Há uns tempos atrás, escrevi, em francês, um texto sobre o livro LE FEU QUI DORT de Mário Dionísio, razão pela qual comecei por recuar perante a tentação de reincidir. Todavia, a obrigação de me exprimir em português, colocando-me assim numa situação espelho relativamente à de Mário Dionísio quando empreendeu o seu livro, por um lado, e o desafio de aprofundar a minha análise ao longo deste exercício de releitura, por outro, incitaram-me a meter mãos à obra. Com efeito, o facto de Mário Dionísio, poeta português, escrever um livro de poesia em língua francesa é, desde logo, uma questão fulcral. Nas badanas do livro impresso, encontramos uma citação, talvez retirada de uma entrevista, em que Mário Dionísio explica que o problema não é por que motivo escreveu o livro em francês, mas antes por que razão o escreveu, independentemente da língua em que se exprimiu. Ora, isto é verdade e não é. Porque acontece demasiado raramente alguém escrever uma obra literária em língua estrangeira. Pode acontecer devido a contactos privilegiados, a um convívio intenso, a uma fluência acima da norma. Há exemplos dessa prática esporádica, dentro de uma geração mais ou menos contemporânea. Mário Cesariny escreveu alguns poemas em francês. Mas, tanto quanto sei, ninguém encarou comparável desafio, ninguém se envolveu em semelhante aventura (esta é a palavra que Mário Dionísio emprega). A aventura consiste em ser habitado por essa outra língua, pois certos versos de LE FEU QUI DORT surgem já formados na cabeça e não lhe dão descanso. Aliás, o autor diz que, durante o tempo de migração para o francês, não conseguiu escrever nada em português. O que significa que se trata de um processo simultaneamente voluntário e involuntário, um pouco como se o poeta estivesse possuído por forças que lhe são externas. Que desse processo resulte todo um livro parece-me ser algo de absolutamente excepcional. Recorde-se que Mário Dionísio não era bilingue; embora se movesse muito à vontade no francês, a língua de Éluard não deixava de ser uma segunda língua, uma língua estrangeira. De resto, logo a seguir à redacção de LE FEU QUI DORT, o poeta regressou, sem hesitações ou desvios, ao português. Portanto, esta escolha não terá sido tão secundária como Mário Dionísio pretende... O exercício que estou a fazer – o exprimir-me numa língua que falo mas me é segunda – sendo o negativo do que ele fez, ajudar-me-á porventura a mergulhar mais profundamente nesta questão. A língua francesa que Mário Dionísio utilizou é uma língua particular, uma língua da escrita. O português em que eu me exprimo (também porque foi essa a língua que eu aprendi) é o português oral... Com as imprecisões a ele inerentes. Embora me debruce pela segunda vez sobre LE FEU QUI DORT, não se trata, de longe, de «esgotar» o livro. Numa fase anterior de estudo, tentei caracterizar a diferença, a oposição, entre a escrita poética e outras formas de escrita, com outras sintaxes. Na verdade, o propósito da escrita prosaica é levar o leitor a prosseguir a sua descoberta do texto, o que implica a utilização de palavras de um tipo particular – nomeadamente conectores ou pronomes cuja ligação aos respectivos antecedentes permitem uma economia de leitura que assenta no prévio conhecimento de certos elementos da frase – que induzem o movimento de passar para o segmento seguinte. O ideal de um narrador, romanesco por exemplo, é o leitor devorar, virar páginas e só parar na última palavra. O que o poeta almeja é exactamente o contrário. O poeta quer que o leitor pese cada palavra. Os poetas inventaram uma coisa, ainda em uso, chamada verso, que interrompe o curso do enunciado, nem sempre conforme os blocos resultantes da ordem e da organização sintáxica. E por isso é muito difícil agarrar o efeito de conjunto de um livro de poemas, mesmo que ele seja relativamente curto como é o caso de LE FEU QUI DORT. Porque o poeta concebeu cada poema como um todo