L'ange-étalon As coisas mudam. Em poucos anos, muitas salas de cinema do Porto fecharam ou foram transformadas em Bingo mas, mais recentemente, têm surgido novos espaços. Se o Cine-Gaia, pelo seu afastamento e pelas dificuldades de acesso, surgiu como uma tentativa condenada à partida cuja inviabilidade, previsível desde a abertura da sala, apenas serviu para «confirmar» a nãorentabilidade de uma programação de qualidade — como o seu programador não deixou de frisar no decorrer do recente colóquio sobre Cinema Europeu no Porto —, o numeroso público que tem acorrido ao auditório da SEC — Casa das Artes — constitui um vigoroso desmentido das «teorias» dos merceeiros da distribuição. A atribuição da programação à distribuidora Atalanta, a única que hoje em dia pratica uma verdadeira política cultural, constitui por agora a garantia de que esta nova orientação não seja tão efémera — porque, para os tais merceeiros da distribuição, isto de filmes é como vender batatas: como o lote de mercadorias estragadas é mais fornecido do que o stock de produtos de qualidade, tem de ser despejado no mercado... (Em contrapartida, a anunciada atribuição pela SEC de cinco salas à distribuidora «Castelo Lopes» permite apenas concluir que a SEC não esconde a incoerência das suas escolhas — ou melhor a sua coerência profunda, posto que o auditório da rua António Cardoso não passa duma colherada de mel para melhor engolirmos a amarga pílula. Não é pelo facto de a distribuição no nosso país estar nas mãos de um monopólio que todos os outros distribuidores têm forçosamente uma política mais criteriosa ou menos condicionada pelo box-office...). Até ver, a programação da Casa das Artes tem alternado filmes de vanguarda recentes — NOVA VAGA de Godard — ou «clássicos» — o que possibilita comparações muito úteis — com filmes de realizadores menos conhecidos — J. Campion, P. Bogdanovich — e filmes portugueses. Acresce que a distribuidora não parece mostrar-se sectária, tendo programado uma fita da casa «Lusomundo» — daquelas que é costume guardarem na gaveta: TEXASVILLE — e aberto a sala a uma difusão semanal de obras experimentais ou marginais, organizada pelo N.C.I. em colaboração com a Casa de Serralves. Ainda não é propriamente a Cinemateca cujo projecto continuamos a defender, mas devemos assinalar este passo positivo. Quanto ao público, esse tem respondido plenamente à inesperada oferta que veio colmatar em parte a enorme lacuna da cultura cinematográfica portuense e as sessões desenrolamse com a casa cheia. Pudemos assim descobrir um cineasta praticamente desconhecido fora dos meios gay e underground: Derek Jarman. Derek Jarman só é conhecido do grande público através de CARAVAGGIO, o único filme seu distribuído no circuito comercial. Nele encontramos os traços essenciais da personalidade de Jarman: pintor de formação, como é notório tanto ao nível do tema central (aliás o realizador não hesita em mostrar Caravaggio a pintar, ao contrário de Pialat no seu VAN GOGH) como ao nível dos enquadramentos e do tratamento da luz (que tendem constantemente para a abstracção); inglês, herdeiro da «beat generation» americana (Jarman está ligado a W. S. Burroughs que filmou em PIRATE TAPE e a B. Gysin do qual adaptou o «Totem Kino-optique» em DREAM MACHINE), filiação perceptível na indolência com que mistura, sem efeitos enfáticos, a reconstituição e o anacronismo; homossexual assumido (as cenas mais profundas do filme são significativamente aquelas em que aborda o desejo como pulsão agressiva — o combate entre Caravaggio e o seu modelo — e em que visualiza a «paixão» do pintor que se sobrepõe ao Cristo — adoptando uma forma narrativa relativamente tradicional: découpage por «cenas», continuidade...), CARAVAGGIO é com efeito o filme mais acessível de Jarman, o menos experimental — um pouco como o recente EDWARD II —, o mais «claro», mas contudo não necessariamente o mais interessante da vasta obra dum cineasta que optou por trabalhar à margem dos circuitos comerciais. O «salto» deste criador para o cinema processa-se em duas etapas: Jarman começa por pintar os cenários de papelão dos filmes THE DEVILS e SAVAGE MESSIAH, de Ken Russell, em que o barroco espectacular é simultaneamente ironizado e exaltado — de resto, Russell defendia uma concepção da revelação, do desejo e do génio como forças irresistíveis e espontâneas, a contra-corrente de todas as ideolgias do «trabalho» desenvolvidas na época — e, fascinado pela intensidade e pela complexidade da criação
