MANOEL DE OLIVEIRA E N T R EV I S T A A. R. T. — Vamos começar por OS CANIBAIS e depois iremos aos filmes anteriores. Podíamos começar pela questão da ópera. Como é que surge este filme como uma ópera e como é que o Manoel de Oliveira concebeu a adaptação do conto do Carvalhal em termos de música, de ópera, não é?... M. O. — Bem, em termos de música, foi o João Paes que musicou. A. R. T. — Mas a solicitação foi sua... M. O. — A solicitação é dele. Ele é que mostrou um grande empenho em escrever uma ópera. Em escrever música para uma ópera. Falou-se nisso quando eu estava em Washington para apresentar o SOULIER DE SATIN. Ele é lá conselheiro cultural, junto à Embaixada, e, em conversa num almoço, ele manifestou esse desejo. Eu não me pus de fora e lembrei-me logo do conto do Álvaro de Carvalhal, «Os Canibais», que ele não conhecia. Dei-lhe mais ou menos uma ideia do que se tratava e ficou assente que eu faria a adaptação quando voltasse para Portugal e lha mandaria para ele musicar, visto que ele não conhecia o texto. Eu fiz a adaptação, já em forma de «découpage», e mandei-lha. E, com base nisso, ele escreveu a música, a música enfim duma ponta à outra. Quando eu recebi a música, pedi a um músico para me dividir os compassos, para me indicar as pausas do canto, e ele dividiu-me por tracinhos o texto musicado. E eu refiz o «découpage» para acertar melhor com essas pausas. Depois entretanto gravou-se a música e uma vez a música gravada em cassette eu refiz novamente a montagem, ouvindo já a música, para acompanhar os movimentos. A. R. T. — Portanto a primeira fase foi mesmo a gravação da música tal como está no filme. M. O. — Foi, foi. A. R. T. — Isso foi prévio à rodagem... M. O. — Foi prévio... Não era possível doutra maneira. A música foi gravada antes. Quer dizer nós tínhamos o efeito da música, mais ou menos o comprimento do filme, visto que o filme não podia avançar mais ou retardar em relação a uma música que já estava escrita. Portanto, a música estava escrita, escolheram-se os cantores, por um lado, que foi o trabalho do João Paes, as vozes que melhor se adaptariam a cada uma das personagens e fez-se a gravação do canto. E fez-se, paralelamente a gravação da música, ou seja, foram duas gravações, a música por um lado, o canto por outro. Uma questão de conveniências técnicas. E depois juntou-se o canto e a música e quando se filmava, punha-se o trecho que convinha àquele momento e filmava-se ouvindo a música. Os actores cantavam o que ouviam. A. R. T. — E como foi o trabalho com os actores, uma vez que houve essa opção de escolher actores e não cantores... M. O. — Eu escolhi os actores que se adaptassem às personagens sobretudo e também às vozes. Tinha que condizer a cara com a careta. E pedi para que se fizessem ensaios com uma musicóloga. E assim se fez. Durante mais ou menos um mês antes das filmagens os actores faziam ensaios para ouvirem e cantarem, para imitarem, para o sincronismo e para que a expressão coincidisse e até para que se familiarizassem com o processo. De maneira que quando fomos, coros e não coros, para a filmagem essa dificuldade estava, por assim dizer, desbravada. A. R. T. — Ainda sobre este aspecto. Havia algum desejo seu de fazer uma ópera em cinema ou de trabalhar com a palavra cantada ou nunca lhe tinha passado isso pela cabeça antes da conversa com o João Paes. M. O. — Não, sabe... Tinha, tinha. Até tinha sido convidado já para filmar uma ópera na Bélgica, e interessava-me. De certa maneira, era um ponto que estava mais ou menos latente, cá dentro. Mas, quanto à formalização disso é que não aparecia assim nada de concreto. E este foi um desejo grande do João Paes e da minha parte foi um desejo de satisfazer o desejo dele e ao mesmo tempo também satisfazer uma experiência nova, que não é tão nova como isso porque, na verdade, o SOULIER DE SATIN para mim é uma ópera. Quem diz o SOULIER DE SATIN diz outro filme qualquer, mas o SOULIER DE SATIN porque o texto, a palavra do Paul Claudel é extremamente musical. Ele mesmo o diz. Portanto, quem fechar os olhos e abstrair o significado das palavras, ouve como que
uma música, a diferentes vozes porque são diálogos, não é? E isso interessou-me. E para que isso pudesse acontecer... — essa também é uma das razões; não é a única, é uma das razões de eu fixar a imagem o mais possível, para que as variedades do som se praticassem em si mesmas, quer dizer para que o ouvido estivesse mais disponível, não fosse distraído pelos olhos. São filmes de palavra, a palavra tem para mim muito interesse. A. R. T. — A própria palavra de O ACTO DA PRIMAVERA também tem um bocadinho já esse aspecto musical, digamos assim. M. O. — O mistério é um precursor da ópera. Os autos medievais, os mistérios, estão considerados como precursores da ópera. Quer dizer, é um sublinhar da musicalidade da própria palavra porque a palavra é, em si, musical, é música. Portanto há uma continuidade. Ora nesta evolução, desde O ACTO DA PRIMAVERA, este filme fechou o círculo. O ACTO DA PRIMAVERA abriu a atenção à palavra, ao desenvolvimento da palavra que vem por O PASSADO E O PRESENTE e pela BENILDE, pelo AMOR DE PERDIÇÃO, pela FRANCISCA e finalmente pelo Claudel que é um ponto-chave também por causa da força de musicalidade que há nas palavras. A. R. T. — Inclusivamente em O MEU CASO, está-me agora a ocorrer, há toda aquela repetição em que a palavra é incompreensível... M. O. — Sim, mas O MEU CASO é diferente. Deixe-me acabar o raciocínio, senão perde-se o sentido. Desde que se inaugurou este círculo que vai a essa musicalidade, chegou-se a um ponto em que não se podia avançar mais com a palavra, só cantada — era o passo em frente no sentido da musicalidade da própria palavra. O passo que fecha é realmente OS CANIBAIS. Abre com uma espécie de ópera, um precursor, que é O ACTO DA PRIMAVERA, e fecha o círculo com a ópera, percorre-se o círculo nesse sentido. É certo que, em OS CANIBAIS, eu procuro muito seguir os movimentos, os compassos, e dar o ritmo acompanhando a música. Quer dizer, enquanto até agora a música do João Paes para os meus filmes tem sido para acompanhar o ritmo do filme, os seus compassos ou as suas pausas, com este é o contrário. Como tinha a música já prévia, eu tinha de fazer o filme sobre aquela música, com o «découpage», é certo. Não foi alterado em nada em essência, foi só em detalhe, em pormenor, um trabalho de montagem, de ritmo, de compasso, de movimento. Foi nesse sentido para que não jogasse, uma vez que era uma ópera, a música como pano de fundo das imagens, ou vice-versa, as imagens como ilustração da música, mas que fizessem corpo único, que fosse um jogo que desse uma só peça, um só trabalho onde as coisas se conjugavam totalmente ou pelo menos tanto quanto me foi possível... A. R. T. — Mas não lhe parece que em O MEU CASO as três repetições com uma banda sonora diferente — é certo que não é só a banda sonora que é diferente, e a última é com palavras ininteligíveis, portanto só há música também da palavra, nem sequer há o sentido da palavra, nem sequer há o significado das palavras... — já é um bocado nesse sentido? M. O. — Exactamente, exactamente, diz muito bem, justamente é isso, se se rouba o sentido da palavra fica o quê? A musicalidade. E ali ressalta muito isso, como acabou de dizer e muito bem. Realmente a palavra não tem sentido e o que fica é a musicalidade da palavra. Mas se a palavra tiver sentido, ela continua com a mesma musicalidade. Só que esta é um pouco esquecida, pela atenção que é roubada para o sentido que a palavra tem. S. — O Manoel de Oliveira falou dum «découpage» em função dos compassos. Os compassos não correspondem sempre à mudança de plano? M. O. — Não, isso era impossível. S. — Portanto como é que trabalhou em relação aos compassos? M. O. — Mas é que os compassos estão relativos a certos movimentos, a certas mudanças musicais, a certas alterações. Isso é uma coisa que eu fiz na prática, não fiz na teoria. Fiz um pouco na teoria porque quando tive os compassos ainda não tinha a música. O musicólogo colocou-me as pausas, sempre que havia pausa, para que eu não mudasse o plano entre duas pausas, para que eu não caísse nesse erro porque eu não sabia onde é que ia cair a pausa e podia mudar de plano. De maneira que esse foi um primeiro trabalho. Mas depois tive a própria música. A música a sugerir-me ideias, imagens. Como, por exemplo, quando vão para o jardim, não é? Tem um relógio que dá meia-noite e depois há ali uma entrada antes de eles começarem a cantar que é um desenvolvimento do jardim
