MANOEL DE OLIVEIRA ENTREVISTA ANTÓNIO ROMA TORRES — A DIVINA COMÉDIA acaba de passar na Europália, não é verdade? MANOEL DE OLIVEIRA — Na estreia do filme em Bruxelas, no teatro de la Monnaie — um teatro de ópera —, houve uma apresentação pelo director da Cinemateca belga das entidades presentes que disse algumas coisas a meu respeito e depois me passou a palavra. Eu agradeci a presença das pessoas que estavam e saudei-as em francês, disse mais qualquer coisa de que já não me lembro bem e anunciei que ia ler em português um texto que seria posteriormente traduzido. «Quando eu era menino, o meu pai levava-me, pela sua mão, a ver a magia das imagens mudas e moventes que enchiam os meus olhos infantis e curiosos, deixando-me extasiado perante aquele milagre. Depois eu fui crescendo e, a meu lado, o cinema crescia a par comigo. Eu tornei-me homem e o cinema fez-se uma arte: a 7ª arte. Mas a magia não parava e, sob esse signo, ambos íamos amadurecendo juntos. Ele, ganhou voz e começou a falar. Eu, já não só o via como o ouvia também. E o que antes não era senão sombra e luz, depressa se vestiu com todas as cores do arco-íris. Eis que, no deslumbramento desta grande festa, ele se transformava numa síntese de todas as artes e é hoje a expressão audiovisual mais bela do mundo. Desde o princípio que me enfeitiçou, já lá vão longos anos, e o feitiço desse cinema feiticeiro continua a enfeitiçar-me, como no primeiro dia». Depois passou o filme. Fizeram a tradução e eu fui para o meu lugar. A sala era muito grande e estava completamente cheia. Uma parte por convites, a outra por bilhetes pagos. Uma sala magnífica... Fiz alusão a isso no meu discurso em francês: disse que era uma honra passar o meu filme numa sala de ópera. Tinha um ecrã grande e uma aparelhagem sonora excelente, de maneira que a qualidade da projecção e da reprodução sonora, das palavras, dos sons e da música foi realmente formidável. Numa sala de ópera, com uma acústica maravilhosa, os resultados são sempre óptimos. Ora, isto é muito importante. Não basta que o cinema seja projectado com uma imagem nítida e bonita e luminosa. É preciso que o som a acompanhe com o mesmo rigor de reprodução porque os sons e as palavras — a palavra ressalta numa paisagem; se o homem aparece, a paisagem passa a ser uma espécie de fundo e o som é também uma espécie de fundo para a palavra — são inseparáveis da imagem. Os momentos silenciosos têm o valor da ausência da palavra. A palavra sobressai sempre sobre um silêncio profundo, um silêncio que é aliás difícil de conseguir na captação de som. O silêncio é a coisa mais difícil. Nos trabalhos de mistura, os técnicos têm sempre vontade de ter um fundo sonoro porque doutro modo notam-se as imperfeições. É como a projecção duma imagem completamente negra: primeiro nunca se obtém o negro absoluto, há sempre a transposição de qualquer luminosidade; depois, há uns salpicos aqui e acolá que estragam o fundo todo. O negro abissal e completo é por assim dizer impossível. Com o som é igual e o silêncio equivale a isso. É muito rico. Eu vi uma vez um filme sueco que tinha essa qualidade. Eles têm uma aparelhagem de gravação e de reprodução sonora magnífica. Era uma sala e falava-se: as palavras ressaltavam num silêncio total. Não sei como conseguiram aquilo. Foi o silêncio mais perfeito que jamais ouvi. No filme do Kurosawa tirado duma peça do Shakespeare, o RAN, há uma sala onde se desenrola uma recepção e surge uma dama chinesa, vestida de seda, que se desloca dum canto ao outro mas em pleno silêncio. Nesse deslocar não se ouve senão o roçar das pernas na seda. É muito bonito esse momento. Se as máquinas que reproduzem o som não forem perfeitas e rigorosas, há uma mutilação muito grande da banda sonora. Como acontece com a imagem quando é cortada e não é mostrada na sua dimensão exacta. É uma coisa de precisão matemática. Não se pode tirar uma linha sem alterar. É aquilo que o realizador escolheu e tem de ser visto assim. O som é igual. Mas muitas vezes tal não acontece e pela província a gente nem sabe o que se passa (se alguns são cuidadosos, outros decerto o não são). O cinema mudo é uma coisa que aconteceu. Hoje já não é como na Cinemateca Royale em Bruxelas que só passa cinema mudo. Filmes que nasceram mudos e mudos continuam. Têm um piano onde é tocado um acompanhamento musical, naturalmente variado, mas consoante se fazia mais ou menos na época. É interessante assistir a uma projecção para ver a diferença. É claro que o cinema teve uma Idade de
