Manoel de oliveira entrevista 2

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MANOEL DE OLIVEIRA ENTREVISTA ANTÓNIO ROMA TORRES — A DIVINA COMÉDIA acaba de passar na Europália, não é verdade? MANOEL DE OLIVEIRA — Na estreia do filme em Bruxelas, no teatro de la Monnaie — um teatro de ópera —, houve uma apresentação pelo director da Cinemateca belga das entidades presentes que disse algumas coisas a meu respeito e depois me passou a palavra. Eu agradeci a presença das pessoas que estavam e saudei-as em francês, disse mais qualquer coisa de que já não me lembro bem e anunciei que ia ler em português um texto que seria posteriormente traduzido. «Quando eu era menino, o meu pai levava-me, pela sua mão, a ver a magia das imagens mudas e moventes que enchiam os meus olhos infantis e curiosos, deixando-me extasiado perante aquele milagre. Depois eu fui crescendo e, a meu lado, o cinema crescia a par comigo. Eu tornei-me homem e o cinema fez-se uma arte: a 7ª arte. Mas a magia não parava e, sob esse signo, ambos íamos amadurecendo juntos. Ele, ganhou voz e começou a falar. Eu, já não só o via como o ouvia também. E o que antes não era senão sombra e luz, depressa se vestiu com todas as cores do arco-íris. Eis que, no deslumbramento desta grande festa, ele se transformava numa síntese de todas as artes e é hoje a expressão audiovisual mais bela do mundo. Desde o princípio que me enfeitiçou, já lá vão longos anos, e o feitiço desse cinema feiticeiro continua a enfeitiçar-me, como no primeiro dia». Depois passou o filme. Fizeram a tradução e eu fui para o meu lugar. A sala era muito grande e estava completamente cheia. Uma parte por convites, a outra por bilhetes pagos. Uma sala magnífica... Fiz alusão a isso no meu discurso em francês: disse que era uma honra passar o meu filme numa sala de ópera. Tinha um ecrã grande e uma aparelhagem sonora excelente, de maneira que a qualidade da projecção e da reprodução sonora, das palavras, dos sons e da música foi realmente formidável. Numa sala de ópera, com uma acústica maravilhosa, os resultados são sempre óptimos. Ora, isto é muito importante. Não basta que o cinema seja projectado com uma imagem nítida e bonita e luminosa. É preciso que o som a acompanhe com o mesmo rigor de reprodução porque os sons e as palavras — a palavra ressalta numa paisagem; se o homem aparece, a paisagem passa a ser uma espécie de fundo e o som é também uma espécie de fundo para a palavra — são inseparáveis da imagem. Os momentos silenciosos têm o valor da ausência da palavra. A palavra sobressai sempre sobre um silêncio profundo, um silêncio que é aliás difícil de conseguir na captação de som. O silêncio é a coisa mais difícil. Nos trabalhos de mistura, os técnicos têm sempre vontade de ter um fundo sonoro porque doutro modo notam-se as imperfeições. É como a projecção duma imagem completamente negra: primeiro nunca se obtém o negro absoluto, há sempre a transposição de qualquer luminosidade; depois, há uns salpicos aqui e acolá que estragam o fundo todo. O negro abissal e completo é por assim dizer impossível. Com o som é igual e o silêncio equivale a isso. É muito rico. Eu vi uma vez um filme sueco que tinha essa qualidade. Eles têm uma aparelhagem de gravação e de reprodução sonora magnífica. Era uma sala e falava-se: as palavras ressaltavam num silêncio total. Não sei como conseguiram aquilo. Foi o silêncio mais perfeito que jamais ouvi. No filme do Kurosawa tirado duma peça do Shakespeare, o RAN, há uma sala onde se desenrola uma recepção e surge uma dama chinesa, vestida de seda, que se desloca dum canto ao outro mas em pleno silêncio. Nesse deslocar não se ouve senão o roçar das pernas na seda. É muito bonito esse momento. Se as máquinas que reproduzem o som não forem perfeitas e rigorosas, há uma mutilação muito grande da banda sonora. Como acontece com a imagem quando é cortada e não é mostrada na sua dimensão exacta. É uma coisa de precisão matemática. Não se pode tirar uma linha sem alterar. É aquilo que o realizador escolheu e tem de ser visto assim. O som é igual. Mas muitas vezes tal não acontece e pela província a gente nem sabe o que se passa (se alguns são cuidadosos, outros decerto o não são). O cinema mudo é uma coisa que aconteceu. Hoje já não é como na Cinemateca Royale em Bruxelas que só passa cinema mudo. Filmes que nasceram mudos e mudos continuam. Têm um piano onde é tocado um acompanhamento musical, naturalmente variado, mas consoante se fazia mais ou menos na época. É interessante assistir a uma projecção para ver a diferença. É claro que o cinema teve uma Idade de


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