que no «découpage» estava como «paisagem», «uma paisagem». Mas a música sugeriu-me os passos com aquele «pi-pi» que faz com que eles olhem. Aí os passos foram-me sugeridos pela música, em vez de ser uma paisagem que não casava tão bem com o tipo de movimento musical que ali se instalou. E por aí fora. O aparecimento do D. João quando espia é sempre sobre aquelas notas «pi-pi», quando essas notas aparecem e não aparece a imagem dele, pressupõe-se a imagem dele, fica-se com a ideia, não é? Enfim, certos movimentos, certos motes e até certo tipo de expressão. Porque a música não é chata e varia também com o lado dramático, emotivo, da própria cena. Dar mais força, há um compasso com mais força ou com menos, casar essa divisão é uma coisa intuitiva que se faz com o ouvido e pondo no papel, assentando certas sugestões que nos ocorrem nesse tempo. Quer dizer que na própria filmagem eu filmava sempre com música, nunca filmei sem música, a não ser quando não havia música, que é o caso dos relógios que é uma introdução que eu meti porque vi aqueles relógios muito bonitos que davam um ambiente mais tétrico à situação. Depois disso, ao filmar os gestos dos actores, os movimentos dos actores respeitavam os movimentos musicais. Enfim ajustava tanto quanto possível. E finalmente, o último trabalho é o da montagem, montagem que eu fiz também com esse sentido, quer dizer no sentido de acompanhar o movimento musical, situar exactamente as pessoas, os olhares, no arranque das notas. Eu conheço pouco de música, faço isso por intuição. S. — Havia uma possibilidade, visto que a música era pré-gravada, que era. apesar de tudo, no momento da mistura trabalhar em termos de perspectiva sonora. Mas, como o Manoel disse, manteve a uniformidade da ópera. M. O. — Não, isso é outra coisa. A perspectiva sonora é um trabalho diferente. Depois do trabalho da montagem, quando as bandas estão todas afinadas, há um trabalho de mistura. E aí num salão de mistura onde estão, por acaso, dois técnicos muito bons, eu próprio, e o João Paes a assistir, por causa da parte musical, para acertarmos as agulhas. Então eu dizia: «Aqui mais alto, aqui mais baixo, aqui não tão alto, etc.». Aí é que se fazia toda a perspectiva porque tínhamos a imagem já montada e dava mais forte ou mais fraco, conforme. S. — Sim, sim. Mas o Manoel de Oliveira optou por um «parti-pris» de colar totalmente aos personagens. M. O. — Sempre não. Quando se está a dois, é. Sim, porque o que interessa é o que eles dizem, não interessa o que eles fazem, quer dizer, o que se faz à volta. S. — Mas o Manoel de Oliveira já utilizou processos diferentes. Aqui, quando o D. João está a espiar, não se vêem ao mesmo tempo o D. João e as personagens, vêem-se as personagens e o D. João alternadamente. Noutros filmes, o Manoel de Oliveira tinha dado soluções diferentes: chegava-se a ouvir um som «off» e a ver os auditores, que não falavam mas que ouviam. Aí mudou de estratégia... M. O. — Não, vejamos, quer dizer no jardim alterna, mas cá dentro, no salão, também alterna. Alterna com o músico, o que não alterna é com a dança, alterna com as coisas que estão ligadas à acção, não com coisas que não têm nada a ver com a acção, com o que se passa em volta. Não vê, por exemplo, que eu deixo de focar as personagens quando falam para focar as pessoas que estão a dançar. Vêem-se as pessoas que estão a dançar, mas através deles, da presença deles, porque a dança não é primordial, o que é primordial é a cena, isso é que é importante. Agora se me perguntar porque é que eu fiz assim ou porque é que eu fiz assado, sei lá. Faço assim porque faço assim e não faço doutra maneira. É levado assim. É assim que as coisas acontecem. E quando acontecem assim e não acontecem doutra maneira. Não tem explicação... A. R. T. — Claro... S. — De qualquer forma há escolhas. M. O. — Escolhas há. Há muitas escolhas. Mas a razão por que se escolhe nem sempre é uma razão concreta e plenamente consciente. Faz-se aquilo porque aquilo está melhor. Há a história dum homem que estava a fazer uma mobília, um marceneiro que estava afazer uma mobília e tinha um amigo. E o amigo foi lá e estava a conversar com ele. E ele estava ainda a acabar a obra até que disse para o amigo: «está pronto». E o amigo que estava ao lado: «porque é que tu dizes que está pronto?» Por que é que ele dizia que estava pronto, havia uma razão? «Está pronto porque está
pronto». Não tinha razão nenhuma. Estava pronto. Não tinha mais nada a fazer, estava pronto. Quer dizer, há coisas que não têm uma explicação racional. A. R. T. — Eu compreendo isso, mas... M. O. — Ele sentiu que estava pronto. Qualquer outro marceneiro podia querer fazer mais um arrebique, sentir mais qualquer coisa. E outro podia ter acabado mais cedo, fazer uma coisa mais simples. É uma questão intuitiva, é uma questão de gosto, é uma questão de subconsciente. Não dominamos essa parte. E, essa parte que não dominamos, não sei se não será maior do que aquela que nós controlamos. A. R. T. — Mas talvez viesse a propósito falar por exemplo do campo/contracampo, embora seja uma forma de expressão que está sujeita a tudo isso que o Manoel de Oliveira acabou de dizer, o que é facto é que é muito sistemático nos seus filmes, um uso, chamemos-lhe assim, peculiar, deste tipo de figura. Estou-me a lembrar daquela cena, que eu acho que é uma das cenas fulcrais dos seus filmes, e que é uma cena que eu muitas vezes cito mesmo a propósito dos outros filmes, na FRANCISCA, a cena do coração, em que não há um campo/contracampo normal, há duas sequências, até repetidas, em duas perspectivas diferentes. No BENILDE, as personagens que ouvem o que os outros estão a dizer, é que são enquadradas e não as que estão a falar, por exemplo. No SOULIER DE SATIN não há praticamente contracampos, a não ser no final. E aqui também há — a mim, por exemplo, pareceu-me particularmente interessante aquela cena cá fora no jardim em que o visconde começa a explicar aquela questão da estátua, de ele ser uma estátua, e em que se vê a Margarida dum lado e depois passa para o outro lado... quer dizer, há uma elaboração dessa cena de uma forma pouco vulgar. E isto acontece em vários filmes seus, de forma que dá a impressão que o Manoel de Oliveira tem uma atenção especial a este tipo de figuras. Agora o que é para si o campo/contracampo ou este tipo de variantes... M. O. — Atenção, tenho. É um processo muito usado, muito clássico, tradicional. Todos os filmes têm campo/contracampo. O que não é clássico, o que não é tradicional é ter só um campo frontal como por exemplo no SOULIER DE SATIN. Aí, a maior parte das cenas têm só o campo frontal, com um sentido de objectividade. É tanto mais objectivo quanto mais se reduz a variação visual. Quer dizer, tem uma perspectiva que se aproxima do que é real, na medida em que a realidade daquele lado é aquela. Por exemplo, um sujeito afirmava que uma bola exposta era preta e outro interlocutor que estava no lado oposto afirmava que era branca. Teimaram, teimaram, «não pode ser»... E um terceiro interlocutor que estava entre os dois viu a bola metade branca e metade preta. Portanto aquele via preto, aquele via branco. Esta é uma objectividade. Realmente, deste lado, o que é de todo objectivo é que a bola é preta; daquele lado o campo objectivo é que a bola é branca; e deste terceiro a bola é preta e branca. É uma realidade já mais complexa. E por aí podemos torná-la ainda mais complexa. A possibilidade de ver um objecto, a forma concreta e objectiva seria elevar o número de planos, de direcções (se metêssemos o objecto dentro duma esfera) ao infinito, o que é impossível, para ver todos os aspectos, todos os lados, todo o objecto. Por isso, num certo sentido, a redução de direcções caminha para uma certa objectividade, enquanto a multiplicação dos planos, por insuficiência, caminha para uma subjectividade, uma subjectividade multiplicada. A. R. T. — E de alguma forma o Manoel de Oliveira tende a evitar essa subjectividade, esse multiplicar de subjectividades... M. O. — Não, não tendo. Isto é um exercício mental. É um exercício mental de que eu me sirvo para fazer os meus filmes, mas não serve para mais nada. A. R. T. — Claro... Estamos a falar dos seus filmes... M. O. — Não é uma teoria, é um exercício que me orienta. Quando faço um filme não estou alheio a estas coisas. E isto até me está já no subconsciente. E eu até sem pensar já faço as coisas, já faço as coisas sem querer, não é? Um pintor que tem uma tela e faz assim um traço, não pode dizer «porque é que eu fiz assim e não fiz ao contrário». Ele não sabe por que é que fez assim. É um impulso, um impulso gestual que deu aquela forma naquele instante. Dois minutos depois o impulso, o gesto e o traço seriam outros. Porque era um outro momento, uma outra disposição psicológica.