Ouro — os anos vinte — em que atingiu um poder de expressão e uma maturidade de jogos de planos — a montagem, o enquadramento e o ângulo visual (de baixo para cima, de cima para baixo) e o realizador era muitas vezes norteado pela preocupação estética e mais nenhuma. A razão estética dominava. Depois do Eisenstein e das suas teorias, nalguns filmes sentia-se uma outra consciência e uma outra razão. Eu experimentei isso no DOURO, FAINA FLUVIAL, procurei os ângulos que davam autoridade ou que exprimiam submissão e por aí fora. Mas o cinema adquiriu esse lado refinado e intelectual mais tarde. Antes era o primado do aspecto estético. Filmava-se muito, por exemplo com a máquina a rasar o chão, para conferir um certo ênfase à imagem. Mas não era para dar importância ou autoridade às figuras, era para dar mais força à composição. Esse cinema ficoume e hoje volta-me. Na DIVINA COMÉDIA retomei um pouco essa Idade do cinema. Inspirei-me nela para fazer o filme. Mas procurei uma certa objectividade. Insisto neste ponto, não sei, talvez me explique mal, mas a verdade é que numa certa referência histórica procurei um caminho no sentido da objectividade. E quando falo em referência histórica não me estou a referir àquilo a que os franceses chamam «film à costumes». História quer dizer que aconteceu, que é verídica. Embora possa ter acontecido ou na História, na realidade digamos, ou na Ficção. É pegar no Amor de perdição ou no Crime e Castigo e tomá-los como coisas que aconteceram. A. R. T. — Na DIVINA COMÉDIA, o Manuel de Oliveira constrói as personagens em função de textos que existiram. M. O. — É a isso que eu chamo histórico. Quando esses textos são lidos hoje, têm uma actualidade muito forte, São textos de antologia, riquíssimos, exemplares, que convinham ao processo de construção do meu filme. Porque há uma dialéctica entre o filósofo e o profeta. E essa dialéctica que abre e fecha o filme é ilustrada com pequenos acontecimentos e com um grande acontecimento que também ilustra a dialéctica de base: aquilo que se passa entre Raskolnikov e Sónia. É um drama de amor, de sofrimento, de ambição de poder e domínio, de conquista, de pecado, enfim, está lá tudo. Essa riqueza é que me interessava. Enquanto as personagens representam ideias e não tanto pessoas ao nível do diálogo, ao nível da imagem afirmam-se como verdadeiras personagens-pessoas e são mais humanizadas. É claro que o espectador que tem de ler legendas perde muito. Se for um literato, é capaz de se interessar mais pela leitura das legendas do que pela visão das imagens e do filme ficar-lhe-á um aspecto mais frio. Mas a imagem junta ao diálogo uma humanidade que os textos nem sempre comportam. Há um jogo de equilíbrio no qual apostei. No «NON» OU A VÃ GLÓRIA DE MANDAR é um jogo de sinais do princípio ao fim. Se concretamente não se entenderem os sinais, o filme não é compreendido e a leitura será mais superficial. Mas quem entender bem os sinais, ultrapassa o que lá está e chega mais longe. Como é que hei-de exemplificar? Estou a pensar em dois exemplos. Quando o príncipe não consegue montar a mula porque o estribo parte, vira-se para o ginete que é muito fogoso. Essa fogosidade do ginete transmite-se-lhe e o príncipe dá uma volta à tenda do Rei onde vemos o emblema da coroa portuguesa, com as quinas e os castelos (que exprime uma ideia de conquista do território português). Mas ele é o príncipe casado com a princesa de Castela e Leão e essa volta traduz a posição de domínio da personagem. É animado de um grande vigor e energia que o príncipe desafia o amigo (o qual aliás não quer acompanhá-lo). Por contradição a esse sentimento de domínio, dá-se o acidente mortal. Mais tarde, quando o rei assiste à cerimónia fúnebre no mosteiro da Batalha, ele olha para as insígnias do príncipe (são as mesmas do rei mas com um traço preto que era uma marca distintiva) e vê o futuro perdido: não medita só sobre a perda do filho mas sobre os muitos outros sonhos que morreram. O império, a expansão, a grandeza, a esperança estão ali mortas e derrotadas. SAGUENAIL — Quer dizer que a encenação de certos acontecimentos é concebida em função da História futura, permitindo assim interpretar os acontecimentos vindouros. M. O. — Claro. Nós estamos a ver a História a partir do ponto de vista de hoje. Toda a nossa visão é a partir de 1974, não é? Porque o filme acaba em 25 de Abril de 74. Portanto trata-se da visão de hoje sobre aquele tempo e não da visão daquele tempo. É a visão de hoje sobre a mentalidade e visão daquele tempo. É uma visão de hoje sobre o que aconteceu ontem. Isso é muito importante porque a visão de um facto altera-se apesar do facto não se alterar. A História não é estática, é dinâmica. Os factos mantêm-se, a perspectiva muda, a visão é outra. Uma visão do séc. XIX ou de
