Há uns tempos atrás, escrevi, em francês, um texto sobre o livro LE FEU QUI DORT de Mário Dionísio, razão pela qual comecei por recuar perante a tentação de reincidir. Todavia, a obrigação de me exprimir em português, colocando-me assim numa situação espelho relativamente à de Mário Dionísio quando empreendeu o seu livro, por um lado, e o desafio de aprofundar a minha análise ao longo deste exercício de releitura, por outro, incitaram-me a meter mãos à obra. Com efeito, o facto de Mário Dionísio, poeta português, escrever um livro de poesia em língua francesa é, desde logo, uma questão fulcral. Nas badanas do livro impresso, encontramos uma citação, talvez retirada de uma entrevista, em que Mário Dionísio explica que o problema não é por que motivo escreveu o livro em francês, mas antes por que razão o escreveu, independentemente da língua em que se exprimiu. Ora, isto é verdade e não é. Porque acontece demasiado raramente alguém escrever uma obra literária em língua estrangeira. Pode acontecer devido a contactos privilegiados, a um convívio intenso, a uma fluência acima da norma. Há exemplos dessa prática esporádica, dentro de uma geração mais ou menos contemporânea. Mário Cesariny escreveu alguns poemas em francês. Mas, tanto quanto sei, ninguém encarou comparável desafio, ninguém se envolveu em semelhante aventura (esta é a palavra que Mário Dionísio emprega). A aventura consiste em ser habitado por essa outra língua, pois certos versos de LE FEU QUI DORT surgem já formados na cabeça e não lhe dão descanso. Aliás, o autor diz que, durante o tempo de migração para o francês, não conseguiu escrever nada em português. O que significa que se trata de um processo simultaneamente voluntário e involuntário, um pouco como se o poeta estivesse possuído por forças que lhe são externas. Que desse processo resulte todo um livro parece-me ser algo de absolutamente excepcional. Recorde-se que Mário Dionísio não era bilingue; embora se movesse muito à vontade no francês, a língua de Éluard não deixava de ser uma segunda língua, uma língua estrangeira. De resto, logo a seguir à redacção de LE FEU QUI DORT, o poeta regressou, sem hesitações ou desvios, ao português. Portanto, esta escolha não terá sido tão secundária como Mário Dionísio pretende... O exercício que estou a fazer – o exprimir-me numa língua que falo mas me é segunda – sendo o negativo do que ele fez, ajudar-me-á porventura a mergulhar mais profundamente nesta questão. A língua francesa que Mário Dionísio utilizou é uma língua particular, uma língua da escrita. O português em que eu me exprimo (também porque foi essa a língua que eu aprendi) é o português oral... Com as imprecisões a ele inerentes. Embora me debruce pela segunda vez sobre LE FEU QUI DORT, não se trata, de longe, de «esgotar» o livro. Numa fase anterior de estudo, tentei caracterizar a diferença, a oposição, entre a escrita poética e outras formas de escrita, com outras sintaxes. Na verdade, o propósito da escrita prosaica é levar o leitor a prosseguir a sua descoberta do texto, o que implica a utilização de palavras de um tipo particular – nomeadamente conectores ou pronomes cuja ligação aos respectivos antecedentes permitem uma economia de leitura que assenta no prévio conhecimento de certos elementos da frase – que induzem o movimento de passar para o segmento seguinte. O ideal de um narrador, romanesco por exemplo, é o leitor devorar, virar páginas e só parar na última palavra. O que o poeta almeja é exactamente o contrário. O poeta quer que o leitor pese cada palavra. Os poetas inventaram uma coisa, ainda em uso, chamada verso, que interrompe o curso do enunciado, nem sempre conforme os blocos resultantes da ordem e da organização sintáxica. E por isso é muito difícil agarrar o efeito de conjunto de um livro de poemas, mesmo que ele seja relativamente curto como é o caso de LE FEU QUI DORT. Porque o poeta concebeu cada poema como um todo
