MAKE LOVE NOT LOVE Apesar da constância do tom demonstrativo e do propósito para-didáctico, o último filme de Spike Lee estreado nos nossos ecrãs (com o atraso q. b. da praxe...) não é uma fita de choque. Talvez seja essa, aliás, a primeira qualidade da obra: a coerência entre o modo «soft» e o tema docemente penoso da gestão da infelicidade. O «mal de vivre» da negritude é-nos apresentado como uma herança cultural — o tempo do filme é uma geração — que se transmite sob forma de sagacidade. Bom senso do qual o «blues» é a expressão refinada e resignada. Se A não pode ter X, deverá contentar-se com A-X, ou seja, com a sua própria energia sexual e criativa (a pulsão e a sublimação são tratadas paralelamente) privada dos objectos de amor capazes de estabelecer uma ponte entre os estímulos do real (as duas mulheres desejadas que personificam as noites e os dias) e as exigências duma super-realidade mítica (onde se inscreverá a carreira artística). Mau sonhador, o protagonista vive num mundo fragmentado sem conseguir preencher a brecha que separa a solidão do músico, enquanto criador, e o carácter espectacular do instrumentista, enquanto intérprete dum sentir social da solidão. Como nos filmes anteriores, sente-se que Spike Lee procura a direcção e a força do vento que trará a mudança; percebe-se que as suas conversas filmadas são pontos da situação e cada qual aborda, de maneira inédita, os obstáculos que impedem ou retardam as convulsões sociais latentes. Em MO' BETTER BLUES, o cineasta admite que os afectos individuais condicionam secundariamente o evoluir das comunidades (sobretudo as mais sujeitas a grandes pressões sócio-económicas, como é o caso da população negra nos EUA). O filme começa e acaba com a mesma cena: um menino negro, obrigado pelos pais a treinar, horas a fio, o instrumento que eventualmente se transformará em chave do sucesso. Na sequência de abertura, os pais, extremosos e severos, proíbem a criança de brincar com os garotos da mesma idade, vedando-lhe o caminho que liga a casa à rua. No desenlace, o menino da primeira cena é pai duma criança que também anda a aprender trompete, e mostra-se igualmente intransigente no tocante ao estudo; por um triz repetia a atitude repressiva de que o vimos ser vítima, mas acaba por aceder aos apelos dos companheiros da rua, compreendendo a tristeza do filho e, talvez, o risco da desinserção decorrente duma educação demasiado fechada sobre o antro familiar. O filme prova, em última análise, que, ao nível individual, é preciso uma geração de «blues» (vividos na rua, no palco, na cama) para que uma pequena mudança de perspectiva se verifique nas mentes arreigadamente conservadoras das comunidades marginalizadas. Spike Lee, autor-actor, atribui-se papéis de um tipo muito peculiar: personagens duma vitalidade transbordante e neurótica, tão desonestos com os outros como consigo próprios, cuja intrusão poderia desencadear transtornos radicais mas, no fim de contas, apenas obriga a uma revisão ponderada das relações entre os vários intervenientes ficcionais. O realizador parasita as suas próprias ficções, com a humildade quase cobarde de quem tem consciência da relativa ineficácia do media que escolheu. O ponto de vista de Spike Lee continua a ser marcado pelas leituras marxistas. Nestes tempos de conformismo (conformidade?) em que o simples nome de Marx arrepia o sistema capilar das cabeças bem-pensantes, a displicência angustiada de Lee alia o encanto dos continentes perdidos e humor desencantado dos aguaceiros que precedem o dilúvio prometido. R. G.