hoje ou do ano 2050 (se a gente lá chegar, a coisa está difícil...) são absolutamente diversas. Naquele tempo não havia a visão do futuro mas hoje temos a visão do passado. A. R. T. — O NON era um projecto antigo... M. O. — Anterior ao AMOR DE PERDIÇÃO... A. R. T. — A DIVINA COMÉDIA, como é que surgiu? M. O. — Para mim A DIVINA COMÉDIA é a continuação do NON. A. R. T. — Mas como é que lhe surgiram as fontes indicadas no genérico final: a Bíblia, o Nietzsche, o Dostoïevski e o José Régio? O filme joga com textos destes autores, digamos assim... M. O. — Joga mas não se limita aos autores. Joga na medida em que esses autores e textos são representativos, o que é diferente... Representativos de quê? Representativos do mundo ocidental do qual fazemos parte. São extremamente representativos do ocidente e como referência são muito actuais. Não é por ser o Crime e Castigo do Dostoïevski, mas por ser a representação dum esquema humano histórico ocidental. A. R. T. — Ainda a propósito dessa sua ideia de objectividade, parece-me que o Manoel de Oliveira procura imagens culturais consagradas. Ou seja que têm uma leitura tipificada para toda a gente. Um pouco como no MEU CASO usa a Guernica e a Gioconda. Lembro-me de na altura ter dito que eram os quadros mais conhecidos de toda a gente. M. O. — Não fui eu que disse, foi um especialista que chegou a essa conclusão. E eu, aproveitando essa conclusão, assinalei-a, o que é diferente. Não a inventei, apenas a assinalei na medida em que a conclusão era representativa. O estudioso fez-me ver o que eu não tinha visto antes. E como achei que correspondia à verdade, aproveitei a informação nesse sentido. Não por ser a Guernica de Picasso ou a Gioconda do Da Vinci mas sim pela sua representatividade do desejo do ser humano ao qual se opõe a acção do mesmo ser humano. A. R. T. — E com estes textos passa-se o mesmo. Pesa sobre eles... M. O. — Uma carga e é essa carga que conta. Não é o Raskolnikov e a Sónia mas o que eles figuram. Ou o Grande Inquisidor. São trechos que escolhi porque me informaram que faziam parte das obras mundialmente reconhecidas e extraordinárias. É como o D. Quixote. Quando falamos do D. Quixote não falamos do Sancho Pança e duma figura esquelética montada num cavalo e armada com uma lança. Não é isso mas o que está por detrás disso e o que isso ainda representa hoje. É essa universalidade intemporal que vale. S. — Quanto mais não seja porque o Crime e Castigo e a Bíblia são os dois textos mais adaptados ao cinema. M. O. — Pois são. Mas repare, eu não escolhi ao acaso, eu informei-me junto de pessoas que sabiam. Por exemplo, o Professor João Marques que conhece a Bíblia profundamente. Eu expliqueilhe a ideia que tinha. À partida, a minha ideia era fazer uma espécie de mesa-redonda sobre os pontos fundamentais e os problemas cruciais da nossa civilização. A nossa civilização é grecoromana, é judaico-cristã. A bandeira de Portugal tem as cinco chagas de Cristo e é a única bandeira que tem as cinco chagas de Cristo embora várias bandeiras tenham a cruz. Retirar isso é retirar a identidade. Não é a questão de ser crente ou não, de aceitar ou não a religião cristã. É uma marca, é uma fundação. Cada um de nós teve os seus pais. Essa é a nossa identidade. Essa raiz existe, quer queiramos quer não. Uma vez, perguntaram-me (foi o Serge Daney numa entrevista que eu dei para a Chimère não sei se já saiu se não) a propósito de Portugal: «O Manoel, se fosse espanhol, pensava da mesma maneira?» Eu fiquei surpreendido com a pergunta e continuei a falar de Portugal e das diferenças que, em meu entender, havia entre espanhóis e portugueses. Como eu não respondi, o Serge Daney insistiu, perguntou pela segunda vez. E eu, pela segunda vez, fiz de conta que não ouvi e continuei a não responder. Mas a pergunta ficou-me na cabeça porque, na verdade, no momento eu não tinha resposta. A pergunta é hábil e extremamente traiçoeira. Eu hoje tenho resposta e talvez escreva uma carta ao Serge Daney a explicar-lhe isto e a dar-lhe a resposta. Eu, se fosse espanhol, não era eu. Simplesmente isto. Essa hipótese não existe. Eu nasci dos meus pais e nasci em Portugal e sou português. É um facto, é uma identidade. Toda a gente quer saber quem eram os nossos antepassados. Isso é fundamental. É tão importante como o sentir o chão debaixo dos pés. Faltando