auto-suficiente, que não precisa do encadeamento com o que vem antes e com o que vem depois... LE FEU QUI DORT é um livro escrito em francês, pelo que deveria fazer parte da literatura francófona. Ora, apesar de ter sido co-publicado com uma editora suíça, não me parece que tenha esse estatuto. Os falantes de francês desconhecem esta obra de Mário Dionísio. Por outro lado, o francês era a língua de cultura de uma burguesia instruída, em particular dos sectores dessa burguesia mais ou menos activamente ligados à resistência anti-salazarista, meio ao qual pertencia o poeta. Muitos leitores desse meio entendiam perfeitamente o francês em que estão escritos os poemas de Mário Dionísio. O francês era para esses leitores uma língua estrangeira e familiar... Porém, o poeta sabia que, não obstante a francofilia dos seus pares, essa língua não era de conhecimento universal e que muitos dos seus conterrâneos não iriam ter acesso aos poemas de LE FEU QUI DORT. Ou seja: a opção pelo francês implica simultaneamente uma necessidade e uma impossibilidade de comunicação. A dada altura, Mário Dionísio alude directamente a isto: Tu ne parles pas ma langue Maintenant je parle une autre langue Et c'est toi qui m'as donné cette autre langue Que tu entends sans la comprendre O problema com que aqui nos deparamos é o estatuto do «tu». Quem é esse «tu» que lhe deu essa outra língua e não a entende? «Tu» é uma entidade, não é uma pessoa, que levou o sujeito poético a ter de adoptar uma outra língua apesar de tal língua não pertencer ao «tu». Já pensei numa série de entidades possíveis, mas o que é certo é que o «tu» em questão se encontra alienado de si mesmo. A determinada altura, no meu poema, lemos: Tu passes sur toi-même sans te voir Sublinhe-se que o jogo do «tu» e do «je». Mas antes de escavarmos por este lado, há que reflectir sobre um outro facto relevante: o verbo «dire» é o mais utilizado em todo o livro. Dizer pois. E o campo lexical privilegiado é o da fala, do discurso... ou do silêncio. Esta constatação leva-me a pensar que este livro também narra uma crise: uma crise do dizer, da possibilidade de dizer. Ao lado dos poemas que resultam desta temática essencial, encontramos outros cuja temática é mais habitual em Mário Dionísio, tais como as lutas, o estado do país, a questão do futuro, etc. Essa paleta de inquietudes também está presente neste livro. No entanto, ela inspira poemas nitidamente demarcados dos outros e talvez em número minoritário relativamente à temática maior do «dizer». É como se, nos primeiros poemas escritos em francês, se sentisse ainda uma espécie de espanto por parte de quem escreve, inclusive relativamente à vontade de os escrever, e depois enceta-se uma reflexão acerca do dizer. Essa faceta começa com o poema número 10, em que Mário Dionísio se refere directamente a Fernando Pessoa e é, tanto quanto consegui detectar, a única referência à poesia portuguesa no livro. Única mas muito significativa: Mais oui Je mens Je mens Voilà
Lisez Pessoa Il ne fit que ça En le disant ne mens-je pas? A partir de então, as ocorrências da temática adensam-se. No poema número 11, lemos: Tout cela sans le courage d'un aveu E no poema 12: Et en faire un poème de trois ou quatre pages qu'attend toujours mon métier de menteur Poema 13: Je n'écris pas Vous me dites moqueurs Alors on ne fait rien Et si j'écris À quoi bon tout cela Poema 15: Quelque chose [...] qui vient de rire ou de crier peut-être d'appeler Todos estes verbos traduzem a ideia de locução: rir, gritar, chamar... Final do poema 16: Qu'est-ce que cela veut dire Poema 17: Que tu es fort Que tu es faible On me l'a dit É inútil tentar ser exaustivo. Se nos reportarmos apenas aos primeiros versos, as ocorrências relativas à temática enunciada aparecem na proporção de um para cinco aproximadamente. Se nos referirmos aos últimos versos, a percentagem de um quinto duplica. E se aludirmos aos versos do miolo, a percentagem andará por metade... Ou seja, desde logo se me afigura que Mário Dionísio nos dá conta da impossibilidade de dizer o que tem a dizer na língua original, na língua «antiga». Na língua materna. E a escolha do francês, sem ser «natural», é sobre-determinada.