S. — Mas aí a grande diferença com um filme é que entre o momento do impulso e o momento final há uma série de operações, uma série de intervenientes que é preciso controlar e o impulso tem tempo para se modificar. M. O. — Não, não, pode é haver alterações no momento da filmagem. A. R. T. — Mas costuma alterar muito? Isto é uma pergunta muito concreta, objectiva, não é sobre as intenções. Na filmagem modifica muito o projecto que traz? M. O. — Não, muito não. É isso que eu vou explicar. Modifico muito. Às vezes totalmente... A. R. T. — Mas por inspiração do momento, por sugestões alheias, pelo clima... que se cria? M. O. — Não, pelas sugestões que o próprio «décor» sugere, que os próprios actores sugerem, as roupas, tudo isso. Quer dizer, eu estou num jogo concreto em que nunca estive anteriormente e que me pode alterar os dados do problema que eu encaro. O processo, em mim, evolui da seguinte maneira: eu primeiro leio uma história ou penso numa história ou escolho uma história, ou seja, o que for para o filme, e depois faço uma reflexão muito profunda sobre esse tema; penso, penso, penso, até que chega um tempo, chega um momento em que eu tenho necessidade de expulsar esse pensamento, e é altura de eu passar ao papel; passo para o papel já em forma de «découpage». Ora, essa maturação, essa reflexão durante longo tempo proporciona, de facto... quer dizer, não serve para mais nada senão para que eu saiba que a ideia está de tal modo amadurecida que, no momento de alterar qualquer coisa, quando vêm as sugestões para fazer assim ou assado, eu saiba o que é que convém e o que é que não convém, o que é que romperia a unidade e o que é que contribuiu para a unidade. Pode vir uma sugestão muito bonita em si mas no conjunto não vai bem. A gente está preparada para sacudir ou para rejeitar ou para aproveitar as sugestões que surgem. Pelo menos é assim que penso que faço. Mas não posso garantir, claro. R. G. — Mas, por exemplo, em OS CANIBAIS sente-se que há um momento de ruptura no filme. Pelo menos é vivido pelo espectador dessa maneira. No primeiro tempo, aquilo é perfeitamente trágico, até com a unidade de acção da tragédia, justamente por estarmos sempre em cima das personagens, é sempre o mesmo tema que se debate, no mesmo espaço, no mesmo tempo trágico, até ao momento em que o homem se revela e se atira para o fogo, de repente o filme explode, sentese na sala o coro dos espectadores que abrem a boca... Há assim uma espécie de momento de surpresa incrível. E aí entra-se numa fase que é completamente cruel no filme. Depois ainda há uma terceira fase, já mesmo no fim do filme que é como numa fábula. Em muito pouco tempo, no fim do filme, há uma mudança de registo que é espantosa, surpreendente. Aí a pergunta é: o Manoel de Oliveira trabalha sempre no sentido da unidade formal ou procura às vezes a ruptura? Porque a mim não me parece que em OS CANIBAIS haja só unidade formal. Joga-se muito justamente nessa ruptura, nessa surpresa. M. O. — Sim, mas veja que o que acontece quando o público abre a boca por ele expulsar os braços e as pernas, não quer dizer que o público esteja bem informado a esse respeito. Todo o tempo que se passou, ou quase, o diálogo que há no baile, o outro que há no jardim... R. G. — Pois, pois ele começa por entrar em cena a arrastar nitidamente as pernas. M. O. — Depois as suspeitas que há nos coros com as luvas no jantar... R. G. — Pois é trágico, é anunciado... M. O. — Tudo levanta essa suspeita e mesmo antes de ele se desarmar, ele diz que não é um homem, que é uma estátua, que os braços e as pernas são postiços. Mas, por mais que se diga, choca verem-se assim os braços e as pernas soltarem-se do corpo. Porque não é comum, não é verdade... R. G. — É o mínimo que se pode dizer... Pois, mas no fim há mesmo esse tom de fábula. Com a roda... M. O. — Pois muda... R. G. — Eu durante todo o filme pensei na Bela e no Monstro. E no fim fiquei com a convicção de que o filme é uma espécie de anti-Bela e o Monstro. É tudo ao contrário da Bela e o Monstro. M. O. — No filme é tudo um bocado ao contrário. Mas não é o filme, é a história do próprio Álvaro de Carvalhal. Por exemplo o D. João, o D. João é um desgraçado, é o contrário do que é tradicional. O visconde de Aveleda, que é um homem cheio de seduções para toda a gente, estranho mas cheio
de seduções, enigmático, passa a ser um tronco miserável que não se pode mover. E tudo assim ao contrário. R. G. — No fundo é o único que não se safa, que não sai da fogueira; porque os outros ressuscitam e ele é comido. É o único que não se salva. E comido e não volta a aparecer no fim... M. O. — Esse final, mesmo para mim, tem vários contextos muito diversos, quase opostos. Para mim, pode ser um safar toda aquela crueldade, todo aquele ambiente pesado, acabando numa cegada, num divertimento, dizer «isto tudo afinal é fita». A. R. T. — Acabou a representação... M. O. — Acabou a representação e tomemos o lado alegre da vida em vez do lado tenebroso. Pode ser essa uma interpretação. Esse lado animou-me sempre muito. Outro lado era o conceito de castigo sobre os culpados. Quem era culpado? Quem não era culpado? Ora todos são culpados: o D. João, que quis matar, não matou mas tinha essa intenção e que se matou depois, a Margarida que não suportou os defeitos físicos enquanto suportava todas as imperfeições morais (assassino, gatuno ou qualquer outra coisa), o pai que esqueceu a filha, assim como os irmãos, logo que viram que eram os herdeiros, não é? E portanto, como o violinista, o Paganini, que é um enviado do demónio, quando deixa o objecto de encanto, porque foi ele que preparou aquela história toda, leva-os todos atrás dele com o violino, mesmo os mortos, já estão todos mortos, vai tudo para a casa do diabo. Esta pode ser outra interpretação. Pode haver outras ainda, eu mesmo tenho outras ainda. A. R. T. — E há ali um certo atenuar duma divisão, que é progressiva, entre bons e maus. A determinada altura há os «canibais» que são excessivamente maus, e há aquela distinção até entre a aristocracia e os criados e depois começam a aparecer aqueles dentes que tornam mais iguais todas as pessoas, e o próprio padre, depois de alguma hesitação, arreganha os dentes... M. O. — Acaba por ser vencido. A. R. T. — Os dentes animais, digamos. Finalmente então tudo se junta, mesmo os mortos da história, naquela cena final, os bons e os maus são os mesmos e logo as pessoas são boas e más. Eu vi assim. Aquele factor do amor puro que a Margarida enuncia e em que o visconde de Aveleda chega a acreditar por um lado, por outro, o interesse mercantil da herança, que é o oposto disso, por parte da família, no fundo tudo se junta. São as mesmas pessoas. São factores da natureza humana. E isto, noutros filmes seus, também já aparece... nos finais dos seus filmes... M. O. — Mas tudo se junta no interesse, é que tudo se agarra ao lado do dinheiro. Porque o porco representa o dinheiro. Sim, não é? E eles vão todos atrás... A. R. T. — A música festiva e dum certo optimismo junta dois opostos. M. O. — Contraria um bocadinho... R. G. — Mas aqueles dentes são dentes de vampiro e aquilo é uma história de vampiros no fundo. Até porque o próprio amor da Margarida é um pouco vampiresco: ela quer, à viva força, aquele homem, independentemente de tudo. M. O. — Pois é... Mas depois não quer... R. G. — Mas depois não quer... M. O. — E aí é que... S. — Mas talvez no fim de contas o visconde seja o único puro e é um monstro. Quer dizer, a pureza é uma monstruosidade. M. O. — Essa é boa, essa é a melhor da tarde... S. — Mas o Manoel de Oliveira não concorda? M. O. — Concordo, concordo. Bem vistas as coisas é uma monstruosidade porque a monstruosidade se opõe à normalidade. Ora o normal é realmente a imperfeição. A. R. T. — Sim, mas no final juntam-se, digamos, os pólos opostos, e isso é um pouco característico de alguns finais dos seus filmes. O Cristo e a bomba atómica. Mesmo em O MEU CASO, no final, há imagens de perfeição e de optimismo e de catástrofe quase sucessivas, até se fica numa certa indecisão final. Como que é dado ao espectador uma indecisão final entre uma posição extremamente optimista e uma posição extremamente pessimista, que podem ser as tais duas perspectivas do branco e do preto da bola de que falava há bocado. E o espectador fica com os dois campos e o Manoel de Oliveira joga até ao fim numa... nas duas...