isso, falta o chão debaixo dos pés e as pessoas perdem-se. Nós somos da terra. Estamos ligados a uma raiz, a uma semente. REGINA GUIMARÃES — Nesse caso A DIVINA COMÉDIA, no fundo, é um alargamento do NON... No NON procurava-se identidade na História de Portugal... M. O. — É um prolongamento. Houve uma série de mal entendidos e muita má compreensão em torno do NON. Uns acharam que o filme era contra Portugal, outros acharam que era nihilista. O NON é um filme de amor. Os meus filmes são todos filmes de amor. Eu não falo senão de amor. É tudo quanto eu digo, mais nada. Porque entendo, ou parece-me, que o mundo foi dividido em masculino e feminino. E essa separação apela ao amor, apela à aproximação das partes. É uma ideia fixa, uma obsessão muito pessoal, não corresponde a qualquer dado científico, não estudei nem quero estudar, é só um sentimento que me vem de dentro, verdade ou não, não interessa. É claro que os meus filmes, no fundo, são cartas de amor. E, a algumas pessoas, podem até parecer ridículas, como diz o Fernando Pessoa. As cartas de amor são ridículas... Para quem não ama, falta acrescentar. A. R. T. — Em relação a essa dualidade masculino-feminino... Não sei se o Manoel de Oliveira se lembra duma metáfora que utilizou numa entrevista anterior: o objecto visto dum lado ou visto do outro lado, o branco, o negro. Neste filme que é como disse uma mesa-redonda, chamou-me a atenção o facto de os diálogos se construírem aos pares: Adão / Eva; Profeta / Filósofo; Sónia / Raskolnikov; Ivan / Aliocha, etc. Os diálogos surgem a dois. Ora, numa cena capital, o diálogo é construído a três, mais precisamente a passagem do Grande Inquisidor em que o Manoel de Oliveira está no lugar do director do asilo. Sabemos que estava a substituir o Ruy Furtado mas isso confere até um aspecto mais capital a essa cena. Nesse triângulo, a personagem do mediador aparece depois enforcada. Essa ideia da objectividade de duas perspectivas surge reforçada porque o ponto de vista global (que no fundo toda a gente busca) é impossível. O homem que defende o ponto de vista pleno acaba por se enforcar. Não sei se vi a coisa como psiquiatra, mas pareceu-me curioso que a pessoa destinada a ocupar esse lugar e desempenhar esse papel acaba por aparecer enforcada. M. O. — Eu entendi. Isso merece uma resposta por partes. Em primeiro lugar, há um crítico do jornal Expresso que afirmou esta coisa indecorosa: que eu me aproveitei da morte do actor para desempenhar o papel. Ora eu representei esse papel com grande sofrimento. Por um lado porque não sou actor. Por outro porque não me aproveitei de nada, fui obrigado pelas circunstâncias. E como eu não queria que figurasse outro nome, de outro actor, no genérico, em substituição daquele actor por quem eu tinha muita estima e amizade (para além duma grande admiração como actor), entendi que devia ser eu a tomar o lugar dele. Era a única saída, ser eu próprio a continuar o papel. Era até uma forma de o homenagear e de honrar, à minha maneira, a memória dele. Eu fiz um esforço, com grande sofrimento, inclusive por ter de representar uma coisa que me era difícil, agora dizer-se que eu tirei partido das circunstâncias para me mostrar é coisa que não se faz. Em segundo lugar, gostava de falar da mesa-redonda. Foi a minha primeira ideia mas não me satisfazia. Era uma mesa-redonda que se desenrolava sobre um fundo de quadros que iam representando as situações bíblicas e outras. Andei torturado com esta ideia, já tinha os outros elementos para a construção do filme, quando me acudiu ao espírito a solução de rodar no palácio onde estive hospedado para realizar o NON. Pensei: é ali que se vai filmar; aquilo é uma casa de alienados onde se pode juntar toda esta dispersão de individualidades e de personagens tão distantes umas das outras no tempo e no espaço. Pensei ainda que aquele lugar era uma representação do mundo, não no aspecto depreciativo, mas no sentido de se situar para além da loucura. Quer dizer, a loucura é a pobre lucidez do homem que não chega a entender-se. Se atentarmos nos conflitos que se dão por esse mundo fora, percebemos que os homens não se entendem. A gente não se entende. Por outro lado, era preciso que esse mundo tivesse uma palavra de ordem porque o nosso mundo a tem. E essa palavra de ordem é o poder que está representado pelos enfermeiros e pelo director. É um poder que se confunde e se perde e, no meio daquele caos, ele acaba por ser a vítima maior. O poder perde-se, perde a esperança de tudo, não sabe como actuar. Ao perder a confiança em tudo, não pode sobreviver. Pareceu-me que não tinha outro caminho senão aquele que se mostra no fim do filme. O