Dionísio não só lê em francês, mas ensina o francês, a língua, a cultura e a literatura francesas. Tem pois um convívio intenso e particular nesse terreno. E ele próprio fala do facto de passar de uma abordagem superficial – a língua que o professor ensina, ao nível das estruturas e do léxico – a uma abordagem produtiva – a língua de que o poeta se apropriou. Ao reler LE FEU QUI DORT, interessei-me sobretudo por poemas inesperados, por poemas que a apropriação dessa outra língua permite. A segunda grande questão que se me levantou tem a ver, como já referi, com o jogo do «je» e do «tu». São esses os pronomes que predominam no livro. O «je» é talvez mais simples, porque remete para o confessional e o seu surgimento enquadra-se numa tradição de poesia lírica, gerada por um «je» e virada para um «je». Mas a intervenção do «tu» é muito problemática. Conforme os poemas, verificamos que o «tu» é efectivamente um interlocutor, ou, e isso acontece em muitos casos, é o próprio «je». O que significa que, através do sujeito poético, o poeta dirige-se a si mesmo, tratando-se por «tu». E dirige a si próprio conselhos, desafios, censuras, críticas, Acontece que, noutras vezes ainda, os pronomes remetem para entidades muito mais indefinidas. No poema onde se diz Tu ne parles pas ma langue, posso considerar que o «tu» designa o povo português... Por que não? Basta ler o poema inteiro para percebermos que funciona... Há até momentos em que observamos uma troca entre o «je» e o «tu». Poema número 60: Le noir le plus épais se décolore devant cet autre noir sans corps Le rien Des trous Des allusions obscures Des pas qui ne sont plus Que l'on attend Que l'on entend encore la voix absente transparente à jamais disparue toujours présente Elle te hante Tu la fuis tu la veux éperdument cette voix qui te hante Le dégoût de tout et de soi-même les pourquoi sans réponse les pourquoi et les comment est-ce possible alors à quoi bon poursuivre et comment vivre Toi Toi plongé dans la mare glacée de ton enclos les doigts tâtant tes doigts tâtant le long mur rond d'acier sans ouverture Toi te croyant la solitude même Toi la blessure alléchante vivante déchirure affolante Tu ne vois personne tout autour Tu cherches et tu ne cherches pas Tu creuses ton réduit dans ton enclos d'absence Pas de voix Pas d'écho Tout est fini Rien n'est venu rien ne viendra à ton secours Peut-être le veux-tu on ne sait plus Tu ne trouves personne Il n'y a donc personne Tu te crois seul à jamais tâtant le mur le long des nuits le long des jours tâtant le long mur rond sans ouverture
Estamos perante alguém – um «tu» – que se encontra confrontado com uma «voz» que o assombra. Esse alguém acha-se sozinho, logo passa a estar, de facto, só. Esse alguém cria a sua própria solidão. Eis o que nos descreve o poema. Esse tu é obviamente alguém criticado por quem enuncia, mas pode ser uma imagem do próprio enunciador. A priori, assim se pensaria caso se tivesse de interpretar estas linhas. Porém surge o último verso... em jeito de resposta: Mais je suis toujours là Aqui a porca torce o rabo: então afinal havia um «je»!!! Quem vem a ser esse «je»? Será a «voz»? Será o próprio enunciador? Será o «tu» que, de repente, está a responder? A dificuldade de interpretar o jogo de pronomes torna-se bem real. Ao longo dos seus poemas, nesse jogo entre o «je» e o «tu», Mário Dionísio está sempre a criar uma figura que é a do «diálogo». Do diálogo consigo próprio. E é aí que a «outra» língua nos fornece outra pista. Trata-se de algo bastante curioso. Leia-se o início do poema número 47: Qu'il est bon de marcher lentement sans souci le long de ces vallons quand il fait beau à côté d'un ami ou d'une amie parler mon Eluard parler sans avoir rien à dire Logo à partida, «mon Éluard» é uma nomeação muito particular. Eluard é um poeta