Música de dentro

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MÚSICA DE DENTRO Pode mentir tudo o resto mas o corpo nunca mente... No princípio era uma mulher à janela. De cabelos desgrenhados e olhar perdido. Fitando obsessivamente o curso das águas do Douro. Esta imagem peculiar, vibrante, devia funcionar como matriz de um projecto de filme musical em vários andamentos. Uns cinco ou seis. A meia dúzia de episódios que o filme em estaleiro se propunha narrar, todos eles ligados ao imaginário do Douro, brotava de fontes de inspiração tão heterogéneas quanto alguns textos de Agustina Bessa-Luís, certos filmes de Manoel de Oliveira, romances populares, folhetos distribuídos por mendigos cegos nos comboios nortenhos, histórias rocambolescas ou trágicas inscritas no território duriense, a mitologia do mundo antigo (Eríneas, Fúrias e quejandas), bem como as memórias do próprio Paulo Rocha (correspondentes à sua infância e adolescência portuenses)... Dentro do grupo destas últimas avultam: as lembranças do imponente "rabão" (barco de vela negra que servia de transporte ao carvão, num tempo em que o rio era caudaloso e repleto de ciladas, actualmente desaparecido da paisagem duriense) e respectiva tripulação; o fabrico e o comércio feirante dos ouros, seus agentes, lábia e panóplia; o deslumbramento perante as ardentes festas são joaninas (recordação recorrentemente evocada na cinematografia rochiana); a já citada visão da mulher melancólica enquadrada por uma janela... A Balada do Rio do Ouro — tal era o título do projecto inicial — configurava um objecto fílmico que se pretendia construído como uma partitura musical, não apenas pela sua composição desdobrada em andamentos, sobre um mesmo pano de fundo fluvial permanente, como também pela recorrência das referências muito concretas a formas populares da palavra-em-música (que implicaram um aturado processo de investigação-invenção, no qual tive a honra e o prazer de participar). Para já não falarmos daquilo que, entre os demais traços específicos, faz o génio singular do gesto deste mestre, a saber, a musicalidade dos seus planos-sequência, em que cine-olho e corpos filmados se envolvem em coreografias violentas, por vezes sofredoras, sempre líricas e absolutamente reorganizadoras do "real". O plano-sequência de Rocha esculpe no vivo do espaçotempo, através da carne desarmada dos seus muito amados actores. Claro que este projecto era de calibre a não encher as medidas do famigerado filme-padrão, por cuja bitola se regiam os júris institucionais encarregados de subvencionar longas-metragens de ficção em 35mm conformes a argumentos que privilegiam critérios obsoletos como a continuidade narrativa. Donde a "viravolta". Ou seja, a transformação de um projecto assumida e coerentemente fragmentário num guião para-instituto-ver, cuja redacção "final", vertiginosamente veloz (segundo reza a lenda relatada pelo autor, em conversas diversas) resultou da colaboração de Paulo Rocha com a então muito jovem cineasta Cláudia Tomaz (que iria, numa primeira fase, assumir também o papel de montadora). Note-se que Paulo Rocha quis, para a rodagem d'O RIO DO OURO, rodear-se de uma espécie de grande família de cúmplices artísticos. E fez questão de que a equipa artística incluísse uma elevada percentagem de criadores nortenhos, grande parte dos quais conhecera através das micro-produções-catástrofe Hélastre: Alberto Péssimo e Jorge Gonçalves (na cenografia); Cristina Lucas, José Calisto e Regina Guimarães (nos adereços); Manuela Bronze e Diana Regal (nos figurinos), Saguenail (casting de figuração e making of), Benjamin Masset (fotógrafo de cena), Ranchos de Cinfães e de Resende (na figuração dos populares), para não citarmos a relevante participação do portuense José Mário Branco como músico e actor, e de uma horda de actores confirmados ou principiantes, assistentes, motoristas, moços de recados e figurantes-joker... Esta preocupação profunda de garantir, pelas presenças e pelos contributos, uma certa "cor local" nada tinha contudo a ver com desígnios folclorizantes. Paulo Rocha pretendia, confessadamente e por razões de natureza musical lato sensu, promover a mistura explosiva de profissionais lisboetas muito calejados com amadores à moda do Porto, pois estava convencido que essa dialéctica traria ao filme um não-sei-quê de não formatado e de forjado no conflito. Por último, Paulo Rocha teve constantemente Cláudia Tomaz a seu lado, na presunção de que a futura montadora (diga-se que a chegada das rushes implicou expedições à velocidade da luz...) devia


