DESCAPOTÁVEL, O DESTINO... No início o filme de Demy oferece-se como uma operação de charme. É o destapar dum frasco de perfume ou duma garrafa de champagne, donde saem um descapotável, um bando de marinheiros, um cabaret e as respectivas girls, uma Lola-Cécile e uma Cécile-Lola, as nuvenzinhas cor-de-rosa ou cinzentas dos iludidos e dos desiludidos... Figuras de uma composição — a fugir para a pintura e a fugir da pintura — que, de tão leve, espumante e adejante, nunca se confunde nem com os humores biliosos e carregados do pós-impressionismo, nem com a pincelada pastosa dos expressionistas "purs et durs". Ao contrário de À bout de souffle (a que os diálogos de Demy várias vezes se referem en passant...) e a despeito de uma construção globalmente jazzística (Santa Cecília oblige...) , o realizador não parece ter querido apostar num primado agressivo da ruptura e da descontinuidade. A música, a bem dizer, é outra. Vem das estranhas entranhas das personagens e apenas se faz ouvir com nitidez à medida que o filme lhes vai dando espessura, até à quase opacidade de vozes e corpos comandados pelas rimas de um destino que lhes escapa de tanto o desejarem proferir / preferir. Lola é feito de claros-escuros, falta-lhe a cor que será o brazão da obra de Demy. Mas os valores inesperados do preto e branco já apontam para o seu talento sui generis de colorista, que nem hesita em jogar na mise-à-plat (alguns momentos inspiradíssimos, de friso, no Eldorado), nem se coíbe de mostrar figuras comidas pela luz, qual banho corrosivo de sóis e sais. Lola apresenta-se,de alguma maneira, como lançamento de um programa estético centrado sobre a recorrência, no plano formal (rimas, ritmos e refrões... de la musique avant toute chose!) e no plano temático ( a partida e a separação, o engano e o desengano, a fome de felicidade... voltam obsessivamente). Jacques Demy deixou muitas saudades na sua terra natal. A mesma juventude que entoa "La Javanaise" de Gainsbourg como um melancólico hino entusiasmou-se pelo cinema furiosamente agridoce do cineasta, cujo falecimento precoce se deplora, e fica, embevecida pelos seus excessos, a cantar pelos cantos. O que, para além de uma adesão superficial a modas e modos rétro, me parece provar que o cinema ainda não cantou tudo o que tinha para cantar. Regina Guimarães