Sombra de Quixote em paisagem servil Evocar as truculentas junqueiradas de João César Monteiro só equivale, no essencial, a falar de «excessos» numa terra condenada à mais monocórdica pasmaceira – mesmo se pretendermos valorizar o conceito de autores na actual orquestra de cineastas, cada dia mais manca e deficiente de genica (que é, supostamente, o apanágio da mocidadede virtuosa). Os bem pensantes da ex-capital do Império tudo perdoaram, acarinharam ou aplaudiram a João César. Relatam-se episódios lisbonenses, rindo à socapa: «Ele terá dito, durante um jantar (pois era um quase proleta papa-jantares), a propósito da intocável poetisa Sophia de Melo Breyner (sua amiga e protectora a um tempo) que a versejadora tinha o garbo da Greta mas não a greta da Garbo». Ah, ah... Ser malcriado, esbanjador, injuriador, ladrão de discos e livros, incendiário à ses heures, dilapidador de dinheiros públicos, pedófilo, etc., nada disso chocou – ou melhor: tudo isso encheu gazeta e divertiu – o burguês lisboeta, cansado de suas amantes, seus travestis e seus mignons. Ele foi – e sabia sê-lo – carne para esse triste canhão, mas a coisa ainda dava para esfregar as mãos (a fim de não morrer de frio) e épater le bourge (a fim de não morrer de fome). Como não era uma personagem particularmente corajosa, em caso de perigo eminente (corporal ou judicial), restavalhe o privado pedido de desculpas (após a publica injúria) e aquela auschwitziana compleição que não nos permitia imaginá-lo «à sombra» – embora, honra lhe seja feita, na prisão tenha rodado planos memoráveis. Pela parte que me toca, preferirei sempre a dança do macaco nas grades ao som desbragado de uma ária de ópera à obscena citação de PICKPOCKET de Robert Bresson (e a propósito: por que raio a maioria dos cineastas se pelam por uma benzedura e um odorzinho a santidade?). A falta de bravura mental (e porventura física, a acreditar no retrato in motion que de si próprio nos dá) aliada a uma incorrigível insolência e plasmada na certeza de poder estar sempre em boa companhia (o excesso de citações quase confina à «diarreia» em certos momentos da sua obra...) fazem deste malogrado criador uma das figuras nacionais mais parecidas e mais diferentes de «ser português». Pois o português possui (por razões também históricas de vigilância do espírito) um notório défice de humor – qualidade de que João César Monteiro era dotado muito acima da média – e uma acentuada cobardia na hora em que é preciso assumir os actos cometidos – quanto mais as consequências que deles podem decorrer. A questão do «rodear-se de boa companhia» também tem que se lhe diga. Não se trata apenas de uma exibição de «gosto» – bom (no caso dos grandes como Stroheim, Céline ou Breton) ou mau (no caso do bombista cónego Melo ou do cantor pimba Quim Barreiros). Trata-se de uma busca de cumplicidade, não raro elitista, mas sempre reveladora de referências culturais no mínimo banais (ou talvez, de uma cultura exibida mais do que vivida e reflectida). Salda-se por uma situação de reconhecimento entre connaisseurs, situação que no filme A BACIA DE J.W. (desde logo o título é uma alusão ao crítico francês Serge Daney... ) me chega a inspirar asco: uma obra pejada de ideias e imagens brilhantes encontra-se literalmente contaminada pela rede apertada de citações (elas caem, leves, por dá cá aquela palha...) que tornam o filme assaz rebarbativo para quem não possua uma cultura de café francófila, tipo anos 70 e melenas, igual à do autor. Lembro-me que o filme mal aguentou uma semana no Quarteto, e a sua saída de sala, julgada prematura, desencadeou um abaixo-assinado em defesa do filme (o sucedido poderia dar aso a um sketch, à laia de Karl Valentin, só que em vez de «teatro obrigatório» falar-se-ia de «cinema obrigatório»). Nunca até desde e então, que eu saiba, a carreira comercial de um filme português foi tão publicamente lastimada. Acrescente-se que a crítica francesa, sensibilizada com o filme que lhe é, blague à part, de alma e corpo destinado, ADOROU! ADOROU! ADOROU! Mártir de sua maléfica inteligência, bobo lúcido e louco de uma corte prostrada perante seus arrebatadores encantos, João César Monteiro viu-se por assim dizer obrigado a prosseguir na linhagem de sucesso d’estime dos seus filmes 35mm ficção, 90 a 120 minutos, centrados em torno de um tal de João de Deus, ou Jean de Dieu ou um outro avatar do mesmo. Se a primeira aparição de João de Deus – como o líricó-pedagogo do século XIX e como muitos meninos abandonados na