Fruto de uma parceria entre os realizadores Jorge Silva Melo e Solveig Nordlund, enxertado na árvore de um espectáculo homónimo mas não idêntico, o objecto fílmico E NÃO SE PODE EXTERMINÁ-LO? vem-nos de um tempo e de uma postura que hoje poderão porventura parecer improváveis. Na verdade, goradas as esperanças de um processo revolucionário em crescendo ininterrupto, restam, na cena da criação artística e do activismo cultural, actores-agentes que continuam arduamente empenhados não só em prosseguir e aprofundar as suas experiências e pesquisas mas não menos em perspectivá-las e inseri-las no xadrez, na altura bastante legível, dos pólos de difusão existentes, entre os quais avultava a RTP. Aliás, a consciência de que uma presença marcante dos defensores e praticantes do cinema de autor no seio da televisão era uma questão-chave no que que dizia respeito ao devir do cinema em Portugal foi algo que levou vários cineastas portugueses de renome a envolver-se, pessoal e profissionalmente, nos meandros do respectivo serviço público. Significa isto que, volvidos mais de trinta anos, não é fácil restituir com a clareza, a vivacidade e a densidade necessárias o contexto em que, após a aventura de descobrir e encenar um autor de cabaret recém-arrancado ao poço do esquecimento – o bávaro Karl Valentin –, os artistas da Cornucópia e do Grupo Zero (dois conjuntos de pessoas com uma grande área de intersecção) empreendem um filme «a partir de…» cujo destino é (a forma / as formas do objecto em causa assim o diz / dizem) antes de mais a difusão televisiva. Recorde-se, não obstante a referida limitação, que o 25 de Abril dera à luz um sonho de televisão outra, cuja transformação em caixinha de embrutecimento puro e duro ainda levou alguns anos a concretizar plenamente. Estamos portanto perante um objecto fabricado com cuidados e primores que o afastam obviamente do formato poeirento do «teatro televisivo» e também da variante registo / rasto de um objecto efémero (o espectáculo teatral). Conhecem-se as dificuldades com que se defronta aquele(s) que pretende(m) devolver, através das imagens em movimento e sua gramática (tão instável quanto tendente a fixar modos de suscitar afectos…), um produto que obedece aos imperativos das técnicas do gesto. Donde, as mais das vezes, uma assumida demissão do tipo: câmara fixa e frontal abarcando a totalidade da cena para registar imagens que mais não são do que um testemunho de antemão pálido. Aqui, desde a abertura (explicações de Luís Miguel Cintra acerca do autor, da natureza do texto e do teor do projecto) até à reorganização do guião (alteração da ordem dos sketches, acrescentos, etc.), passando pelas decisões de ordem estética e dramatúrgica, tudo aponta para uma ambição que, sem descolar do «a partir de…», se apoia num respeito exigente pelo público, o qual obriga os fazedores ao exercício da liberdade. Citemos, a título de exemplo, o que nos revela Luís Miguel Cintra (e o filme confirma) relativamente à permanência dos elementos cenográficos – porta de vidro embaciada, mesinhas quadradas com toalhas aos quadrados, fachadas de casario lisboeta, etc. –, permanência essa que tem, como é evidente, pesada influência na construção de um mundo intra-fílmico, arquetípico sem se vergar ao vocabulário do cabaret, muito mais próximo de uma iconografia luso-lisboeta do que seria de esperar; e logo nos vem à memória a maneira como, embora por motivos e com finalidades diversas, Jacques Tati utiliza, no MEU TIO a mesma fachada (exactamente a mesma!) para filmar a escola, a garagem e a fábrica, todas elas situadas na zona moderna dos subúrbios parisienses. Também o desdobramento da personagem construída pelo cómico Karl Valentin, desempenhada por Jorge Silva Melo e Luís Miguel Cintra – que culmina na cena em que ambos aparecem de costas, como pai e filho, falando, com falsa e verdadeira ingenuidade, da guerra que o capitalismo internacional promove para sua própria perpetuação, nomeadamente através da estratégia de divisão e aterrorização das massas trabalhadoras – tem um fortíssimo valor de rima interna e também de alargamento das pessoas humanas que essa figura abarca. Actores de primeiríssima água (Isabel de Castro, Zita Duarte, etc. para além dos já citados), tradutores talentosos (oh saudosa e genial Luíza Neto Jorge, imensa poetisa), guarda-roupa rigoroso (Cristina Reis), equipa de imagem chefiada por Acácio de Almeida, Paola Porru no som, contribuem para o sucesso de um empreendimento que, não chegando a inventar uma linguagem absolutamente própria (veja-se a mecânica pouco audaz dos cortes e uma escolha sem rasgo de escala de planos), nos permite reviver não apenas um momento de encontro entre artistas muito
talentosos como um comum desvendar de modos de bradar bem alto a angústia enunciada pelo título – E NÃO SE PODE EXTERMINÁ-LO? Subentendido: o capitalismo. Regina Guimarães Maio de 2012