Intemporal e fácil

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INTEMPORAL E FÁCIL A estreia dum filme é um acontecimento mediático que ultrapassa de longe os dados cinematográficos — narrativos, estéticos ou outros — ligados ao filme em si. Em especial, o filme é envolvido por um discurso dentro do qual as «críticas» (como esta) não passam dum elemento. Na medida em que a vida dum filme depende da audiência que logrará obter, este discurso, publicitário na sua essência, é fundamental. Difundido pelos media — i.e. simplificado, vulgarizado — acaba por se reduzir a uma etiqueta à qual por sua vez o filme se vem a reduzir quando em torno dele se criam consensos. As etiquetas, das quais as críticas são meros desenvolvimentos antecipados, nem sempre se referem a uma escala de valores qualitativa — esta ordena talvez a cinefilia, mas tanto o escândalo (cf. A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO) como o box-office (vai-se ver o filme porque já muita gente o viu, para fazer como toda a gente) podem gerar etiquetas. O quadro do cinema português não é tão negro como alguns o pintam. Tendo atingido uma média de seis a oito lomgas-metragens por ano, a produção parece adaptada aos meios do país. A doença do cinema português é a invisibilidade. Os distribuidores portugueses nem investem na produção nem respeitam a percentagem de filmes nacionais que cada sala, por lei, é suposta exibir. São pois directamente responsáveis pela condenação a longo prazo da produção nacional, ao deixarem toda a iniciativa ao Estado (IPC) que subsidia sempre a fundo perdido. O público, exclusivamente formado pelos filmes americanos que lhe são propostos, rejeita os filmes portugueses e vai abandonando gradualmente as salas de cinema. A este nível, a tal embalagem discursiva dos filmes é quase tão essencial como o objecto que o suscita. Ora, os realizadores portugueses, que têm vindo a intervir duma forma cada vez mais activa na produção, parecem resignados com a situação de impasse dos seus filmes, como se fazê-los fosse suficiente e não fosse preciso mostrá-los, como se o cinema não fosse um meio de comunicação... Virados para a televisão como único recurso de difusão, participam na extinção do cinema como espectáculo e como media. Roma Torres analisa com grande justeza o facto dos cineastas (os tais novíssimos) não «ocuparem o lugar do discurso». (Cf. «A Grande Ilusão», nº 6. Os verdes anos oitenta). Filmes tímidos ao nível do discurso, quer dizer do «assunto» — histórias de amor intimistas, sem violência, que encenam personagens significativamente um pouco imaturos —, do «objecto» — pouco ou nada contextualizados, em locais isolados e num tempo de «férias», como entre parêntesis — e da estética — tentação televisiva do enquadramento passe-partout, expressamente simétrico... Ausência sobretudo do discurso sobre o cinema, do qual depende, para lá dos filmes tomados um por um, o futuro do media. Entre os realizadores avaros de discurso e os dois grandes realizadores deste país — M. de Oliveira e P. Rocha têm um discurso, mas posto que os seus filmes não são exibidos, a importância deste é mais visível no estrangeiro do que em Portugal — J. Botelho ocupa lugar privilegiado: conseguiu uma produção regular, mais ou menos automaticamente subsidiada, que é exibida nos ecrãs nacionais. O único caso, que deste ponto de vista lhe será comparável, é o de Fonseca e Costa. Para além de tudo isto, Botelho produz um discurso que, por ser no fim de contas o único que o público recebe, e dado o reconhecimento nacional e internacional de que a sua obra tem sido alvo, poderá vir a tornar-se o modelo — no sentido daquele que modela — da consciência do cinema português. É a esse título — e não tanto pelo facto de eu poder resumir a minha opinião dizendo que gosto menos de TEMPOS DIFÍCEIS do que de UM ADEUS PORTUGUÊS que por sua vez já me tinha decepcionado em relação a CONVERSA ACABADA, sem ir até dizer que «cada filme dele me dá saudades do anterior» — que me parece pertinente, como contraponto ao elogio consensual que o filme tem vindo a obter, a crítica que segue este longo preâmbulo. O filme é constituído por enquadramentos: planos fixos, alguns travellings no eixo frente-trás. A imagem é magnífica, de um contraste notável. A ponto da fita ser praticamente redutível ao pequeno fascículo, abundantemente ilustrado, fornecido pela produção. Esta fixidez dominante repercutese ao nível do desempenho dos actores, muito «teatral» em que os gestos visam a posição, a