que Mário Dionísio conhecia bem e até conheceu pessoalmente, e que sobre exerceu notória influência. Eluard está muito presente neste livro, bem como Prévert ou Aragon. Referido como «mon Eluard», levanta imediatamente um problema: um nome próprio, de pessoa, não pode, em princípio, ser reivindicado através do uso do possessivo «mon». Vislumbram-se três possibilidades de interpretação, mas parece-me ser perfeitamente indecidível qual das três é mais pertinente. A primeira seria que «mon Eluard» seria equivalente à apóstrofe «mon cher Eluard», sendo o adjectivo «cher» (caro) subentendido. A segunda seria que «mon Eluard» traduz a ideia de uma evocação pessoal da imagem subjectiva que o poeta tem de Eluard. O meu Eluard pode ser diferente do teu Eluard que por sua vez difere do Eluard de outra pessoa. Por fim, terceira hipótese, «mon Eluard» pode ser utilizado para designar, em francês, não a pessoa de Eluard, mas o objecto livro da sua autoria. Em LE FEU QUI DORT, Mário Dionísio utiliza a língua francesa, a língua outra, para procurar, dentro de si, o outro. O outro que as leituras incorporaram. O «eu» é constituído por «eus» incorporados. A partir daqui, a leitura destes poemas de Mário Dionísio torna-se vertiginosa e alucinante. E só me sinto minimamente apto a empreender este tipo de leitura na medida em que não se trata de um livro de poemas escrito em português. Curiosamente, ela reporta-me a um estudo que realizei, em parceria com Regina Guimarães, há uns anos atrás, acerca da cinematografia portuguesa do último quartel do século XX. Uma das conclusões desse nosso ensaio foi que um dos traços distintivos do cinema de autor e de ficção desse período era a superabundância de citações que, a nosso ver, configurava uma vontade, por parte dos cineastas, de proclamar a sua inscrição numa história do cinema mundial e de romper o isolamento a que pode estar condenado um território periférico que foi, durante longos anos, vítima de fechamento. Digamos que o «planeta cinema» permitiu aos cineastas portugueses galgar fronteiras e estabelecer diálogos com os seus pares no estrangeiro. Ora, no texto de LE FEU QUI DORT detectei um número
absolutamente impressionante de citações, de alusões, de referências. Pessoa e Eluard são nomeados, como já vimos. Mas há muitas outras evocações. Mário Dionísio responde, por exemplo, a Rimbaud: Par délicatesse tu le dis on perd sa vie Qu'en dirais-tu si tu l'avais perdue par maladresse Uma rápida viagem através do texto, permite-nos reconhecer a presença de Lorca, Aragon (uma meia dúzia de vezes...), Lamartine, Apollinaire, Rimbaud, Prévert (duas vezes...) de maneira muito evidente. Os títulos dos livros de Louis Aragon encontram-se mencionados; dentro de um poema, aparece a expressão «feu de joie», ou «persécuté persécuteur», ou ainda «persécuté persécutrice»... A estrutura da Ballade des Dames du Temps Jadis» de François Villon serve de molde a um poema. Claro que nem todas as citações são equivalentes na forma, na força e no propósito. Algumas não passam de clins d'yeux, palavras que estabelecem ligações a uma rede (é o caso do Aragon), elos de solidariedade; são como que saudações. Mas em outras situações/citações, há um diálogo que se instaura, com respostas que se enunciam. Mário Dionísio dá largas ao seu sentido de humor, pelo que essas respostas podem adoptar um tom crítico e irrisório (nos casos de Villon, Rimbaud e Prévert). Diante de um panorama da poesia francesa, Mário Dionísio ousa um diálogo (transtemporal) com poetas de referência e a seu lado sente que tem cúmplices, com os quais não chega a dialogar, mas que não se coíbe de convocar. Mas, no fim de contas, será a opção pela língua francesa algo de circunstancial, para além da vertente de confraternização que acabámos de evocar? Proponho-me abordar, de