cinematográfica, troca o pincel pela câmara super 8; mais tarde, em 1976, após uma dúzia de curtasmetragens experimentais, Jarman lança-se na narrativa em 16 mm com SEBASTIANE seguido, dois anos depois, por JUBILEE. A faceta mais surpreendente destes dois filmes reside no facto de, não obstante proporem uma iconografia que corresponde a uma estética etiquetada — os corpos nus de SEBASTIANE fixam o imaginário gay, os penteados e as maquilhagens de JUBILEE a moda punk —, as aquisições das experiências plásticas anteriores parecerem postas de parte, cedendo lugar a um trabalho estritamente contemplativo. Em contrapartida, as primeiras longas-metragens encenam a impossibilidade, que conduz ao martírio, de assumir uma relação homossexual num contexto social repressivo — o exército romano ou a Inglaterra dos anos 70 —, colocando o problema da homossexualidade ao nível do conflito individual, enquanto nas obras posteriores, ao assumir a afirmação homossexual, Jarman vai simplificar este discurso alargando-o à esfera do conflito de um grupo social face às instituições do poder — à medida que a violência do discurso contra a intolerância do governo thatcheriano e a vaga de conservadorismo após a relativa liberalização dos anos 60 se manifesta com uma pujança crescente. Assim, Jarman parece desenvolver paralelamente uma obra de «espectáculo» — moldada pela narratividade e evidenciando um domínio cada vez mais rigoroso da imagem (muito despojada) e do ritmo (tendendo para a teatralização: dos «efeitos» paródicos do cinema fantástico em THE TEMPEST, aos cenários irrealistas de arena, que delimitam um espaço fora de qualquer lugar identificável, onde se desenrola o drama de EDWARD II) — e uma obra de «imagens» — em que das primeiras experiências, caracterizadas pela ironia e pela aceleração (SLOANE SQUARE) passa para uma abstracção cada vez mais depurada, elevando a denotação a um puro jogo de formas e de cores em movimento (através da utilização da sobreposição em IN THE SHADOW OF THE SUN, da repetição infinita em THE DREAM MACHINE, do ralenti em THE ANGELIC CONVERSATION, etc). Todavia, dois dos seus filmes operam a síntese entre estes vectores de criação, a saber THE LAST OF ENGLAND e THE GARDEN, que são também os dois trabalhos em que Jarman intervém mais directamente, tanto na área da imagem, atrás e à frente da câmara (é ele próprio que roda os travellings ao ombro), como no plano do discurso (in e off, escrevendo ou dando a ler a Nigel Terry os seus «voice overs»). A temática destes filmes cristaliza-se na figura do homossexual e do seu martírio, que já não remete para a imagem do Cristo mas para a do anjo, modelo impossível e corpo saudoso da puberdade, desta terra desligado. É a referência ao anjo que permite medir a «maldição» do desejo assumido na sua dimensão de violência. Mal deixa de ser objecto de contemplação, a beleza do corpo carrega-se de uma violência que encontra resposta na violência institucional. O motivo do anjo aparece como «guia» — já em THE TEMPEST onde Jarman, antes de Greenaway com o seu PROSPERO'S BOOKS, interpretara o drama onírico como uma iniciação esotérica — e, ao mesmo tempo, como figura esotérica — e, ao mesmo tempo, como figura condenada — depenado em DREAM MACHINE. O anjo coloca a questão da homossexualidade em toda a sua ambiguidade, visto que simboliza a ausência de sexo — do qual Jarman postula a violência sem conseguir assumi-la — mas possui irremediavelmente um cu — logo aparece como objecto do desejo e sujeito da provocação. S.