mímica, a expressão — em jeito de máscara. Estas opções parecem coerentes com a escolha do preto e branco e indicam um regresso às origens, à estética do mudo. Botelho aponta de bom grado as referências: Griffith, Dreyer... Porém, a par destas citações facilmente identificáveis, outros enquadramentos remetem para outros autores: Hitchcock (a escadaria), Welles (a arenga sobre fundo de jornais), e é aqui que começa a contradição estética, a ambiguidade ética. Porque Botelho não ignora que desde Griffith o cinema evoluiu, mas estas referências a uma estética posterior, tiradas do contexto — câmara livre de movimentos, diálogos baseados no implícito, intervenção do fora de campo, etc. —, são voluntariamente empobrecidas pelo realizador, num filme em que a narração se limita à «exposição» (donde o papel dos enquadramentos). Fundamentalmente o que aqui está em causa é a montagem: submetido a uma intriga livresca, o filme desenvolve-se de cena em cena, cada qual estilizada pela montagem em oposições francas — cima / baixo, uma personagem / o que a personagem tem pela frente, etc. — mas desligada da anterior como da seguinte. Botelho explica esta montagem elíptica afirmando que se trata de deixar trabalho ao espectador. Não deixa contudo ao espectador a tarefa de estabelecer os elos narrativos — a «metáfora» einsensteiniana nunca é utilizada — visto que o resultado é mostrado: se Botelho nos deixa os buracos é porque a convenção permite preenchê-los. Ainda por cima, há um comentário off que se encarrega de compensar o tal aspecto descosido da narração: a posição teórica em prol da elipse não é, parece óbvio, assumida até ao fim. É aliás esse comentário off que transporta quase toda a carga cómica do filme. Desta forma acaba por se opor às imagens, tanto pelo conteúdo — na cidade de desempregados só se vêem operários — como pela função — a ironia contra o drama. Não se trata nem duma mistura nem duma alternância de comédia e de tragédia, mas de uma preocupação contraditória de desactivar o pathos e dramatizar a convenção donde só pode resultar frieza e descomprometimento. Estas contradições ressurgem no coração da «mensagem»: filme sobre o peso da família, mas esta é tratada ora de maneira negativa — as personagens são esmagadas pela família; a «órfã» é a única que se safa — ora positiva — ao fundar uma nova família a «órfã» encontra a felicidade; sobre a miséria — mas Sebastião morre acidentalmente e não por obra dum fatum social — e a riqueza — mas a riqueza aristocrática está arruinada (a senhora Vilaverde) ou ligada a uma ideologia materialista caricaturada que, pelo contrário, é tipicamente pequenoburguesa (o senhor Cremalheira) —; em suma, Cecília escapa à infelicidade, não apesar do facto de ter sido «criada», mas justamente pelo seu estatuto social; bem-aventurados os pobres honestos — Sebastião é condenado pelo autor por ter tido a veleidade de matar a mulher — não andamos longe da ideologia salazarista... De que tempos se está a falar? A legenda indica: «este tempo», mas Botelho admite (entrevista com A. Roma Torres no JN de 17/9/88) que esse tempo é «não directamente hoje, mas Portugal aqui há 10 anos ou daqui a 10». Quer dizer um lugar abstracto e fora do tempo. A mesma incoerência se verifica em relação ao público a que se dirige, mais alargado do que a das cinematecas ou dos cineclubes, mas simultaneamente tentando fazer um filme que resista ao tempo (este público chama-se posteridade). O inventário das contradições, das ambiguidades ideológicas — sabe-se que Botelho é um fervente defensor do sistema I.P.C. — é fastidioso e tanto mais triste quanto estas hesitações se integram num discurso de defesa do cinema com o qual só se pode estar de acordo, e no fundo talvez escondam pura e simplesmente uma grande insegurança — a repetitividade desse discurso em vários jornais, bem como o fluxo das declarações do autor que mal deixa lugar para o interlocutor intervir, parecem sintomáticas; o «método Coué» do auto-convencimento já tem barbas. A parte de pose nesta atitude, neste discurso, reforça o dado da insegurança. Só que o discurso implica um certo programa — a austeridade — e defende uma moral — a expiação puritana: o cinema deve «lavar-se dos seus pecados e excrementos» (apresentação no fascículo fornecido pela produção). Regresso à tradição e regresso à inocência, por outras palavras, regresso a uma prática dispensada de comprometimento (a «inocência»), com a caução dos «mestres» — figuras paternas — e respeitadora da instituição — a mamã I.P.C. (a «tradição»). O peso da família é muito evidente... Com efeito, a verdadeira crítica é que este filme possa ser assimilado a outras tentativas de exploração de vias abandonadas no decurso da história ao cinema, que Botelho possa ser comparado a Dreyer, quando é para um estado


anterior do cinema — ou seja ao movimento — que somos remetidos. Resta falar dos enquadramentos; mas, para além do facto da sua qualidade técnica ser atribuível a Elso Roque, a composição fotográfica é muitas das vezes uma fuga, uma compensação visual da ausência de vida. A exigência, no plano técnico, de Botelho pelo menos destaca-o sem sombra de dúvida da mediocridade das imagens da «nova geração» de cineastas portugueses. Convém porém reafirmar que é o envolvimento discursivo que nos leva a «atacar» o filme desta maneira — noutros contextos poderíamos tê-lo achado ambíguo, porventura, mas menos maçador que certos filmes de Straub... Quando alguém assume o papel de redentor não nos deixa outra alternativa senão crucificá-lo. S.


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