mundo fica como que órfão, tanto quanto eu possa explicar, porque explicar o filme é difícil. O conflito que tento mostrar é esse. A. R. T. — Outra questão que gostaria de abordar consigo é a da direcção de actores, tanto mais que o Manoel de Oliveira tem sido sempre bastante massacrado nesse aspecto da representação. Mas neste caso, apesar dos actores interpretarem personagens cuja loucura é terem um texto por assim dizer decorado como no FAHRENHEIT 451 do Bradbury e do Truffaut, como se cada qual tivesse incorporado o seu texto, parece-me que desta vez o Manoel de Oliveira pretende uma interpretação um pouco diferente dos actores. Até que ponto esta impressão corresponde àquilo que realmente pretendeu? Desta vez, os actores representam duma forma muito mais «natural» e viva. Pode até dizer-se que há boas interpretações e sem o tal registo musical de que falámos a respeito doutros filmes. M. O. — Eu não estou de acordo consigo. Não se trata de boa representação mas doutro estilo de representação. Não há mais ritmo. Por exemplo, no SOULIER DE SATIN o ritmo e a musicalidade da palavra, quanto a mim, foram explorados muito mais do que neste... A. R. T. — Pois, mas no meu entender, até a OS CANIBAIS, há uma musicalidade da palavra que quebra um bocado a entoação e a declamação. No NON, e em A DIVINA COMÉDIA talvez ainda mais, parece-me que os actores têm mais liberdade de serem actores que representam e não estão tão presos a uma forma de dicção que tinha encanto musical mas que fugia um pouco à maneira habitual de representar. Estou a pensar concretamente no Miguel Guilherme, na Maria de Medeiros, no Mário Viegas que todos têm uma forma de interpretar diferente... M. O. — E os outros todos também. Veja o Lázaro... A. R. T. — Portanto, há uma mudança ou pelo contrário continuidade? M. O. — Não há nenhuma mudança. A minha visão cinematográfica também não é uma visão estática. Quer dizer, eu não estou comprometido com nenhum processo. Há um crítico italiano que disse (e eu apreciei muito): «além de tudo é um homem livre...». Eu gostei imenso disto porque é uma interpretação exacta. Eu faço aquilo que realmente sinto que devo fazer naquele momento exacto. Eu não quero criar uma fórmula que me submeta de maneira nenhuma. Sou contra e entendo que o cinema não pode fazê-lo, sou contra filmar pensamentos. É objectivo. Também não pode filmar sonhos. Pode filmar uma pessoa qualquer a estrebuchar e a gente calcular que ela está a sonhar ou ela acordar e dizer: «eu sonhei». Mas o sonho não é filmável. O pensamento não é filmável. A voz off, que aparece, de vez em quando, a exprimir o pensamento nos filmes, não existe, não é possível como dado objectivo. No entanto, eu filmei um sonho. Um sonho cinematográfico. É um sonho de referência. Eu precisava daquela referência. O meu sonho é como se as pessoas tivessem em si aquele impulso para matar o próximo. É como os textos. São referências e valem pelo que contêm. Ou seja, embora eu pense que não se devem filmar sonhos, filmei um sonho porque senti absoluta necessidade de o fazer. Eu nunca sacrifico nenhum impulso de expressão a qualquer fórmula ou ideia preconcebida que eu tenha sobre cinema. Não sobreponho nenhuma regra ou sistema ao acto de expressão. Se eu sentir absoluta necessidade de qualquer coisa, é isso que é preciso fazer. E salto a barreira se ela existir. Portanto o meu cinema, como a História, não é estático, é dinâmico. O que eu fiz no DOURO, FAINA FLUVIAL, que é um jogo de planos e de montagem, não tem nada a ver com o que eu fiz no SOULIER DE SATIN onde levei certas preocupações ao extremo. Não podia ir mais além naquele tipo de rigor. Então recomecei. Como há bocado disse, recuei aos anos vinte. Como no SOULIER DE SATIN e no AMOR DE PERDIÇÃO tinha recuado aos primórdios do cinema, agora retomo essa época de ouro do cinema. Inspiro-me nesse modelo, não o repito, mas com o conhecimento de hoje e com as possibilidades de hoje. Repare que o filme é todo em planos fixos. A câmara está presa e não mexe. Os actores mexem-se diante da câmara, mas a câmara nem sequer os acompanha. Não há panorâmicas. Tenho hoje horror às panorâmicas. É preciso que uma panorâmica seja plenamente justificada. Andar a varrer a sala para fingir cinema, como é costume ver-se, não vale a pena. Subir, descer, direita, esquerda, isso não é coisa nenhuma, é iludir. Não diz nada porque, em si, não é nada.