seguida, uma terceira questão, que no meu entender reveste a maior importância. No artigo que anteriormente cometi, na verdade já começara a referi-la, mas ao de leve. Uma língua é, como se sabe, portadora de uma história, mas também de uma certa ideologia. A referência à língua francesa tinha, em tempos de ditadura, o peso ideológico da Revolução Francesa, da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Mas, dentro do domínio da poesia, há na língua francesa uma figura-chave que é Charles Baudelaire, cujo legado será incessantemente retomado por outros poetas, do seu século e não só. Baudelaire está na origem da concepção de modernidade. Aliás, foi ele que introduziu na língua francesa a palavra «moderno», de que os portugueses virão também a apoderar-se. Foi buscá-la à língua inglesa para servir os seus propósitos. A ideia de modernidade e o respectivo programa são desenhados por Baudelaire. No meu artigo anterior, eu já apontava para Baudelaire como figura-charneira: antes dele, havia Victor Hugo; depois dele, poderá haver o Eluard. Para Victor Hugo, a figura retórica da «antítese» serve para traduzir a oposição. Para opor o branco ao preto, o bem ao mal, deus ao diabo. As entidades que se opõem são absolutamente irreconciliáveis. Essa noção maniqueísta reveste grande importância porque é manifestação de um pensamento herdado, que vem da mais alta antiguidade. Sócrates, por exemplo, revelava que os seus oponentes estavam em contradição consigo mesmos, que eles não podiam ser uma coisa e o seu contrário. Quando Sartre, em cruzada contra um pensamento analítico, preconiza um pensamento globalizante, e explica que Baudelaire, apreciador do artifício, não pode gostar de carne grelhada, só pode gostar de carne com molho, está
a aplicar o velho princípio da não contradição. Ou seja, segunda essa visão enraizada do mundo, um ser só pode ser uno e não dividido, antagónico, contraditório, fracturado. Ora Baudelaire é precisamente aquele que, num prefácio aos contos de Edgar Allan Poe, se dá ao trabalho de corrigir a Declaração Universal dos Direitos do Homem, afirmando que nesse documento se esqueceram de dois direitos: o direito de contradizer-se, o segundo o de ir-se embora. No poema baudelairiano «Les Métamorphoses du Vampire», a personagem define-se como «timide et libertine», «fragile et robuste». Simultaneamente, sem que uma coisa exclua, ainda que provisoriamente, a outra. Estamos pois diante da expressão despudorada da contradição. Aliás, Baudelaire concebe-se e assume-se como uma contradição viva. Toda a personagem do «dândi» que ele vai construir consiste no exemplo reconhecível, por fora, da contradição. Como é que a partir daí se chega a Eluard? perguntar-me-ão. Ora a poética de Eluard assenta no pensamento paradoxal. Num pensamento paradoxal que ultrapassa a contradição. O negativo pode tornar-se positivo. Baudelaire, por seu lado, procurava uma palavra que exprimisse eloquentemente a contradição. Encontrou-a em grego: «héautontimorouménos», isto é, o carrasco de si mesmo. Segundo essa palavra, podemos ser ao mesmo tempo carrascos e vítimas. Com Eluard, a antítese passa a ser uma figura de pensamento normal. Voltando à sua famosa asserção «la terre est bleue comme une orange» – e especifica «les mots ne mentent jamais» –, há que notar que ela assenta numa comparação simples entre o planeta terra e o fruto laranja. O azul («bleu») só vem depois. A terra e a laranja possuem elementos comuns: a casca, a rotundidade, até mesmo a rugosidade. Estamos portanto a lidar com uma comparação banal e perfeitamente «admissível». O azul vai criar dois paradoxos, introduzindo duas contradições. Claro que azul e laranja são cores opostas, mas o azul é também a cor do céu por oposição à terra. Donde a dupla antítese em «La terre est bleue comme