Lista branca lista negra

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LISTA BRANCA, LISTA NEGRA A estreia de A LISTA DE SCHINDLER de Steven Spielberg gerou no seio de certos círculos de intelectuais e em algumas correntes de opinião das comunidades judaicas uma forte polémica, com contornos de viva condenação, em torno de questões como: Será tolerável que se filme o infilmável? Será que a positivação de uma personagem de nazi encartado não implica a desculpabilização mais lata da «Alemanha» hitleriana? E por aí fora... É extremamente delicado discutir a reacção, no plano ético e emocional, dos sobreviventes e descendentes de vítimas do holocausto. A ferida é demasiado fresca e funda. Limitar-me-ei pois a responder àqueles que genericamente acusaram Spielberg de fazer dinheiro sujo e conquistar fama suspeita à custa da negra história do maior genocídio de sempre. Em primeiro lugar, ocorre-me replicar-lhes à cabeça que a acusação de indigna venalidade é vácua. Spielberg não precisa de um tópico deste tipo para enriquecer, como o sucesso da sua carreira enquanto produtor e realizador bastaria para provar. Acresce que, num mundo em que a consciência identitária tende (infelizmente) a organizar um discurso triunfante (diz-me donde vens, dir-te-ei quem és...) não me parece plausível que um homem, de ascendência judaica por um lado, leader e fabricante de ideias por outro, possa tão desalmada e cientemente colaborar numa campanha orquestrada de ilibação dos responsáveis pelo projecto de eliminação dos judeus do planeta. E isto leva-me a uma segunda reflexão: a personagem de Schindler não é de facto positiva, muito embora não traga nas costas um letreiro que verbalize a sua profunda mediocridade moral. Schindler é mostrado como um filho da puta, desprezível zé-ninguém cuja esperteza pragmática sabe tirar partido das tristíssimas circunstâncias para enriquecer, ele sim, à custa de uma comunidade ameaçada e aterrorizada. E a «tomada de consciência» de Schindler, a sua «viragem» enquanto Actor da História é tão improvável e absurda quanto se nos afigura hoje improvável e absurdo o Holocausto. Porém, a improbabilidade do genocídio dos judeus ganha sentido se a analisarmos à luz de um questionamento complexo e completo, que deverá ter simultaneamente em conta os dados das várias histórias da História: a História dos Judeus, a História da Alemanha, a História da Polónia, a História da Europa, a História da Economia Europeia na 1ª metade do século XX, a História das Ideias, etc., etc., etc., quantas páginas seriam precisas para precisar todas as fontes, elas próprias dependentes de árduo estudo documental. Contra quem travou Hitler a sua guerra? E Estaline? E os outros? Spielberg, é óbvio, não responde. Contudo, em boa verdade, o péché mignon do filme nada tem a ver com desrespeito pela memória dos judeus, mas sim com uma glorificação despudorada do ideal capitalista americano. Com efeito, de início, é a fúria empreendedora de Schindler que o leva a arrancar às garras da morte os judeus com que monta os seus negócios. Numa fase posterior, é a necessidade de constituir uma equipa de trabalho eficaz, porque acima de tudo fiel ao patrão (ainda que a fidelidade se revele na razão directa do terror), que faz com que Schindler salve judeus


fisicamente pouco aptos a trabalhos manuais. Por fim, Schindler quer desesperadamente comprar um lote tão numeroso quanto possível de judeus, judeus que serão os seus (o valor da «mercadoria» é mágico) e que cifrarão outras tantas «indulgências» na hora então indizível do juízo «final». Em última análise, é pois o capitalismo no seu estado irracional (e caótico na sua essência) que livra os judeus de Schindler da morte. Uma cena que foi alvo de críticas bastante duras é a sequência das mulheres dentro da câmara de gás. Todavia, mais uma vez, eu diria que estamos perante uma encenação típica do «espírito» americano, não só ao nível da factura (o suspense) como ao nível do conteúdo: é graças a Deus providencial, pela mão comprida do capitalista Schindler, que as mulheres extraviadas são salvas, numa figuração algo aparentada com a imagética do «dilúvio» e da «arca de Noé», onde não falta aliás a chuva (o chuveiro em lugar da nuvem de gás) e a clausura (a fábrica na Checoslováquia, «barca de salvação» protegida da tormenta da guerra). Reprovada pela quase unanimidade dos espectadores, a cena final, com a participação dos sobreviventes e familiares do grupo de judeus salvos por Schindler traduz a meu ver, algum temor de Spielberg que, perfeitamente inteirado da gravidade do tema, não dispensou a presença cúmplice daqueles que testemunharam directamente a história que o filme romanceadamente conta. A imagem das pedras tumulares dos judeus exterminados serve de fecho à obra. Spielberg exprime à sua maneira (que outra se lhe pode pedir?) que a marcha do presente percorre os caminhos do passado, assumindo assim plena responsabilidade pelo seu discurso. A LISTA DE SCHINDLER é um filme demasiado eclético para não ser interessante. Das citações longas e transparentes — de Eisenstein na impressionante reconstituição do assalto ao ghetto — às mais subtis — Woody Allen na figura do contabilista que coça a cabeça para afastar os torcionários alemães — passando pelo parti-pris de representar a multidão de encarcerados em Auschwitz com actores de compleição física semelhante à massa dos espectadores potenciais do filme, num rasgo de génio que lembra os melhores tratamentos cenográficos do realismo... polaco, do filme de Spielberg só me desagradou radicalmente a concepção do protagonista dirigente do campo de exterminação, tingido de uma loucura simplista e redutora do fenómeno social do nazismo e da sua árvore ideológica. Para além, evidentemente, de tudo o que sempre me desagradou na cinematografia americana (de Griffith a Coppola) paradoxalmente, ou talvez não, o único herdeiro da tradição de cinema político que nos resta. Spielberg discorreu nos limites exactos do campo político em que se situa, é certo. Mas também é certo que o silêncio neste tempo de genocídios de boca em boca protege aqueles que não merecem complacência. R. G.


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