A. R. T. — Nesse aspecto o trabalho de câmara deste filme é quase o contrário de O PASSADO E O PRESENTE e a comparação vem a propósito porque ambos se passam num palácio e em ambos há personagens que dialogam aos pares. M. O. — É verdade. A. R. T. — Apesar de ambos se passarem num espaço único, no primeiro, o Manoel de Oliveira circula e neste não. M. O. — Eu escrevi O PASSADO E O PRESENTE com uma multiplicidade de planos muito grande. Devo ter filmado O PASSADO E O PRESENTE com três ou quatro máquinas para variar os planos constantemente. E acabei por fazer um exercício de movimento onde o técnico do chariot que puxava o aparelho para trás e para a frente, com movimentos que tinham vinte ou mais posições diferentes, desistiu, foi-se embora. Abandonou a rodagem porque não tinha paciência para aquilo. Cada filme apela para uma solução. No princípio não havia concretamente um propósito de fazer A DIVINA COMÉDIA em planos fixos. Eu até já tinha feito uma panorâmica, no início da rodagem, por necessidade. E acabei por cortá-Ia porque logo a seguir pensei que poderia mudar de opinião. Todavia fazer um filme sem mover a câmara é muito penoso e muito difícil. Passei por momentos de embaraço, mas propus-me a esse rigor que me seduziu e que pretendo, aliás retomar no próximo filme duma forma mais aguda ainda. A. R. T. — Gostaria que nos falasse também do papel da música. Em A DIVINA COMÉDIA há uma personagem que é pianista e a música é tocada dentro do contexto cénico. Como surgiu esta ideia? Porque escolheu a Maria João Pires? Que música é que escolheu para o filme? Como é que todos esses dados foram trabalhados? M. O. — Eu não posso explicar porque essas coisas aparecem e eu acho-as certas. A ideia da música foi a seguinte: eu tinha a intenção de encenar a exemplificação do acto da ressurreição; isso estava baseado no episódio do Lázaro que era uma forma concreta de mostrar a ressurreição (que aliás não chega a sê-lo, mas o texto evoca uma ressurreição); no filme simula-se uma ressurreição, entre um texto que a evoca (as pessoas crêem ou não na palavra) e um acto que seria representação da ressurreição não o sendo — esta diferença é para mim muito importante. Interessava-me mostrar através dum real falso, um irreal verdadeiro. Não sei explicar melhor. O Lázaro tinha duas irmãs: Maria e Marta. A Maria rezava e a Marta trabalhava sem parar. Um dia, Marta queixou-se a Jesus dizendo: «Afinal a Maria está sempre a rezar e a falar contigo e eu faço.» E Jesus respondeu-lhe: «Ela escolheu a melhor parte.» Portanto, a Maria não diz nada, reza, e a Marta trabalha. Ora, o trabalho que eu escolhi para ela foi tocar piano. E esse trabalho é para mim fundamental porque de certa maneira aparece como representação da vida, ou seja, da arte. Escolhi a música por ser uma arte indefinida, abstracta. Pude assim reunir o artista, o profeta e o filósofo. É sobre estas três pedras que eu construo o meu filme. A. R. T. — E a música que a Maria João Pires toca foi escolhida em função disso? M. O. — A música que eu tinha previsto era outra. Pensava utilizar uns trechos do Rachmaninov. Mas a Maria João Pires tinha muito pouco tempo e eu tive de me submeter à dificuldade de os prazos serem muito curtos. Os actores tinham representações, ela tinha concertos. Como não tinha o Rachmaninov estudado, nem tinha tempo para o estudar, ela sugeriu esta substituição. Mas calhou muito bem. Ela sugeriu os trechos, eu encaixei-os nos diferentes momentos e lá acertamos. O trabalho foi levado a cabo em plena concordância. Parece-me que a música está certa: ela ficou satisfeita e eu fiquei satisfeito. De modo que o papel da música não é ser pano de fundo. A música é um dos intérpretes. R. G. — O que o Manoel de Oliveira diz explica uma emoção muito forte que eu tive. O plano com as mãos da Maria João Pires a tocar impressionou-me muito em torno da discussão da essência da arte: sublimar ou rezar. Quando se atenta nas mãos dela, tem-se realmente a sensação de que está a trabalhar. Isso é muito bem conseguido: não é só a beleza do que se está a ouvir mas também o aspecto carnal, físico da execução. A. R. T. — Aliás isso é acompanhado por algumas referências do filósofo ao corpo. Esses textos sobre a arte são seus? M. O. — São, completamente.