M. O. — Na ambiguidade... A. R. T. — Nas duas perspectivas, digamos assim. Não diz «afinal é tudo bom ou mau». Nem o bem triunfa sobre o mal. Nem derrota nem vitória... E este final sintetiza muito isso. M. O. — Exactamente. R. G. — Mas O MEU CASO, pelo menos eu tenho a impressão disso, no final fica, apesar de tudo, uma ideia muito positiva de necessidade de elevação do homem e de necessidade de ideal, de qualquer coisa que é do plano do ideal. Enquanto este filme, OS CANIBAIS, é menos optimista. M. O. — Sim, O MEU CASO joga mais nesse sentido. Está simbolizado em dois quadros: o do Picasso e o do da Vinci. A. R. T. — Sim, mas no final surgem os dois quadros: não é a Gioconda nem é a Guernica. São os dois. M. O. — Não, é a Gioconda, é a Gioconda. Porque todo o processo de O MEU CASO desenvolve-se em volta da Guernica de Picasso, que é a realidade tal qual ela é, e a Gioconda, o idealismo. Esse tópico... quer dizer, enquantoo Picasso é a sociedade tal qual ela é, a Gioconda é a sociedade tal qual o homem desejaria que ela fosse. A. R. T. — Mas há aí um paradoxo interessante porque precisamente a Gioconda é um retrato mais próximo da realidade, o quadro do Picasso é mais... quer dizer, noutro sentido a Gioconda é uma cara de mulher obviamente (obviamente há quem diga que não) e o outro é uma confusão não tão perspectivada com o real... M. O. — Bom, mas isso está ligado ao facto de um quadro ser expressionista e o outro clássico. De maneira que são dois tipos de expressão. A. R. T. — Mas isso é que eu acho feliz na ideia, é essa oposição... M. O. — Porque realmente a gente vê a simpatia e a bondade e o acolhimento e a ternura numa expressão, numa casa, na cara dos homens, e por dentro está tudo quanto o Picasso pinta. Está aquela terrível confusão de interesses e maldades, etc., que é diferente. De maneira que, como ele joga entre esses dois pólos, todo o exercício é esse: em todos os campos se mostra um lado ou outro. Quer dizer, aquele homem pretende vir corrigir a humanidade, trazer, como hei-de dizer, a chave da solução. Mas ninguém o ouve. A. R. T. — Claro... M. O. — E depois, na segunda parte, tem a vida, que são as próprias actualidades. Ali também há um jogo dos processos artísticos, do audiovisual, do cinema, da televisão e do vídeo. De tal forma que não há ali espectadores. De tal forma, que os espectadores são os «media», os que filmam. De tal forma, que os actores, todos os actores, passam a espectadores perante o vídeo, dentro do próprio palco. Há uma representação da representação da vida. Um espelho. Como que um espelho que se mostra. E todos esses processos são os processos através dos quais a gente pode chegar a conclusões. Como, por exemplo, a de ver o olhar de Deus ou a de ouvir a voz de Deus, que é um simulacro como outro qualquer. A. R. T. — Mas que é finalmente aquela posição bem exterior do espectador mais completo, se assim quisermos, o mais objectivo, no jogo de que o Manoel de Oliveira tem estado a falar e de que fala nos filmes, entre actores e espectadores, jogo esse que é constante, em OS CANIBAIS, entre a aristocracia e os criados, e noutros filmes há outras situações semelhantes. Essa posição mais objectiva em relação ao teatro dos homens. É a única posição... M. O. — É, é. Eu gosto... eu sinceramente tenho um certo fraco por O MEU CASO. Gosto muito particularmente desse filme. Concordo que seja um filme difícil. R. G. — Mas quer seja através da Guernica, quer seja através da Gioconda, aquilo que produz sempre é uma tentativa de salvar o mundo. Vivida duma maneira individual, quando se faz uma obra de arte, quer ela venha a representar um mundo ideal, quer ela represente o mundo como ele é, é sempre o diálogo da criatura com o criador, mesmo que esse Deus seja pessoal e não confessado. Há sempre aquela «revolta» de querer modificar as coisas. M. O. — E de Deus com o criador... Está bem, acho muito bem. É que realmente Deus altera a vida de Job, mas Deus homem não é capaz de alterar a sua própria vida. R. G. — Mas o que fica de positivo é que há sempre essa tentativa de a alterar.
M. O. — Lá isso há. R. G. — Eu acho que é por isso que O MEU CASO não é um filme pessimista, apesar de tudo. A. R. T. — Nem os OS CANIBAIS é... R. G. — Em OS CANIBAIS fica-se desconcertado. Não se sabe muito bem exactamente... A. R. T. — Sim mas o tom festivo do final introduz uma nota discordante com todo o pessimismo. Não se pode ignorar que a música e a dança têm um tom alegre e festivo... É objectivo! R. G. — Está bem, mas é como uma criança que ouve uma história, por muito que saiba que é uma história, se essa história for pesada fica-lhe sempre qualquer coisa a pesar. M. O. — Sim, claro. R. G. — Acho que há mais optimismo em O MEU CASO do que em OS CANIBAIS. O que fica de OS CANIBAIS é qualquer coisa que é difícil de engolir, é essa tal ambição desmedida que começa por ser a da Margarida que quer possuir aquele homem a todo custo e que afinal é incapaz de assumir até ao fim essa tal paixão. A. R. T. — Essa questão permite até introduzir uma outra questão que está mais relacionada com outros filmes de que temos falado menos: o AMOR DE PERDIÇÃO, o FRANCISCA, o BENILDE e O PASSADO E O PRESENTE — o tema dos amores não consumados. Que é uma constante também na sua obra. Não é o caso de O MEU CASO, tanto quanto me recordo, mas é o caso sistematicamente destes outros filmes. M. O. — Os amores da tragédia, não é? A. R. T. — Mas particularmente não consumados até do ponto de vista sexual. São amores que não se chegam a realizar. Quer em FRANCISCA, quer no AMOR DE PERDIÇÃO, quer agora em OS CANIBAIS. S. — LE SOULIER DE SATIN... esse encontro... eles são feitos um para o outro mas há o «soulier de satin» que foi depositado... M. O. — Não, mas em LE SOULIER DE SATIN... ela de qualquer maneira realiza o seu amor. Tem uma filha que é a Sept-Epées. S. — Mas que não é a... M. O. — O Claudel tem uma grande força de viver, de vida. Em tudo nele há um despertar para a vida muito forte, muito alegre. E uma aceitação da vida conforme Deus a concebeu, ou nos deixou. E, por isso, o amor dele, quer dizer, o gosto da vida faz realizar o amor no sentido do acto sexual. S. — Sim, mas não há a possibilidade de... M. O. — Não. Os verdadeiros amantes não se realizam. S. — Isso mesmo. Há uma troca de parceiro. Há um substituto. O verdadeiro amor não chega ao encontro. A. R. T. — Dá a impressão de que há um amor, que se se materializasse, se se realizasse, se empobreceria. Que fica como um desejo cruel... M. O. — Parece que sim. Há quem diga que a Prouèze casou com o inimigo de Rodrigue para exacerbar o amor do Don Camillo. R. G. — Para não estragara paixão... Mas também há a imagem dessa paixão. Em LE SOULIER DE SATIN, o que acontece ao espectador é que acaba por se solidarizar com aquelas personagens e com o sofrimento delas ao quererem continuar a ser como são. Isto acentuado pelo facto dos planos serem muito longos e uma pessoa fica vergada pelo peso do filme. Por muito que intimamente se ache que eles podiam ser doutra maneira, acaba por se perceber essa necessidade de eles manterem intacta a imagem da paixão e doutras coisas. O Manoel de Oliveira trouxe muito de si à peça do Claudel. Ainda há bocado ao vir para sua casa, discutíamos, a partir duma observação do Roma Torres, que no princípio da peça do Claudel há uma indicação de cena que diz que a peça deve ter um tom carnavalesco... eu não acho que isso esteja no filme. A. R. T. — Em relação a outros filmes seus, é menos carnavalesco. Em OS CANIBAIS sim, podese considerar que é um baile de máscaras... M. O. — Essa tal contradição é do Claudel: o amor pela vida no drama mais profundo. O sofrimento, diz ele «Cristo não veio para nos explicar o sofrimento, não veio para retirar o sofrimento mas para nos preencher dele», ele Cristo, através do sofrimento.
