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Regina Guimarรฃes
LAPSO
a partir de desenhos de Carlos Mendonรงa
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agora que aos nossos filhos já não diremos dançai nos prados enquanto há prados lavrai a terra enquanto há pedras colhei os frutos antes de serdes comidos agora toda a dança carrega consigo um corpo de cidade que se desarticula e arranca raízes ingénua e cruelmente como a criança até quando criança? arranca flores
assim as esquinas se desencontram os fluidos do amor velozmente sobem à cabeça e o solo de que são feitas as ruas deixa de ser mortalha ou motivo de crucifixão
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manhã na praça carlos alberto um olhar feminino a servir café curtíssimo na esplanada das mãos quase frígidas frente ao quiosque mais que vermelho
é um blues o que se ouve em fundo cantado por uma voz ardente com o rumo do desgosto a desfazer as frases como se fazia às velhas camisolas de lã
diz a cantora que o blues é a coisa mais parecida com a paixão e eu logo me lembro filme do spike lee em que o protagonista desasado explica que à falta de amor só resta a música imensa
a minha cidade fica longe de chicago mas o chão queima como um solo de trompete e voar é a coisa mais parecida com o desejo de ouvir
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tu anjo que enterras o machado de guerra ou o fim da história tal como se talvez ou os passos em arco de volta inteira ou a deserção do anterior e do seguinte ou o sudário feito de nesgas de céu azul ou os olhos por saberes que a terra é gulosa ou as flores murchas oferecidas aos novos deuses ou as primeiras palavras separadas de segundas intenções
tu anjo que encerras o sexo do tema explícito ou corres a cortina sobre a antiguidade do vazio ou fechas a conversa com duas pedras na mão ou chegas à meta antes de ela estar marcada ou partes do princípio que o fim chama outros fins ou citas uma frase que ninguém ainda disse ou encurtas o encontro para imitar o relâmpago ou dominas o desejo de esquecer as injúrias
tu anjo que troças da gravidade e te esqueces para sempre de cair
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o corpo tabuleta aponta para fora de si quando deseja chamar para o segundo sexo e o segundo coração
quando deseja ser lobo e veste a pele incondicional da floresta sonhando alto com currais repletos de ovelhas a balir o corpo perneta e maneta aponta para o lugar mítico onde a sua doce feição onde a sua doce imperfeição não podem dormir o corpo refeição aponta para o que ficou na beira do prato
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que lindo seria o corpo tão-só borra de café ou melhor mancha de chá alastrando no olho de quem vê ao ritmo de uma dança obscena tão plenamente celeste quão plenamente terrena
que lindo seria o corpo somente para ler destinos e mudar de ideias
o corpo mentindo como se fosse urgente
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anda dana nada
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cheira a talho ‒ o corpo perde o seu latim a explicar que não quer ser liberto que os jugos lhe são jogos alegres e breves
cheira a carne vermelha mas o corpo se ao contrário não é o contrário de si ‒ é como uma velha rosa que sai à rua já murcha de roupão entreaberto
o corpo quer ser deserto
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medito sobre esse movimento que mais não seria no avesso deste dia do que apagar o seu próprio rasto movimento apagamento entre escritas terrivelmente invisíveis derrapagem de anjo disfarçado de bicicleta travagem de nuvens derrubando muros corrida contra o corredor ao longo da sua frase habitual inabitada
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as pernas mais bem torneadas os braços mais bem amados são um estorvo quando todo o corpo na sua primitiva liquidez só pode convergir para uma fonte imaginária uma fonte imaginante uma fonte imaginada
e ela fica muito aquém de uma terra do passado combatendo contra a água
quando o corpo é caldo quente na noite já entornada
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primeiro o rosto como um escudo e a ideia de defesa que se instala no meio da colecção de signos que limita estes lugares invertebrados