acompanhar — qual dramaturgista de aberturas, cadências, rupturas, fechos — toda o percurso composição-improvisação. A realidade, obviamente, transcendeu os planos do cineasta, por um lado, diferindo do seu "programa", por outro, confirmando a justeza do espírito que o movia. O certo é que não houve dia em que não se reescrevessem cenas de fio a pavio, segundo os humores e amores do chefe de orquestra, segundo o espírito dos lugares e décors não menos. Novos diálogos, sempre. Dizeres avulsos divergentes ou convergentes relativamente ao centro de gravidade das cenas, quase sempre. Um desejo insaciável de canções que levou à criação das redondilhas do Toninho Vaz de Pina (consoante o molde dos folhetos de feira), da cantiga em que o corpo nunca mente (ária do ceguinho), dos cantos das lavadeiras e da Mélitade-faca-na-mão, de modinhas alusivas ao ícone do rio, etc. A colecção de ditos e cantorias, de romances e historietas, respigada para "A Balada do Rio do Ouro" não parou de pairar. José Mário Branco ensaiou amadores e profissionais no meio de lameiros e nas margens do rio, afinando vozes frágeis e goelas de cana rachada. Foi muito belo assistir a tudo isso e perceber, ainda por cima, a que ponto é verdade aquilo que Paulo Rocha proclama como "método seu": enunciar meia dúzia de ideias irrealizáveis perante uma pequena plateia estupefacta e, depois, graças a uma subtil interacção com o silêncio da perturbação ou com os protestos veementes dos técnicos, largar tudo para realizar uma outra derradeira fantasia irrealizável. Do ponto de vista de uma colagem distanciada — paradoxo cujo mecanismo os espectadores d'O RIO DO OURO poderão observar — ao imaginário poético local, não será inoportuno sublinhar que os inúmeros participantes oriundos dos ranchos das redondezas já não conseguiam distinguir entre as quadras originais, escritas para o filme, e as estrofes das canções "efectivamente" tradicionais. Na segunda fase da montagem — confiada a José Edgar Feldman —, com o filme grosso modo estruturado nas suas grandes linhas, tratou-se de encetar um trabalho bizantino de redigir e embutir rezas, imprecações e toda a sorte de maldições sussurradas, principalmente pela terrífica e poderosa Isabel Ruth. Tornara-se evidente para os próximos e colaboradores de Paulo Rocha que, as mais das vezes, cada plano do filme se nos oferecia como um filme à part entière, pelo que era necessário conferir-lhe foros de pequena ária dentro da grande construção operática, introduzindo nele todos os elementos sonoro-verbais que pudessem potenciar o seu desenho dramático. Convém lembrar que, a despeito da presença permanente de um engenheiro do som e da existência de gravações em directo que foram decerto mais do que um mero som-testemunho, na sua direcção Paulo Rocha age deliberadamente como se toda a banda sonora fosse um assunto desgarrado da filmagem, um segundo momento de composição em que se volta à estaca zero — se a câmara e os actores falavam, cantavam ou dançavam nos plateaux duriense e portuense, o realizador fazia-se eco dessas acções, falando, cantando e dançando ao lado da câmara de Elso Roque, sorridente criança descobrindo o mecanismo do seu "comboio eléctrico"... Não é fácil, não me é possível, escrever com desprendimento sobre O RIO DO OURO que foi para mim uma longa lição de cinema e de vida. Como objectivar subjectividade crítica face a um objecto que envolveu toda a minha família real, um filme que se me abre como um álbum de lembranças? Se é verdade que o filme me revelou aspectos da obra do realizador que até então me eram mais obscuros — nomeadamente o tratamento da figura paternal, a interacção entre as figuras femininas da vida e da morte e a dilaceração do(s) amante(s) por elas enfeitiçado —, não é menos seguro que se mantém intacto, a meus olhos, o mistério de um autor fascinado pela possibilidade de fazer filmes capazes de arrebatar o coração de uma plateia popular, mas que os faz gozando da sublime liberdade de apenas ouvir o seu instinto e dar largas ao seu desejo. Que os faz ao ritmo de uma música interior, ao mesmo tempo inaudível e gritante, em suma. Regina Guimarães


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