R. G. — O sofrimento pode ser amor pela vida se se tiver razões para se sofrer. M. O. — O catolicismo do Claudel é terrivelmente cruel, é difícil, é muito difícil. Eu acho um homem extraordinário. Mas ele diz «ce n'est pas l'amour qui fait le mariage, c'est le consentement». Isto é muito bonito. E até muito verdadeiro. Realmente, às vezes, o amor desfaz mais do que o que faz. Agora o consentimento, essa atitude do consentimento é uma atitude muito pura e muito bonita. E diz outra coisa «il n'y a pas de plus grande charité que de tuer les êtres malfaisants». Isto é terrivelmente cruel. Mas os malfeitores também são cruéis. Mas é terrivelmente cruel, são visões categóricas que ele tem. Não tem dúvidas, hesitações. É um homem terrivelmente cruel. E uma das grandes personagens além do Rodrigue é o Don Pélage, que é o que traduz estes pensamentos. O Don Pélage é uma figura extraordinária. Porque ama a mulher mas sacrifica tudo ao dever. E mete a mulher lá longe, com todos os perigos do Don Rodrigue e do Don Camillo. Mas ela também é uma mulher de altíssima qualidade e só se junta ao Don Camillo casando, depois da morte do Don Pelage. R. G. — Nós estávamos no tema dos amores não consumados... e havia mais uma pergunta... M. O. — Mas esses amores são menos visíveis, saltam menos à vista, entre Don Pélage e Dona Prouèze são também uns amores curiosos. Ela queixa-se de que ele não tem amor por ela. Ela queixa-se: ela tem um amor superior, muito forte. E interessante. E difícil. É preciso ler. Fazer um estudo profundo. Há para aí alguns, mas não sei se de alguém capaz de analisar bem todos esses pontos e esclarecê-los. A. R. T. — Mas essa espécie de amor mais espiritual, não visível, contrasta muito no seu cinema (portanto é uma preocupação sua, surge várias vezes)... M. O. — Os temas são assim... A. R. T. — É um tema que o fascina, se quiser... M. O. — Mas não são temas fascinantes? Então o AMOR DE PERDIÇÃO não é um tema fascinante? A FRANCISCA não é fascinante? A situação daquela mulher, é uma mulher que se sacrifica a tudo, não é?, até a não ser mulher. A FRANCISCA é uma história fabulosa. Ou a BENILDE que é uma coisa estranha, o problema da existência ou não existência de Deus, o problema da comunicação ou não comunicação com Deus. Ou o problema da loucura, do histerismo. Ou então uma visão. Ou então relações com o vagabundo que continua a ser transcendente, pois não se sabe se não é um meio de materialização do espírito. Ou se não há nada... R. G. — Mas de qualquer forma a situação é milagrosa. Seja qual for a resposta a situação é milagrosa, a situação de Benilde... M. O. — Qual milagrosa? Não há milagre nenhum. Ela morre. R. G. — Pois, mas seja como for... M. O. — Ela morre. Ela nem tem filho, nem se sabe se está grávida. O histerismo parece que pode simular a gravidez às mãos do médico. Não sei se é... A. R. T. — Pode, pode. A gravidez histérica. R. G. — Uma gravidez nervosa. M. O. — Mas não é um milagre. Isso é um erro que persiste, uma ideia que as pessoas têm por o milagre estar muito ligado à religião. Portanto, se se trata de religião logo é milagre. E não é. O que subsiste ali é a cruel, cruelíssima dúvida, mais nada. A dúvida, a dúvida que se põe na vida. Dúvida quanto à existência de Deus, quanto à intervenção de Deus, quanto àquilo que aconteceu. É muito difícil. Mas na vida, para se saber a verdade é muito difícil, nunca se sabe a verdade, é uma simulação da verdade. Há uma verdade suposta. Mas nós não sabemos. Nós estamos aqui os quatro. Temos este dado digamos histórico, factual. Estamos aqui a conversar e estamos em contacto e podemos testemunhar todos os quatro o tipo de conversa que estamos aqui a ter. Mas daqui a um instante, cada um vai para o seu lado, e não sabemos mais nada. Pode-me chegar aqui um eco de A ou de B, outro eco dali que eu não sei se é verdade, se não é... De que eu não sou testemunha. Depois encontro-vos muito mais tarde, como nos encontrámos antes, e são esses tópicos que nos ficam. Mas o que há entre isto, que é o que os americanos, em matéria de substância, é o que eles querem realmente fabricar, é o menos testemunhável. Nós não sabemos. Sabemos de um encontro aqui e dum encontro acolá. Quanto mais trama fizermos entre dois espaços, maior é a quantidade de
mentira. É mentira porque não há testemunho. Só podemos dar esses pontos. É o que eu faço no SOUL1ER, é o que eu faço em geral nos filmes, dou os pontos cruciais. O resto perde-se. O resto é dúvida ou fica que é isso que é bonito. E bonito porque é assim. E ao mesmo tempo cria mistério. Cria muito mistério. Toda a vida é um mistério enorme. Desde o cosmos, até ao nascer e ao morrer, tudo isto é um enorme mistério. R. G. — Mas aquilo a que eu estava a chamar «milagre» é um bocado isso. Não interessa se é milagre se não é, importa que acontece uma coisa para a qual não há uma explicação. M. O. — A interrogação. A. R. T. — No milagre em princípio há uma explicação contra uma outra lógica, a lógica do natural. Mas há uma explicação, digamos assim, quando se coloca a questão do milagre... M. O. — O milagre é o que sai fora do natural. A. R. T. — Mas aqui há mais a dúvida. M. O. — É mais a dúvida, não é propriamente o milagre, não diz que é um milagre. A gente fica sem saber... A. R. T. — E um pouco ao contrário de A PALAVRA do Dreyer em que há um milagre. Na BENILDE é suspenso no final pela morte e portanto fica em aberto. Enquanto em A PALAVRA há, no final, um dado que contraria a lógica de ele ser louco, porque houve um milagre, logo alguma coisa se passa. Fica uma interrogação, mas há uma afirmação... M. O. — Há uma afirmação muito grande, muito grande e até mais, depois da certidão de óbito passam-se três dias e vai o carro para aqui, anda para ali, portanto ela está bem morta, quer dizer-se que está bem morta. O Dreyer teve a coragem realmente de dizer assim: eis um milagre. E teve a coragem de dizer assim: ora os crentes não crêem nos milagres, logo não são crentes. Os primeiros a duvidarem são os cristãos, os protestantes que dizem «oh, isso não pode ser!» Mas eles são cristãos e são protestantes. deveriam ser os primeiros a dizer «sim senhor», é viável. R. G. — No Dreyer é mais complicado, resulta é que o espectador acredita, aquilo é tão forte que o espectador acredita, faz parte do milagre. Eu que não acredito em milagres fui tocadíssima por essa cena. Há qualquer coisa em nós que acredita naquilo. M. O. — Pois é. A. R. T. — E o personagem é louco, não é?, em princípio não é nenhum Cristo, R. G. — Estou a lembrar-me do filme do Rossellini que se chama O MILAGRE, não sei se o Manoel de Oliveira conhece. M. O. — Conheço, conheço. R. G. — Também é uma história de louca. Também há uma explicação para aquilo e não deixa de ser um milagre. M. O. — Não é uma história de louca, é uma história tirada dum conto qualquer da América Latina. S. — Foi inventada pelo Fellini. M. O. — Não, não foi inventada pelo Fellini. R. G. — O Rossellini diz isso numa entrevista. S. — O Rossellini conta que o Fellini, assistente dele, para poder propor a história, inventou uma paternidade qualquer para a história mas afinal era da lavra dele. R. G. — O Fellini veio-lhe com a história dizendo que era um conto russo. O Rossellini achou bonito e quis fazer um filme. Depois começou a preocupar-se com o texto e a reclamá-lo. O Fellini nunca mais lhe trazia o famoso texto até que acabou mesmo por ter que confessar a patranha e que não havia novela nenhuma e que tudo aquilo não passava duma estratégia para ser levado a sério. Bom, mas isto não tira nem põe à história do milagre... M. O. — Sobre isso houve uma polémica na Itália, tudo isso vem naquela revista italiana, «Bianco e Nero» em que alguém dizia que aquilo era tirado duma história e transpunha o conto. Falava lá duns sinos, a mesma coisa. Eu até supus que aquilo viesse da BENILDE. Mas não pode ser porque é do mesmo ano da BENILDE. R. G. — Em todo o caso há uma grande irmandade entre as duas histórias. M. O. — Há muito. É a dúvida, é a dúvida, realmente é. R. G. — Apesar de haver também todos os dados.
M. O. — Mas os termos em que está posta são contrários à... o que é que se deduz dali? O que se deduz, embora ele não diga, é que ela teve relações com aquele homem que é o S. José ou que parecia o S. José. E ela aceitou aquilo como uma coisa divina. E depois tem mesmo a criança. E ela opõe-se, resiste a tudo. R. G. — Não interessa que ele fosse na verdade um vagabundo e não um S. José. Ela acredita. Continua a ser um milagre com todas as explicações. S. — Eu tinha outras perguntas, mas implicam desviar um pouco o assunto. Uma coisa que me surpreende, e gostava que o Manoel falasse sobre isso, é uma visível vontade da sua parte de criar, em cada filme, uma espécie de espaço próprio em que a percepção da actualidade, do mundo de hoje, não aparece ou aparece (como em OMEU CASO) já mediatizada. Tenho a impressão que em cineastas como o Buñuel ou o Rohmer há uma preocupação, ao nível das imagens, não propriamente do que é contado, de também registar o aspecto... M. O. — Quotidiano... S. — Quotidiano, arquitectónico, etc., do tempo em que eles estão a trabalhar, enquanto em si, antes pelo contrário, há uma vontade... — eu não tenho dúvida de que o século XIX que aparece em vários filmes do Manoel de Oliveira é mítico, e o Manoel de Oliveira fala também sobre hoje e diz coisas que são da actualidade, mas as imagens não representam directamente essa actualidade. M. O. — Essa actualidade é sobretudo representada nos documentários. O DOURO FAINA FLUVIAL, O PINTOR EA CIDADE, O PAO. S. — Sim, houve uma evolução. Inclusive no ANIKI-BOBÓ havia uma vontade de filmar aspectos, eu não conheci a Porto na altura, da actualidade de 42. Essa mudança parece-me ter começado com a BENILDE, depois de ACTO DA PRIMAVERA eu diria... M. O. — Eu tive histórias escritas sobre temas actuais, mas não consegui fazê-las. Mas não interessa muito. A actualidade... depende das histórias. Se eu encontrasse uma história cativante, naturalmente faria uma coisa qualquer. Mas a actualidade, em si, não é nada. Nós movimentamonos num mundo de imaginação que é actual em qualquer momento. S. — Sim, mas, por exemplo, estávamos a falar da não consumação do amor. Quer dizer que, através disso, há uma espécie de representação daquilo que o amor pode ser, que espera algo mais do homem, e esse algo não pode vir com a consumação. M. O. — Eu não baseio isto nesse tipo de filosofia... S. — Não se trata duma interpretação. Quero dizer que o discurso do Manoel de Oliveira sobre o amor também diz respeito ao amor que pode existir hoje em dia. Mas mostra-o através dum «décor» já mitificado, que pertence ao passado. M. O. — Não, ao contrário, ao contrário. Em geral eu busco coisas reais, coisas que tivessem acontecido como o AMOR DE PERDIÇÃO ou como a FRANCISCA, não é? O que aconteceu com a Francisca naquela época pode acontecer hoje. Simplesmente não aconteceu. O que me chegou à mão foi daquela época, que ainda é real. As personagens eram reais, a Fanny Owen existiu. O Camilo Castelo Branco existiu. O José Augusto existiu. Aquilo aconteceu e até foi filmado nos lugares onde aconteceu. O que é mítico é filmar uma actualidade que nunca existiu. Isso é que é falso. Porque estamos a filmar coisas e lugares e pessoas que não existiram e lugares que existem mas que não existiram naquele contexto. O cinema é imaginação. Agora, se ele estiver ligado a uma realidade, como por exemplo O CONDENADO À MORTE do Bresson, a gente aceita muito mais do que se se dissesse assim: «aquilo não se passou na realidade», «aquilo é a imaginação do homem». Mas «aquilo passou-se na realidade»... esta dualidade entre a realidade artística e a realidade real... são duas realidades que se baseiam no mesmo ponto, que têm por motivo um ponto comum. S. — Vou tentar dar um exemplo. Logo à partida, o Manoel de Oliveira, e isso vê-se no primeiro plano de BENILDE que a esse respeito é perfeitamente didáctico, dá-nos a realidade do estúdio de hoje mas esse estúdio vai permitir ir para um espaço «dentro do estúdio». Uma vez definido o espaço fechado localmente — penso também em O PASSADO E O PRESENTE onde praticamente não saem daquela casa —... A. R. T. — Em O PASSADO E O PRESENTE não é tanto assim porque há uma viagem, cá fora, há o enterro, então vê-se esse tal plano arquitectónico...