para ganhar altura e amplitude crística sem contudo despir a sua armadura o corpo adia sine die nomear outras partes da sua geografia ora quando dança o corpo é de um só dia à maneira do insecto muito alado ou do beijo dado à revelia quando dança preto no branco desbota e dura para além de si até ao cabo da noite confessável
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considerando a crosta e a cratera ele ou ela são a ferida dentro da ferida são a rosa dos ventos escangalhada são o caminho encolhido em ambos os sentidos são a corda amorosamente bamba são o silêncio treinado do arrependimento são o bom dia lançado ao mudo chão são as duas asas da terrina escaldante são também a mesa eternamente posta mas a comida não servida e os heróis de pernas à mostra para exemplo dos que não o são considerando a crosta e a caveira ele ou ela já não renasceram por dá cá aquela palha num estábulo qualquer a pretexto de uma estrela
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note-se que dentro da cabeça ainda é reservado o direito de admissão ainda se duvida da língua dos semáforos ainda o povo se manifesta em marcha atrás ainda se pendura o sexo à cintura ainda se pendura o sexo ao pescoço ainda se pendura o sexo a tiracolo ainda se pendura o sexo no bengaleiro antes de entrar em casa
note-se que não faltam motivos de cair nas esparrelas em vez de cair no excesso de prudência ‒ aliás o compromisso é agarrar o céu sem chegar a tocá-lo
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cair não é o contrário de voar mexer não é o contrário de estar quieto assim como ver não é o contrário de chorar mexer não é o contrário de chorar voar não é o contrário de ver assim como estar quieto não é o contrário de cair ver não é o contrário de mexer chorar não é o contrário de cair assim como voar não é o contrário de estar quieto
portanto ver chorar, ver mexer, ver cair, ver voar estar quieto contrariamente
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dói a perna que não se tem que o diga aquele a quem nada dói a não ser isso que não foi
dói talvez o que não se teve e nos foi sendo arrancado por imaginários ladrões de destino que asfixiam o que é pequenino dói porém também a perna que se tem a mão que se busca o cabelo que se colhe a nudez que não se assusta e o coração levado às costas
dói a realidade mal toma esse nome como se ela injuriasse quem o diz e não quem ouve
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se acreditares que te podes perder entre o céu e o chão se te perderes entre aquilo em que acreditas e aquilo em que não
então sim farás falta – como se costuma dizer – e será esse o teu pé de dança o teu pé de meia sinal de esbanjamento e de poupança
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o texto da sua branca ausência o negro sobre negro do seu texto como um passo em falso reclama em voz cada vez mais alta pequenas aparições e sobretudo elegância estatística: o pente desdentado como gente o guarda-chuva roto como monstro o cabelo desgrenhado como luz o monte atarantado como amante o vestido desbotado e inconstante e tudo o que nem brilha nem seduz
o texto lutando contra seus anjos durante uma noite inteira como vem nas mais sagradas escrituras
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todo o possível do movimento é pedido de perdão é dito de gratidão
noutra qualquer linguagem jamais seriam audíveis tropismos e piruetas deslizes, quedas e saltos puros repentes de amor sempre incertos de seu espaço e escassos de seu cimento lapsos de arrependimento que apesar da brevidade do que se sente ou não sente duram até não haver memória do desculpar maneira de agradecer mania de continuar
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a sua escola foi roubar o lugar na bicha da cantina o seu exame foi fugir dos cálculos por alto da polícia o seu diploma foi concedido pelos números ímpares
aquilo que ele diz quando ela dança tão perto do pulsar do coração como em Eva a tal costela de um Adão é a reza dos humanos que se evadem antes de serem repasto de quem nunca sai da mesa
aquilo que ela diz quando ele dança dentro desse corpo que é dos dois é que a carroça rola sem a servidão dos bois alegre como os prados e as pedras e os frutos alegre como os pardos e as perdas e os furtos alegre como os partos e as pernas e os fumos aquilo que ele não diz e ela não dança
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