INDEFINIS TERRAE No reino da distribuição aleatória, produz-se por vezes um acontecimento excepcional. O valor de tal acontecimento não é apenas intrínseco; situa-se ao nível das possibilidades de percepção, reflexão e investigação que com ele se abrem, i. e. das questões que suscita. O que não quer dizer que o acontecimento seja forçosamente mediático, i. e. que a sua influência seja proporcional ao valor intrínseco do acontecimento. O papel da crítica deveria ser, também, assinalar, como marcos que servirão de referência duradoira, esses acontecimentos que se elevam acima da mediocridade dos espectáculos para nosso consumo, e que nos obrigam a um esforço equivalente de elevação para os apreciarmos. E assim sucederia decerto se a crítica fosse movida por uma necessidade real de vislumbrar o futuro do media e por uma preocupação em acompanhar as etapas da sua evolução; ora, a crítica renunciou ao seu estatuto de amador, trocou-o pelo de guia do consumidor; mais ainda, graças à regularidade, acabou por criar um público e, na relação que com ele estabelece, o seu objecto (o cinema, os filmes) não passa dum referente, ou de um assunto de conversa. Assim, a crítica da capital, forçada a criar ilusoriamente acontecimentos semanais (!) deixou passar quase em claro o único acontecimento da estação: a «operação Paulo Rocha» que permitiu equacionar um percurso original e coerente, restituir ao cineasta o seu lugar preponderante e descobrir o seu último filme, porventura o mais dominado do autor. A obra de Paulo Rocha leva-nos a reformular algumas questões fundamentais em torno da função duma cinematografia nacional — problemática vasta que engloba os aspectos estéticos mas os ultrapassa, cuja relevância nos coíbe de liquidar as interrogações formais com meros jogos de palavras (falando de jogos de palavras e do seu alcance: a propósito de um filme sobre o qual pouco mais que nada havia a dizer, um crítico, inspirado pela necessidade de participar num movimento de moda e contudo incapaz de alicerçar teoricamente o culto ao qual juntava a sua voz, lançou recentemente o conceito de «cinema oral», noção essa que, embora pertinente no caso duma fita abundantemente pontuada pelo vómito, deixava antever uma próxima fase, na lógica do desenvolvimento infantil, decerto «anal»...). As questões levantadas pelos filmes de Paulo Rocha são demasiado variadas e complexas para que possamos abordá-las num só artigo — da concepção dos planos-sequência em que a deslocação da câmara recria, nas posições respectivas das personagens, a alternância do tradicional campocontracampo, à criação de objectos «latentes» unicamente através do enquadramento ou pela encenação dos «travellings» (por exemplo, as «pontes» de O DESEJADO). Gostaríamos de abordar apenas o tratamento temático que, por si só, justifica a importância capital que reclamamos para Paulo Rocha no cinema português; a figura nacional arquetípica do «desterrado». VERDES ANOS narrava o trajecto dum rapaz que chegava à cidade; MUDAR DE VIDA o dum homem que voltava à aldeia; A ILHA DOS AMORES descreve o exílio de Wenceslau de Moraes: O DESEJADO encena a incerteza visceral da identidade nacional... Trata-se sempre de personagens que assumem objectivamente — migração interna do campo para a cidade, regresso da guerra colonial — ou subjectivamente — W. de Moraes fez uma «peregrinação» e seguiu a rota do Oriente (das «especiarias»), João chega a uma encruzilhada histórica e cultural entre Portugal e a Índia (por interposto «filho»), entre o antigo e o novo regime (por interposto «pai»)... A originalidade de Paulo Rocha consiste em visualizar esta problemática, que se cristaliza em lugares concretos. O cineasta pretende descobrir os vestígios da incerteza — do passado como do futuro — na paisagem (os poços transformados em chaminés, em MUDAR DE VIDA), na urbanização (os terrenos ermos de VERDES ANOS) ou nos monumentos (o palácio de Sintra, em O DESEJADO)... e revelá-los. É óbvio que esta capacidade depende da vivência que o próprio autor tem dos espaços, do afecto que neles investiu e passa por uma exotização do olhar — como diria Victor Segalen — muito nítida no tratamento nipónico das paisagens de O DESEJADO, mas que já se pressentia em MUDAR DE VIDA. Nada de «pitoresco» — como as terras de MATAR SAUDADES onde os actores lisboetas circulavam desajeitadamente — nenhuma simbologia auto-suficiente — como a quinta edénica de UM ADEUS PORTUGUÊS ou a negra fábrica de TEMPOS DIFÍCEIS: muito pelo contrário, uma interpretação constante do habitus que nunca se revela como a priori parece (o protagonista de MUDAR DE VIDA troca os casebres de tábuas miseráveis por uma cabana de folhas
e esta por um buraco; o solar de O DESEJADO está a meio-caminho entre a decrepitude do palácio e a desordem da biblioteca). Os lugares, o habitus, são tão questionáveis como as personagens — na medida em que Paulo Rocha leva até as últimas consequências a coerência deste tratamento, a paisagem em O DESEJADO só é mostrada em plano de conjunto sob forma de maquette. Por outro lado, as personagens de Paulo Rocha são «concretizadas» por um trabalho cuja força simbólica — consertar sapatos, apanhar o sal — se afirma no quadro da problemática da identidade mas o transcende, dado o papel que tal actividade desempenha na narração (Paulo Rocha nunca confina o símbolo aos limites duma só imagem). A evolução da abordagem da actividade humana nos últimos filmes — ler, escrever e representar no caso de W. de Moraes, a política enquanto prestação teatral em O DESEJADO — corresponde, da parte de Paulo Rocha, a uma preocupação de aproximar as personagens da sua própria experiência, i.e. a uma procura de maior verdade. Assim, paralelamente a um trabalho de inovação formal, Paulo Rocha é um dos raros cineastas a explorar as possibilidades de significação do media, não tanto alterando os processos de narração como problematizando cada uma das suas componentes. Ao postular a incerteza e a consciência trágica como valores imediatos, Paulo Rocha só pode incomodar. No panorama dum cinema nacional que se vem demarcando no não-lugar (casas desabitadas ou isoladas, no man's land sóciotemporal), no quadro de um discurso e de uma consciência não incertas — i.e. cujas certezas devem ser postas em dúvida — mas informes (personagens adolescentes, enclausurados na irresolução afectiva inerente a uma não-participação no mundo do trabalho), a contra-corrente de um cinema que, não conseguindo assumir as duras realidades do país, lhes vira sumariamente costas, Paulo Rocha afronta e interpreta Portugal: O DESEJADO é o primeiro filme sobre Portugal pós-25 de Abril. Enquanto a crítica se encarrega de deitar os foguetes, encostando-se ao poder e às suas ficções festivas, Paulo Rocha descreve lucidamente uma decomposição sócio-histórica e moral. É curioso notar que a maior parte dos grandes cineastas do país, interrogando-se por vias originais sobre os mesmos problemas, chegam a conclusões idênticas (pensamos em M. de Oliveira e J. César Monteiro, por exemplo...). O provérbio diz «Ninguém é profeta na sua terra» — a atitude da crítica mantém-se enfeudada nos princípios do senso comum. Será que se dá conta da importância de alguns cineastas nacionais? Paulo Rocha ou Portugal, nos confins da terra e no começo do mar, na memória saudosa de um império que mais parece uma diáspora, no centro, não do mundo, mas das contradições. S.