une orange». E o que é o Eluard quer dizer com isso? Quer dizer que a terra é como uma laranja, a terra é como um fruto; um fruto que tem as qualidades daquilo que não é atribuído à terra, daquilo que é celeste. Ou seja: a terra poderia ser, virtualmente, um paraíso. Possui as condições e as qualidades do fruto, emblema do jardim edénico. Eis o modo como a expressão paradoxal se torna pois positiva, revelando relações inéditas, e permite ultrapassar a contradição. Esse aspecto da transformação positiva também é relevante. Em 1848, mal sabe das barricadas, Baudelaire acorre ao local da rebelião e começa a gritar: «Vamos matar o Comandante Aupick!» (ou seja o padrasto). Mas logo a seguir, fecha-se no quarto. Interrogado pelos amigos sobre os motivos da sua reclusão nesse período excepcional, Baudelaire responde-lhes altivamente que essas coisas da ralé, da plebe barulhenta não o atraem. Porém, profundamente – e aconselho vivamente a leitura do estudo de Michel Butor, «Histoire extraordinaire», acerca disso – Baudelaire estava convencido de que era ave de mau agoiro e que arrastava consigo a desgraça, como contagiara Jeanne Duval com a sífilis. A única maneira de proteger os «insurgidos» do seu enguiço, de impedir a revolução de se tornar um fracasso, era manter-se afastado... Eis em que consiste a contradição: ter sentimentos mas ser obrigado a calá-los, sentir impulsos mas ser forçado a refreá-los, etc. O caso do Baudelaire é ainda mais importante para Mário Dionísio, porque este último tem uma experiência da pintura no decorrer da qual vai passar da figuração neo-realista para a abstracção, sendo que essa «evolução» já fora anteriormente vivida. Mário Dionísio vai reviver um percurso que a própria história da pintura traçou à volta de Baudelaire. Porque a autonomia dos meios da representação, para a pintura, passa por uma tomada de consciência de uma autonomia ao nível dos fins. Foi preciso passar por concepções eventualmente um tanto duvidosas, como «l'art pour l'art» que Baudelaire defendia, para que se tornasse possível reivindicar a autonomia dos fins antes da autonomia dos meios.
No século XX, esta questão vai continuar a ser fundamental e constituir um dos centros de reflexão de muitos artistas, particularmente dos surrealistas franceses. André Breton chega a propor a Trotski a assinatura de um manifesto «Por uma Arte revolucionária independente» e a criação da FIARI (Federação Internacional por uma Arte Revolucionária Independente), documento e instância que reconheciam que o artista não se deve submeter a nenhum imperativo a não ser os da própria arte. O que significa, preto no branco, que a arte nunca pode estar ao serviço de algo que lhe seja exterior. Em França os surrealistas, em determinado momento, tinham-se colocado «ao serviço da revolução», pelo que esta concepção representa um marco. Da mesma maneira, Mário Dionísio vai interrogar-se acerca dos fins próprios das artes e das lutas, reconhecendo os meios próprios de umas e de outras, nomeadamente no seu extenso ensaio «A Paleta e o Mundo». Mário Dionísio defende uma autonomia da arte relativamente à conjuntura socio-histórica que poderia colocá-la ao serviço de uma outra causa. Atente-se agora no poema número 83: Ce regard peu ou prou m'humilie et me vante Au rendez-vous des monstres l'incertain suffit à contredire la glace de l'ennui clandestin On est frappé par les fouets de l'angoisse On se livre à la misère de l'attente On écoute en soi-même une lueur de cri Le lendemain le lendemain le lendemain Trata-se de um poema relativamente desencantado, cujo final é realçado por um efeito de repetição. Não sabemos se o «lendemain» é o dia a seguir à festa ou um amanhã pelo qual se chama. O que aqui logo nos interpela é que o texto começa com um «je» – m'humilie et me vante – mas depois