LA COLONIE MISE À NU PAR SES CÉLIBRATAIRES MÊME Explicadas que foram as condições de realização, montagem e até exibição (cf. Encontro com Jean Rouch neste número de «A Grande Ilusão») em que LES MAITRES FOUS acontece na obra de Jean Rouch, ninguém ficará indiferente à grande coragem que presidiu a todo o processo de crítica e auto-crítica envolvido no fabrico desta pequena obra-prima. O enigma que o filme revela e, a seu modo, resolve (devolvendo-o inteiro ao espectador) reside já no próprio título, propositadamente ambivalente: se, por um lado, as imagens mostram um ritual no qual uma comunidade negra africana — os aouka — parodia o brutal exercício do poder por parte dos «senhores» colonizadores (les maîtres), qualificando estes últimos de temíveis loucos, por outro, a maneira como Rouch monta essas imagens e as articula com outras (o princípio e o fim da fita) demonstra a que ponto a necessidade de exorcizar os crimes de lesa-civilização do colonialismo branco, através dum rito insuportavelmente primário (no sentido de leitura literal de actos e factos observados, no sentido também de reconstituição, estilizada porque elementar, da rede obscura de impulsos que levam os actores do poder a desempenharem-no como se vê...) leva a que os intervenientes na cerimónia apareçam aos nossos olhos como mestres (maîtres) consumados no jogo vital da loucura. E o público que somos acredita realmente que os aouka aprenderam a dominar a loucura para se salvarem da dominação dos loucos. O génio de Rouch consistiu essencialmente em captar o invisível das relações no visível da sua teatralização e em optimizar o entendimento do que nos é estranho, porque oo mesmo tempo nos é familiar — através da montagem tão certa, cruel e sensual que a curta duração dos planos não impede a impregnação nesse combate da terra e do sangue, fundador de todas as relações históricohumanas (ou seja, míticas...); através do comentário off, cujo valor de delírio interpretativo questiona não só o saber-ver dos brancos como, por um efeito de espelho, o saber-fazer dos pretos, transformando a apetência do saber tout court numa pura precaução mental, numa antipoética da razão resignada; através, por último, do enquadramento discursivo do filme que corta pela raiz qualquer tentativa de minimizar ou iludir a importante discussão da barbaridade que as imagens propõem. Ao longo da sua aventura de caçador e presa das imagens do «outro mundo» aqui tão perto, Rouch registou muitos rituais que comportavam estados de transe. O que os distingue do rito de LES MAITRES FOUS é contudo fundamental pois que as divindades ocultas da cultura indígena foram substituídas por duplos em carne e osso: os brancos, detentores do poder político, social e cultural, de cuja dominação opressiva a cerimónia se apresenta como catarse possível. Como acontece em geral com as obras-primas — e esta por magia e felicidade foi precoce — ao realizar LES MAITRES FOUS, Rouch descobre uma utilidade nova do cinema. Acometido pela revelação dos poderes do instrumento, o iniciado construirá pedra a pedra o edifício teórico e experimental do ciné-transe. Como raras vezes acontece com os grandes cineastas é o seu próprio olho que Rouch põe a nu. R. G.