte... Basta um instante, um corte, E estamos na outra banda Onde não manda quem manda Onde não vive quem vive...