S. — Sim mas há um certo fecho. Para comparar, tomemos A ILHA DOS AMORES onde também há fecho, mas, ao lado, o Paulo Rocha preocupa-se em meter imagens de construção de hoje, coisa que o Manoel de Oliveira não faz... M. O. — Pois não, os prédios de hoje na FRANCISCA não ficariam lá muito bem. S. — Mas isto não é uma avaliação. M. O. — Pois, mas o que me interessa são as relações interiores entre os indivíduos e as ilações que daí se podem tirar. O facto de elas estarem situadas num lado ou noutro... Se esta história tivesse sido escrita hoje, dos braços e das pernas, poderia ter sido muito mais escrita hoje do que no século passado em que foi escrita. Se tivesse sido escrita hoje e houvesse um sujeito que tivesse uns mecanismos que simulassem os braços e as pernas, estava sujeita a um outro tipo de contexto, a um contexto actual. Mas esse contexto em si é uma capa, uma capa dum livro que se põe, não tem interesse. O conteúdo, o interior, a essência, aí é que está a riqueza. E isso é interior. Quer o senhor dizer que eu tinha que adaptar era as coisas que são exteriores, dava uma sala como esta ou parecida ou diferente, mas que fosse actual, em vez de dar aquele palácio, com aquela riqueza. Simplesmente a história não está escrita hoje, está escrita naquele tempo. E eu afeiçoei-me àquele tempo. E isso cria um certo mistério, torna-a como que uma lenda. E isso enriquece. Uma realidade muito directa interessa-me menos. Um automóvel que sobe, se não houver qualquer coisa dentro que ultrapasse esses pontos... De qualquer maneira estou sempre a falar sobre o mistério da vida. E isso não tem tempo. E de hoje, de ontem, será de amanhã. S. — Ao mesmo tempo há uma referência actual. Vejo em todos os seus filmes um discurso metafórico sobre o próprio cinema. Que vai desde a definição do projector de cinema que aparece nos pescadores de LE SOULIER DE SATIN até à chegada dos automóveis (que já estava em O PASSADO E O PRESENTE mas que é retomada em OS CANIBAIS) que é quase uma chegada como a gente imagina nos Festivais com as «Stars» a desfilar, etc. É como se houvesse uma referência à coisa actual que seria a coisa fechada do cinema. Como se o cinema representasse um mundo fechado, um mundo que cria todos os seus enfeites. M. O. — O cinema é na realidade um mundo fechado. Há coisas que se passam dentro do cinema. Outras que se passam dentro do teatro. Não se passam no correr da vida. Essa noção de realidade concreta, também a tenho, mas é uma coisa muito superficial. A realidade, no fundo, existe na memória. Se não fosse a memória, o tempo actual é um ápice tão rápido que não chega a ser, não se pode dizer «é» ou «está»; quando a gente diz «está», já foi. De maneira que, se não fosse a memória apanhar tudo isso, isso não existia. A realidade já foi. Esta que nós estamos agora a ver já não é, já foi. Ela está lá. Mas a que nós vimos, já foi. Portanto tudo é uma questão mental, é uma questão de imaginação, é uma questão de conservação. O que é a realidade concreta? Nós não sabemos. Tudo é memória. E estamos sujeitos às deformações ou deturpações que a memória nos quer impingir. S. — Mas o Manoel de Oliveira não está a tentar criar, e isso faz parte, a meu ver, do papel do cinema, criar uma memória desta actualidade. R. G. — É que o cinema justamente contraria esse funcionamento. Fixa. M. O. — O cinema é um processo audiovisual de fixação. Essa palavra fixação é muitíssimo importante. O cinema é, por assim dizer, uma memória. Nós não podemos ver esta ponte. Mas nós vemos a ponte naquele tempo, está lá. Já não tem nada que ver com a ponte. A ponte que está no DOURO FAINA FLUVIAL não tem nada que ver com a ponte real que lá está. Já é uma ficção da ponte. No próprio documentário ela está, mas está todo aquele tempo. Está todo aquele tempo por efeito da nossa memória mais do que propriamente pela fixação, é através da fixação que nós rememorizamos. Aquilo lá está o rio como estava naquela época, com os navios, que agora já é muito diferente. A ponte está como era. Tudo está lá como é, mas já não é de hoje. Quer dizer, já há casas que não existem, a visão da cidade já é outra, etc. São coisas diferentes e portanto há imediatamente uma visão paralela entre aquilo que é, que está no filme, que era, e aquilo que está na realidade e que é na realidade. O que está no filme é o que era, não é o que é, que está na realidade. Há sempre essa diferença, o que pode datar um filme. Por exemplo, aparece um carro de bois, agora já não há carros de bois lá, aparecem uns automóveis dum certo tipo que estão datados, que são duma época, etc.. Mas a própria técnica do filme também está marcada pela mesma época,
a factura do filme também está marcada por uma época; apesar de toda a personalidade que o autor possa imprimir num filme, ele está datado pela sua própria... O DOURO FAINA FLUVIAL não podia ser feito hoje. Não é porque o rio não esteja assim. É porque quem fosse fazer tinha outro manejo. A técnica evoluiu como a pintura evolui. Portanto as coisas ficam sempre datadas nesse aspecto. Mas ficam datadas por aquilo que é mais exterior. E eu acho que aquilo que é mais interior é menos datável. Por exemplo, um assassino é um assassino sempre. Uma paixão é uma paixão sempre. Um suicídio é um suicídio sempre. O facto de um homem se suicidar a gente pode datá-lo pela roupa, não pelo facto de se ter suicidado. Não pelo facto de se ter apaixonado por uma mulher. Isso é de todas as datas. Não interessa muito. Claro que se eu o vestir à moda de hoje é de hoje. Se eu o vestir à século passado, é do século passado. A. R. T. — Esta questão da memória... estava a associar ideias e estava-me a lembrar dum filme seu desconhecido, que é o filme que fez sobre a sua casa da Rua da Vilarinha. Eu compreendo que o Manoel de Oliveira não tenha falado muito sobre ele, mas de alguma forma prende-se um pouco com esta questão da data, do tempo, da memória, da fixação. M. O. — Não, não tem essa intenção. Eu estava numa casa e quis deixar gravada essa existência. Eu vivi durante quarenta anos nessa casa. Foi o período mais longo da minha vida. De certeza que não estarei noutra casa outros quarenta anos. De maneira que a casa para mim tem um significado, representava uma certa vivência, os meus filhos, foram criadas duas gerações, etc., e eu desejei fixar essa casa. E tive, como valor, fazer a representação do que é o valor duma casa. E, paralelamente a esse valor de uma casa, pedi à Agustina e ela escreveu um texto muito bonito chamado «A Visita». Portanto há uma visita que descobre a casa. E que discorre sobre e casa, sobre as fotografias, enfim, sobre a vida e a representação da casa... muito interessante, esse texto é muito bonito, da Agustina. Ela teve a gentileza de me oferecer o texto para eu poder fazer esse filme e, paralelamente a esse texto, a casa aparece nua, vazia, apareço eu, de vez em quando esse texto corta, é interrompido pela minha presença. Apareço sempre no escritório em que memorizo algumas coisas da minha vida e tiro algumas conclusões. E acaba por aí. Portanto a construção é esta. Era mais para fixar esse tempo. Claro, como a gente não sabe o tempo que dura, eu acho que ia sendo tempo de fazer isso, antes que já não o pudesse fazer. Porque essas coisas logicamente seriam feitas no fim. No fim de tudo é que se faria essa memória. Mas não tinha a casa já para o fazer, por um lado, e por outro a gente não sabe qual é o último dia. A. R. T. — É por isso que o Manoel de Oliveira não o mostra agora, não o exibe? M. O. — Eu não o exibo agora porque aquilo é uma memória. Era para fixar aquele momento e fixei naquela altura. Tinha que ser em alguma e a altura era aquela porque era antes de sair de lá. Depois já não podia ir lá. A casa sofreria como sofreu, têm conservado tudo muito bem, contudo sofreu um arranjo completamente diferente. E já não corresponde... A. R. T. — Mas a associação que me ocorreu há bocadinho veio-me a propósito de você falar do que era a ponte, do que era o rio quando fez o DOURO FAINA FLUVIAL, e o que vamos ver agora, em relação á sua casa e a toda essa situação... M. O. — E em relação a mim mesmo. A casa era aquilo. O texto da Agustina é aquele. O que eu disse foi aquilo que lá está. E eu era aquela figura que lá está. Se eu fizer agora outra memória nº 2, que gostava muito de fazer, e depois nº 3 e por aí fora noutra circunstância, já seria outro tempo, outra memória, outra coisa muito diferente. E isso é interessante que se desprenda do tempo. Se estiver agarrado ao tempo tem pouco interesse, que se desprenda do tempo, que vá buscar só os outros valores eventuais, não é?, e não os valores do tempo, não por se ter passado nessa casa, nesse dia e àquela hora. Mas que se desprenda disso. Por exemplo, eu estive agora em Marrocos, por causa do meu próximo filme NÃO e estive a ver o campo de Alcácer-Quibir. Fui lá duas vezes. E impressionou-me imenso aquilo, naquele momento. O campo é o mesmo? Não é, ele já não é o mesmo. Mas o sítio é o mesmo. O sítio é o mesmo. Está lá. O D. Sebastião passou por lá mas não está lá. Mas o sítio é aquele. E esse facto, por si, evoca umas sugestões formidáveis. Eu senti aquela terra toda ensopada de sangue de portugueses, de marroquinos, de ingleses, de italianos, de espanhóis, todos quantos o exército levou lá. Aquilo foi uma mortandade enorme. Enorme. E eram na ordem das dezenas de milhares, dum lado e de outro. De maneira que era muita gente. Salvaram-