A. R. T. — Ambos? Porque há ali dois discursos: um que defende a arte como algo de sensual e outro a arte como próxima da oração... em contraposição. M. O. — Há a arte sensual, a arte como oração e a arte mundana. São pontos de vista diversos sobre a mesma coisa. A. R. T. — Não, é que podiam ser citações. A nossa cultura não é ilimitada. M. O. — Eu não queria destacar ninguém e longe de mim querer destacar-me no meio daqueles autores de renome. Eu de facto queria confundir as coisas o mais possível. Amassar os discursos todos para que o todo funcionasse bem. O elemento musical intervém no filme ao mesmo título que a palavra e a figura. Digamos que também é uma das três peças fundamentais. Repare que a dialéc tica entre o filósofo e o profeta é ilustrada por tudo o resto. A ilustração é uma concretização das ideias lançadas ao ar. A. R. T. — Há ainda o Lázaro que é mudo. M. O. — Sim, porque o Lázaro, na Bíblia, nunca diz nada. Naturalmente ele não seria mudo mas não há referência a nenhuma palavra dele. O Lázaro figura como um morto que ressuscita: não disse nada, não deu um ai antes de morrer, nem disse «obrigado Jesus» quando voltou à vida. Como na Bíblia não consta nada, eu lembrei-me de o fazer mudo, porque ele não tem nada a dizer. Eu não posso pôr na boca de Lázaro palavras que não estejam na Bíblia. Rezar e trabalhar, posso criar aproximações. Mais do que isso não. Eu respeito muito os textos. A. R. T. — Seja como for, estabelece um contraponto muito curioso entre as palavras e a forma de os actores as dizerem, a música que ganha uma presença diferente em relação aos seus outros filmes, a ausência da palavra, o não falar do Lázaro que ressuscita e o director que se cala enforcando-se. O director não tinha palavra que chegasse para a tal ordem, o tal poder e a tal conjugação da diversidade das outras palavras. Isto é uma interpretação minha... M. O. — Mas é isso que é preciso. O filme abre-se. A minha proposta não é fechar, é abrir o filme às interpretações. Eu não quero fechar o filme com ideias minhas, quero que os meus filmes sejam polémicos, contraditórios até. A. R. T. — Nunca me tinha ocorrido que o Lázaro não falasse no filme por não haver palavras dele na Bíblia. Traduzo isso para outros significados. M. O. — Só que isso é um ponto de partida. Não é um ponto de chegada. A. R. T. — Claro, pode trazer até muitos outros significados. Mas como ideia coerente com o propósito de pôr as palavras na boca das pessoas, de facto resulta de forma curiosa. S. — Lázaro, Cristo e as personagens de Dostoïevski são definidos pelos textos a que pertencem. Com o filósofo é um pouco diferente: ele não se confunde com Nietzsche apesar de poder citar Nietzsche. A utilização de Nietzsche não é a mesma do que a de Dostoïevski e da Bíblia, pareceme. A. R. T. — Mas é semelhante à utilização de José Régio. M. O. — Eu inspirei-me em Nietzsche. Algumas ideias mais graves são directamente citadas. O resto é inspirado no Anti-Cristo e nas ideias desenvolvidas pelo autor. Com o Régio é a mesma coisa: não é tudo, é parte. Mas ambos estão ao mesmo nível, não estão desfasados, cada qual tem a sua razão. S. — Mas o actor que faz de Cristo não pode dizer nada que não esteja na Bíblia enquanto que o filósofo não está limitado pelo discurso do Nietzsche. O tratamento não é exactamente o mesmo. M. O. — Nem podia ser porque o Nietzsche desenvolve uma interpretação sobre o cristianismo. Mas o cristianismo é de Cristo, não é de Nietzsche. Eu conservo a ideia nietzscheana do anti-Cristo, como conservo a ideia do profeta conforme aparece descrita em A Salvação do Mundo do José Régio. Mas ambos os autores fazem uma interpretação sobre Cristo. A figura de Cristo, essa, vem da Bíblia, como Raskolnikov e Sónia vêm do Crime e Castigo. Há uma grande diferença entre esses dois tipos de personagens. Cristo é sempre Cristo embora haja um jogo (que aliás muito me agrada) de relação de Cristo com Adão que figura a relação do Homem com Deus. No Antigo Testamento, Deus falava com os homens, no Novo, teve que encarnar para poder falar. No fundo o Cristo figura, no melhor sentido, a desumanização do Homem. Quando sobe a escada, por exemplo. R. G. — Quer dizer que o Cristo-filho sobe a escada e toma o lugar do pai para falar ao Adão.