o único pronome sujeito vai ser «on». O pronome «on», em francês, é um pouco especial, por ser o único verdadeiro pronome indefinido que pode valer por todos os pronomes pessoais (je, tu, il, nous, vous, ils), embora o seu valor comum seja o de pronome terceira pessoa (singular ou plural), ou de primeira pessoa de plural (nous). De facto, o «on» não é uno. Aqui – On est frappé par les fouets de l'angoisse / On se livre à la misère de l'attente / On écoute en soi-même une lueur de cri – «on» vale por «je», mas também vale por «alguém»; não por um «nous», porque não há solidariedade nenhuma; é um «je» ou um «outro». Isso é muito particular e advém do particularismo do «on» na língua francesa. Para melhor explicitar o que pretendo exprimir acerca das tensões e contradições, recorrerei a dois poemas de Charles Cros, o primeiro dos quais encena o pronome «on» de um modo peculiar e eloquente: J'entends le bruit de l'eau qui court, J'entends gronder l'orage lourd, L'art est long et le temps est court. Tant mieux, puisqu'il y a des pêches,
Du vin frais et des filles fraîches, Et l'incendie et ses flammèches. On naît filles, on naît garçons. On vit en chantant des chansons, On meurt en buvant des boissons. Debrucemo-nos também sobre o derradeiro poema de Charles Cros: J'ai trop étudié les choses. Le temps marche d'un pas normal. Des roses, des roses, des roses. Encontramos aqui a mesma incerteza que no final de Dionísio: «Le lendemain le lendemain le lendemain», nesta tripla repetição «Des roses, des roses, des roses.» Vejo pela primeira vez ressurgir este tipo de formulação num poema. Poema que, muito provavelmente devia conhecer, quanto mais não fosse por Eluard considerar alguns poemas de Charles Cros dos mais bonitos da língua francesa. Face ao verso final do poeta francês, não conseguimos decidir se ele estará a lamentar a falta, a ausência das rosas ou a reclamar que as rosas e o tempo das rosas venham. Em Cros, também se passa de «je» para «on». Sem falar do tom de desencanto comum aos poemas citados de ambos os poetas. Não será isso que Mário Dionísio, sem imitar ou plagiar, encontrou na poesia de língua francesa? Não serão essas «tournures» que lhe permitiram o seu «tour d'écriture», que é um «tour de son monde à travers un monde autre»? Concluindo, graças â «língua outra», Mário Dionísio pode desenvolver relações com pares: amigos que conheceu no decurso das suas viagens a Paris, mas não menos autores mortos, históricos, com quem mantém um diálogo, no sentido mais bakhtiniano do termo (aquele que propõe que um texto é, em si, um diálogo. Graças a uma outra língua, Mário Dionísio tocou outro pensamento, mexendo numa matéria (a língua) que talvez se preste mais à formulação do paradoxo. O paradoxo é, há que realçá-lo, uma figura que o poeta, desde sempre sensível à retórica camoniana, utiliza constantemente no seu livro: «Que je suis fort / Que je suis faible...». Aliás, em termos retóricos, é provavelmente a figura que mais salta aos olhos. Por último, o verso em francês de Mário Dionísio não resulta de um uso transgressivo da língua francesa, mas sim de um modelo clássico. O verso de Mário Dionísio é amiúde um verso par: alexandrino, decassílabo ou octossílabo. Contudo, não é um verso regular, visto que o autor está permanentemente a mudar de metro. E, no meio deste fogo cruzado de versos pares, de vez em quando há uma dissonância, um verso ímpar que surge de modo imprevisto. Estamos perante a gestão de uma certa poesia clássica, o peso pesado que é o verso francês, mas Mário Dionísio, por a língua lhe ser estrangeira, pode ironizar com alguma desenvoltura. E praticar, com mestria, o distanciamento, face às «imposições» de uma certa poética, cujos limites põe a nu, ao tempo que, sendo seu amante e conhecedor, também ele se desnuda. Saguenail