se poucos milhares. Foi tudo chacinado. Isto impressiona. Aquilo é uma barreira oposta ao avanço do cristianismo e é uma porta aberta aos muçulmanos. O islamismo expandiu-se imenso, ganhou um prestígio enorme, a religião e as relações com Marrocos. O facto de ter vencido um exército tão poderoso e tão famoso, sobretudo a fama que tinha, deu-lhes a eles um crédito enorme e deu a expansão ao islamismo, porque D. Sebastião, se tivesse saído vitorioso, ia cortar esse desenvolvimento para fazer valer o cristianismo e espalhar a fé cristã pelos «Infiéis» como lhes chamavam nesse tempo. De maneira que essas coisas da memória são muito esquisitas, há o «Nouveau Roman» que se baseia sobretudo na memória. R. G. — Mas o Manoel de Oliveira disse agora uma coisa interessante: chegou a Alcácer-Quibir e viu lá sangue... num sítio onde não há sangue. Portanto os sítios... M. O. — Senti. Eu não disse que vi, disse «senti». Senti aquela terra ensopada. Fez-me muita impressão. E porque, se não é a última, é quase talvez a última batalha das Cruzadas que se dá no mundo. Quer dizer, é uma coisa tardia. Fora já de época, fora de tempo. Mas é a última batalha das Cruzadas que se dá no mundo. Portugal que principiou com as Cruzadas... R. G. — Ia acabando com as Cruzadas... M. O. — De certa maneira acabou. Acabou num gesto de Cruzadas também. De Cruzadas, pelo menos naquela linha, não é? Todo o dinheiro, o dinheiro português passou para a mão dos judeus e dos marroquinos. Porque os portugueses empenharam-se. Primeiro tinham-se empenhado imenso para ir fazer a guerra. Depois os marroquinos pouparam todos os tipos que se salvaram com possibilidade de vida para serem resgatados. Vieram aos milhares. Resgataram milhares e eles pediam quanto queriam. Arruinaram-se, venderam tudo o que tinham, pediram emprestado para recuperar os seus parentes e feridos. E alguns, depois de resgatados, morreram na viagem. Foi um resgate... É terrivelmente trágico. Hoje como ontem. R. G. — Os sítios também não são tão reais assim, não é? M. O. — Não, os sítios são. O sítio é o mesmo. R. G. — E o Manoel de Oliveira vê ou sente lá o sangue de Alcácer-Quibir. Quer dizer, os sítios também têm memória... M. O. — É a memória, é a memória. E o cinema é uma maneira de mobilizar a imaginação do homem. Que o teatro não mobiliza porque se escreve em livro, não é? A escrita é uma mobilização. Mas em concreto, desenhado em acção, é o cinema que o faz. O cinema ou os seus derivados, a televisão e o vídeo e essas coisas todas que para aí há... A. R. T. — Gostaríamos talvez de terminar a entrevista falando doutros realizadores. Aliás, o Manoel de Oliveira é dos poucos cineastas que com facilidade fala dos filmes dos outros... M. O. — Eu não, eu não gosto nada de falar. Não gosto que me perguntem, nem gosto de falar do cinema dos outros. A. R. T. — Não mas nota-se que gosta muito de cinema independentemente do cinema que faz. M. O. — Gosto muito de cinema e gosto muito de ver cinema, filmes portugueses que se tenham feito com interesse, com método. Fico muito satisfeito sempre que isso se faz. A. R. T. — Mas sem lhe pedir teorias, nós gostávamos que o Manoel de Oliveira falasse um bocadinho sobre os cineastas que estima. M. O. — Já toda a gente sabe. São sempre os mesmos, não é? É o António Reis, que é um cineasta muito particular. É o João Botelho, que é um homem que procura uma certa pureza cinematográfica. É o Paulo Rocha, que também é um homem duma finura muito particular. E essencialmente são estes nomes que eu estimo. A. R. T. — Ontem li uma entrevista em que falava um pouco do Norte e na entrevista que fizemos com o Paulo Rocha surgiu também essa questão e surgiram esses cineastas. Paulo Rocha, António Reis, Manoel de Oliveira, três cineastas do Porto, o João Botelho que não é do Porto mas é do Norte e que teve aqui uma parte muito importante da vida dele, ele é de Lamego mas estudou aqui no Porto... Há qualquer coisa do Porto nessa família, nesse parentesco? M. O. — Não sei, não sei se há... A. R. T. — Sem bairrismos, claro... M. O. — É mais fácil ver isso na literatura.
A. R. T. — A Agustina, o Camilo... M. O. — A Agustina, o Camilo, Raul Brandão, não sei bem, e outros mais. Não sei se há. Quais são os escritores do Sul assim mais antigos? R. G. — Sem bairrismos, sem bairrismos. M. O. — Quais são? R. G. — O Eça não é cá do Porto. M. O. — O Eça nasceu no Norte. E o Camilo nasceu em Lisboa. R. G. — Mas acho que o Eça é mais lisboeta e o Camilo mais cá do Norte. Não é só uma questão de nascença. M. O. — Há o Camões que é fundamental. E esse parece que é de Lisboa. R. G. — Mas talvez venha alguém para provar que não. M. O. — Hein? Não! Não, eu acho que isso são coincidências. S. — No cinema talvez não, apesar de tudo, porque, no Porto, depois da Invicta Filmes, não houve cinema. Os cineastas que citou são pessoas que chegaram ao cinema mas vinham de uma cidade onde não se fazia cinema. M. O. — Não, uma cidade onde primeiro se fez cinema. S. — Mas onde se deixou de fazer. M. O. — Onde se deixou de fazer. Agora está tudo centralizado em Lisboa. E... A. R. T. — E é lá que se fazem os filmes. M. O. — É lá que se fazem, mas o lisboeta não sei se não será uma minoria porque em Lisboa, de todo o país vai gente para Lisboa, muita gente que está lá diz «ai eu sou do Norte» ou «sou do Algarve», «eu sou do Alentejo». S. — Apesar de tudo, a esse nível, o Manoel de Oliveira é um caso excepcional porque vive no Porto. O João Botelho mudou de cidade. O Paulo Rocha vive em Lisboa. O António Reis vive em Lisboa. M. O. — Está bem, o Picasso vivia em Paris e não deixou nunca de ser espanhol. S. — Sim, sim, mas o Manoel de Oliveira ficou cá. M. O. — Eu por enquanto... Não sabemos o futuro que nos espera. A. R. T. — Essa imagem de Lisboa como cidade onde afluem pessoas com memórias de outros sítios corresponderia mais à actualidade, ao ápice do momento, e as raízes, as memórias tendem a ser exteriores. Claro que também há uma história de Lisboa que também existia e que também acompanha tudo isso. É talvez mais moldada pelos acidentes de cada actualidade e talvez noutras regiões... O Porto concretamente, ou o Norte... o Paulo Rocha falava até da valorização dos corpos no cinema do Manoel de Oliveira, no do António Reis, de qualquer coisa mais testemunhal e que talvez seja mais possível excêntrico a Lisboa e... talvez Lisboa esteja mais para a televisão, é lá que estão os estúdios da televisão, é de lá que se transmitem para o país as notícias, a actualidade. M. O. — Pois é. Mas eu, por exemplo, faço cinema. E tenho uma longuíssima e fortíssima formação cinematográfica. Vi filmes, vi filmes, vi filmes. Isso não pode ser indiferente na caracterização da minha formação cultural. Isso contribuiu certamente muito fortemente para ela. Lisboa, através dos jornais, através da rádio, através da televisão, através dos acontecimentos políticos que geralmente são situados lá, espalha-se por o país, esse espírito espalha-se. Quer dizer, mesmo quem não está em Lisboa sofre a influência de uma mentalidade lisboeta que é onde está o governo, onde está a Presidência, onde estão os estúdios, onde tudo se forma. E quando alguém quer fazer qualquer coisa, apresentar qualquer coisa em força, é a Lisboa que vai, não é a Braga: vai a Lisboa. Sofre a influência dos meios, dos contactos, das reacções. Portanto Lisboa tem uma influência muito importante sobre o país inteiro. E nós não podemos estar a negar... E o estrangeiro também tem muita influência sobre nós. Talvez sobretudo a França. R. G. — O Manoel de Oliveira é o mestre do cinema português, reconhecido como tal, tanto mais que atravessou várias épocas da história do cinema. O Manoel de Oliveira reconhece influências suas nos filmes dos outros? M. O. — Reconheço isso?
