Le mépris

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LE MÉPRIS: OITAVA VISÃO Reparo agora que o olhar de Bardot desenha desconfiança e não tanto desprezo. Que o chapéu de Piccoli parece pequeno demais e o fato de Palance demasiado apertado. E que só a Lang cabe o privilégio de poder fitar a lonjura, mesmo quando "humilhado" pela imposição de um argumentistacensor. Nada disso reorganiza contudo este filme-fetiche na minha cabeça. As impressões mais fundas, as primeiras — de tema, de corpo, de cor — perduram. E perdura o espectro dessa Ítaca que não se avista porque todos regressámos da guerra e do exílio, tão vitoriosos como desmemoriados. O "novo filme clássico" de Godard — assim o anunciava o seu célebre trailer — apresenta-se como uma reflexão sobre as ruínas. Ruínas cuja antiguidade é variável — dos estúdios da decadente Cine Città ao apartamento prestes a ser inacabado dos protagonistas. A proposta deste leitmotiv é suficientemente forte para contaminar todos os fragmentos da obra — retrospectivamente, a cena inaugural, em que a "escultural" Bardot interroga o marido sobre o grau de amor que ele dedica a cada pedaço do seu corpo, será lida enquanto testemunho de um par à beira de se desmembrar; a vivacidade do próprio número de music-hall é duvidosa... para não falar do terraço da vivenda de Capri, verdadeiro altar de sacrifício, abandonado pelos deuses e seus zeladores. Mas o que tem o cinema a dizer desta e nesta sequência de cenários tão intensamente pictóricos que quase de si escorraçam o desejo de ficção? A resposta de Godard (elementar, inultrapassável de justeza, inédita no desapego que exibe face às leis do argumento e às convencionais trapalhadas da composição) opta por uma espécie de anti-clímax e poderia resumir-se à seguinte fórmula: o cinema escreve-se. Aí. Nas linhas tortuosas de um espaço excessivamente escrito. Porque o cinema nasceu num mundo velho e luta, em combate desigual, com e contra a velhice. Nas ruas filmam-se travellings e carros. Nas salas de visionamento filmam-se projecções e rotações. A câmara viola a privacidade dos aposentos conjugais e semeia os demónios da inquietude nos mais idílicos recantos de verdura. If I may say so, substitui vantajosamente o olhar dos deuses, feitos de ausência. Vertiginosa mobilidade, a da câmara de Raoul Coutard, numa impossível busca dos pontos de desequilíbrio que obrigam a máquina da ficção a arrancar e progredir, custe o que custar, por entre os escombros luminosos. Seduzido e derrotado pela literatura, Godard trava uma luta sem tréguas que consiste (também) em purgar o ecrã dessas linhas tortuosas que são as da página branca do livro branco da humanidade, omniscientes de uma ciência não alegre mas profundamente melancólica. Não podendo aniquilar os efeitos da intertextualidade, envereda pelo delírio da citação e pesa cada palavrinha na balança dos ourives. Não podendo libertar o colorido de cada ser e de cada estar da brancura da mortalha, grava epitáfios. E o seu cinema, gráfico por provocação, despede-se, instante após instante, do instinto visionário e inventa, definitivamente, o sonoro. Regina Guimarães


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