James Bond ou a Essência do Cinema Devo confessar que ainda há coisa de dois anos nunca tinha visto um filme de James Bond — a minha cinefilia só me encaminhava para os filmes «de autor»; foi uma entrevista de Fellini (in Le Nouvel Observateur, nº 2228, pp. 16 a 22, Março de 1984), que me levou a preencher esta lacuna. À pergunta «quais são os seus filmes favoritos?», Fellini respondia com uma lista quase exaustiva dos realizadores italianos, mencionava Buñuel, do qual tinha recentemente visto um filme pela primeira vez (O Charme Discreto da Burguesia), experiência feliz que o tinha decidido a ir ver todos os outros, e acrescentava: os filmes de James Bond… À pergunta «de que gosta mais na vida?», respondia: «as mulheres, o esparguete e os filmes de James Bond… ». Não vendo razões para não levar a sério as declarações de Fellini, decidi ir ver as tais fitas de James Bond e compreendi rapidamente o entusiasmo de Fellini. Os filmes de James Bond pertencem à «série B» tanto pelo género, como pelo facto de serem confiados a realizadores médios, para não dizer medíocres, mas distinguem-se da «série B» tanto pelo orçamento investido como pelas largas camadas de público. A bem dizer, nenhum personagem aguentou com tal constância de êxito tantas fitas, tanto tempo e isto apesar da decrepitude dos sucessivos intérpretes. O que é que o público — do qual doravante faço parte — procura num filme de James Bond? Não é decerto uma história: os argumentos são todos semelhantes, com um louco a possuir uma arma capaz de destruir a Terra, que James Bond eliminará no fim do filme — nem sequer subsiste uma amostra de suspense ou um factor de surpresa; psicologia ainda menos: o vilão é louco, a mulher imediatamente seduzida por James Bond, os preliminares são mais que reduzidos, os protagonistas vão rapidamente para a cama, «007» mata sem hesitação ou remorso, etc.; nem sequer a mensagem moral ou política: os espiões soviéticos podem ocasionalmente colaborar com Bond, por vezes vão até condecorá-lo… Esta confusão, estes atalhos da ficção, são esclarecedores: trata-se de fitas cómicas. Não propriamente de filmes burlescos, mas de filmes que não se levam a sério. Começaram por parodiar o cinema de espionagem — cuja aparição, enquanto género específico, está ligada ao clima da «guerra fria» — mas não tendo tardado a superá-lo no plano espectacular, acabaram por se auto-parodiar. Não se caracterizam pelo cómico de actores, nem por um cómico de situações, ainda menos por um cómico de diálogos; o cómico dos filmes de James Bond define-se sobretudo pela negativa, pelo facto das situações dramáticas, susceptíveis de provocar angústia, terror, etc., noutro contexto, são aqui previamente desmontadas, deixando lugar a um mero prazer jubilatório perante as exibições suficientemente espectaculares para captar a atenção do público mas cuja gratuidade impede que a emoção se prolongue para além da sua execução. Mais precisamente: este conjunto indefinidamente repetido, de filme para filme, de proezas físicas muito codificadas — saltos, descidas, mergulhos, perseguições, afrontamento de adversários monstruosos — aponta para a estrutura dum espectáculo de circo. A presença de mulheres bonitas desempenha exactamente o mesmo papel que a trapezista cuja aparente fragilidade física basta para aumentar a atenção independentemente da sua actividade física real, não raro assaz reduzida. Ora o espectáculo de circo e os seus derivados ilusionistas estão na origem do espectáculo cinematográfico. Por um lado, são directamente responsáveis pela eclosão das escolas burlescas; por outro, é com base numa análise das emoções que provocam que Eisenstein elabora a sua teoria do cinema, uma das únicas existentes até aos nossos dias. A emoção vivida durante um espectáculo de circo — ou durante um filme de James Bond — é equivalente, em intensidade, a todas as que a ficção mimética é capaz de suscitar, mas desta feita liberta de todo o peso do real… como um grau zero da emoção. Apesar do que pensam Gérard Genette e todos os semiólogos que adaptaram a sua terminologia, a ficção romanesca continua a ser mimética e não diegética. A influência do cinema só pode, aliás, reforçar essa impotência em criar um universo ficcional cuja «impressão de realidade» não se filia em relações pré-estabelecidas, pré-codificadas entre as diversas denotações. O carácter «elementar» da emoção produzida pelo espectáculo jamesbondiano é acentuado pelo facto de que os protagonistas humanos manipulam forças verdadeiramente elementares: a água