R. G. — O mestre é o modelo, aquele que influencia... Reconhece influências suas nos outros? M. O. — Não, não. Nem tenho sequer a preocupação de ver. Vejo os filmes. R. G. — Mesmo sem preocupação podia ver... M. O. — Não vou lá ver se têm influências, vou ver se estão bem engendrados, se tocam a minha sensibilidade... A. R. T. — Concretamente o António Reis e o Paulo Rocha de que falou trabalharam com o Manoel de Oliveira em alguns filmes. Além da influência... M. O. — A influência é pequena. O Paulo Rocha colaborou comigo no ACTO DA PRIMAVERA porque eu lhe pedi. Ele estava em França e eu pedi-lhe para fazer uma recolha sobre a bomba atómica, as guerras e essa coisa toda, que ele mandou para cá para eu escolher. Colaborou nisso. Além disso, na CAÇA, foi visitar-me várias vezes a Aveiro, onde eu estava a filmar, não era bem Aveiro, era Vagos, onde eu estava a filmar. Conversámos muito. Conversámos sempre muito sobre cinema, trocámos impressões, etc. E é claro essas influências vão-se fixando num campo e noutro. São recíprocas. Essas influências são recíprocas e são saudáveis. Conversar afina a nossa opinião. A gente não sabe nunca quando dá e quando recebe. Umas vezes dá, outras vezes recebe. Não sabe o que fica. Quando muito a gente pode dizer o que é que nos fica. Mas às vezes nem fica. É um momento de reflexão o que resta da tese e antítese é a síntese. S. — Eu tinha mais duas perguntas. Uma diz respeito ao produtor. O Manoel de Oliveira trabalha agora com o Paulo Branco há bastante tempo. Fale-nos um bocado dessas relações. O Paulo Branco deixa o Manoel de Oliveira relativamente à-vontade... M. O. — Completamente livre. S. — Para o seu trabalho... e como é que o Manoel de Oliveira conseguiu isso? É uma coisa raríssima. M. O. — Não, com ele é fácil. Ele faz isso, creio, não só comigo, com todos. Dá plena liberdade. Isso é uma grande coisa para o realizador, realmente estar livre de qualquer pressão. S. — E como é que ele acompanha? Cada vez que fomos visitar o Manoel de Oliveira em filmagens, ele estava sempre lá. M. O. — Nem sempre. Umas vezes está, outras vezes não. Estão os assistentes e os assistentes de produção para saber o que é preciso e o que não é preciso. De vez em quando vai ver em que estado está... como vai o andamento da guerra. S. — Porque é que está a falar de guerra? M. O. — Porque aquilo é uma guerra, é uma batalha como outra qualquer. Tem que se fazer os preparativos e depois tem que se entrar em acção e as coisas ou falham ou não falham. Não podem falhar. É preciso que esteja tudo, é uma luta. É uma luta muito grande para que tudo esteja. São tantos pormenores, tantas coisas, tudo tem que coincidir no mesmo momento para que se possa filmar. É a roupa, a maquilhagem, a cabeleira, é o texto, a disposição do actor, o «décor», os detalhes do «décor», enfim é a situação da máquina, é a iluminação. Mil coisas. Essas coisas têm que estar todas afinadas. É preciso ter portanto sempre muito bons colaboradores. S. — A esse nível, o Manoel de Oliveira muda muitas vezes de colaboradores. Na parte das filmagens, não digo na parte da preparação. M. O. — Das filmagens como? S. — Muda de director da fotografia... M. O. — Não mudo muito, trabalho quase sempre com as mesmas pessoas. Eu gosto pouco de mudar porque a gente habitua-se e conhece-se melhor. A. R. T. — Por exemplo, o Mário Barroso creio que é a primeira vez que é director da fotografia num filme seu. M. O. — Não, não, é a segunda vez. Foi o operador de O MEU CASO e demo-nos muito bem, ele é uma pessoa muito sensível. A. R. T. — Já tinha entrado no FRANCISCA como actor. M. O. — Já tinha entrado no FRANCISCA como actor, já o conhecia muito bem. É uma pessoa extremamente atenciosa e competente e hábil e rápida. S. — E com o Elso Roque? É muito diferente?
M. O. — Sim, cada um tem a sua característica, tem o seu lado típico. S. — Mas como é que os dirige? Parte de sugestões deles? Impõe uma coisa sua? A gente nota, nos outros filmes que eles fazem, grandes diferenças... R. G. — A qualidade até fotográfica... M. O. — Tenho tido sorte. O Acácio teve um prémio de fotografia com O PASSADO E O PRESENTE. O Roque teve um prémio com a FRANCISCA. E o Mário Barroso tem uma citação, que já é muito bom, para o Prémio Europeu. S. — Mas como consegue obter das pessoas essa qualidade? M. O. — É muito simples, eu confio... os meus assistentes são para trabalhar, não são para assistir como faz muita gente. Eu não pego no «découpage», eu não pego sequer no «découpage». O assistente é que vê o «découpage», é que me lê, diz como é a cena. Eu estou sempre livre para tudo. Depois eu vejo a cena, desloco-me dum lado para o outro, e então é que determino: a câmara é aqui. Escolho a partir da colocação da câmara que é a primeira coisa. Depois vem a encenação. E, antes da encenação, e antes de colocar a câmara, o assistente lê-me a cena, eu vejo mais ou menos o movimento da cena, e, em relação a isso, coloco a câmara. Depois, em relação à colocação da câmara, coloco os actores. Em relação à colocação dos actores, eles fazem a iluminação. Eu determino logo a cena, como ela é, para eles verem e fazerem a iluminação. E tudo parte daí. S. — Gostava que o Manoel de Oliveira falasse um pouco da sua vontade de realizar tudo na tomada de vista. Eu lembro-me de presenciar dificuldades de rodagem em LE SOULIER DE SATIN porque todas as «trucagens», «mudanças de luz», etc., tinham de ser feitas logo nas filmagens. M. O. — Pois, não tinha truque de laboratório. É simples, é preparar as coisas para que funcionem. É preciso ter bons colaboradores, a gente diz o que quer e eles realizam. S. — É uma opção. M. O. — É, pois é, opção. Mas a opção foi logo tomada. Em LE SOULIER DE SATIN não há trucagem de laboratório... S. — E porquê? M. O. — É uma espécie de reacção contra o excessivo mecanicismo do cinema, sobretudo do cinema americano, dos Spielbergs e desses tipos com efeitos especiais e com aquelas trucagens todas. Então reduzi tudo à ordem mais simples, mais primária. S. — Mas sente-se em todos os filmes do Manoel de Oliveira uma vontade, não necessariamente de fazer o contrário, mas pelo menos de fazer o contraponto, ir a contra-corrente daquilo que se faz. Nos próprios CANIBAIS em relação ao filme de ópera. R. G. — O maior espanto não é você fazer um filme de ópera, é fazer um filme de ópera assim... justamente no momento em que a ópera está na moda. Muitos filmes de ópera se têm feito mas nenhum assim, neste espírito, irreverentemente, ao contrário de todos os outros. M. O. — Até ao contrário de mim mesmo. É uma necessidade de renovação, para não repetir os mesmos esquemas que tolhem um pouco a imaginação; eu procuro novos esquemas, processos diferentes que me excitam a imaginação e o gosto e a vontade. S. — Mas é uma atitude que poderá ser destrutiva dos padrões comuns. Está a tentar quebrar... M. O. — Sim, talvez. A. R. T. — A. propósito, quer vero texto do Carvalhal que vai muito nesse sentido? «Aparte o ódio ao ramerrão clássico e a louvável ambição de conquistar direitos a original e não sei que mais, sinto o meu fraco por fechar um conto num lance desastrado, assombroso, nunca visto». Isto é do Carvalhal mas vai muito no sentido do que estava a dizer. Podia ser do Manoel de Oliveira. Desastrado no sentido de surpreendente. Isto vai muito na sua sensibilidade em relação às coisas. M. O. — Sim. Está bem. Eu visto esse fato. Entrevista conduzida por A. ROMA TORRES, SAGUENAIL e REGINA GUIMARÃES