M. O. — Não é bem isso. A. R. T. — Ele não chega a responder ao Adão. R. G. — Chega sim. Ele queixa-se da Eva e Cristo dá razão a Eva. M. O. — Mas isso são palavras da Bíblia em relação à Marta e à Maria. Eu desloquei-as para aquele momento, para aquele diálogo. Adão comenta que «é o princípio do fim do mundo» e Deus responde-lhe que «poucos serão os bem-aventurados». S. — Em relação aos episódios do Dostoïevski, gostava de levantar uma questão de pormenor mas que talvez tenha interesse. O filme é realmente constituído por planos fixos. Se estive bem atento, há duas excepções: a chegada do Ivan, na mota (que é um travelling e vem «quebrar» a fixidez dos outros planos) e uma ligeira panorâmica no fim quando o Raskolnilov e a Sónia dão aquela volta. M. O. — Foi a primeira cena que eu rodei e ainda não tinha escolhido definitivamente filmar em plano fixo. Senão teria feito talvez doutra maneira. S. — A chegada do Ivan cria uma espécie de corte no filme, como se houvesse uma mudança de direcção; de repente dá-se o desenlace de várias situações — a do Cristo que é levado pelos enfermeiros, a do suicídio do director da clínica e por último a redenção possível do Raskolnikov. Qual era o sentido dessa intervenção exterior? No fundo, há um drama do Dostoïevski e há uma personagem do mesmo autor mas de outro drama que vem desencadear, precipitar situações. M. O. — De facto o Ivan vem de fora. Ele vem procurar o Aliocha para lhe dizer aquilo. É como se ele estivesse fora do esquema e viesse explicar o esquema. Ele vem explicar a atitude do Raskolnikov. Toda a explicação dessa atitude está no Grande Inquisidor. E tinha que ser de fora; de resto, no romance também é assim. O director diz-lhe que a casa está cheia, que as pessoas gostam de estar naquele sítio. Note que toda a ironia que o filme contém é profundamente trágica. E as pessoas não chegam a rir. Eu próprio e os actores ficámos surpreendidos no final do filme. Eles contavam que o efeito irónico se tornasse mais cómico. O filme é realmente dominado pelo fundo trágico. S. — O Manoel de Oliveira falou há pouco de voltar aos anos vinte. Isso sente-se, ao nível formal, com os planos fixos, com a mudança de ponto de vista (da altura da câmara), contudo achei a construção dos enquadramentos muito original porque se percebe uma vontade nítida de os conceber não de forma «equilibrada» mas de valorizar o desequilíbrio. O grande plano é preenchido dum lado da imagem e o lado oposto fica um tanto «vazio». M. O. — Tudo é controlado, como reparou. Eu tenho a minha visão estética. Gosto de «dar ar» por cima da cabeça, acho que os planos ganham outra respiração. Além disso já me chateia ver as cabeças a tocarem a linha superior do ecrã. É uma questão de opção estética, de gosto particular; e é uma questão de resistência, de fazer diferente. Se todos fazem assim, eu quero fazer doutra maneira: assim é que está bem. E agrada-me aquilo. Quando vamos ao pronto-a-vestir, um escolhe um casaco ou outro escolhe outro. Não há verdadeiramente uma razão consciente para essa escolha, para esse gosto. Eu opto em função do que me parece bem. A. R. T. — Eu vejo nos seus filmes um trabalho interessante em relação ao espaço off. Na BENILDE era muito nítido: o plano era sobre as personagens que ouviam e não sobre as personagens que falavam. Aqui também acontece com alguma frequência o enquadramento não se modificar e haver uma personagem que entra em campo e vem tomar uma posição perante a câmara. Por exemplo, o Mário Viegas está junto do piano e vem o Luís Miguel Cintra colocar-se ao lado dele. Há qualquer coisa no filme que transporta para o off do enquadramento. É o mesmo problema que já problematizou noutros filmes mas resolvido duma maneira nova. É curioso cada filme ter a sua coerência desenvolvida, como o Manoel de Oliveira disse, até ao limite. M. O. — Há dois momentos em que estou muito torturado. O primeiro é a escolha dos actores que é para mim uma tortura enorme. Ando torturado até acertar. Porque a personagem não existe. A personagem vai ser o actor. A. R. T. — Nunca fez como o Woody Allen no SETEMBRO: voltar a filmar tudo com outros actores? Nunca teve vontade de fazer isso?
M. O. — Nós não podemos ter desses caprichos. Nós filmamos sabe Deus como. Só Deus sabe como. O cinema português é um milagre. As pessoas não compreendem isso; os críticos estão perfeitamente alheios a isso. A. R. T. — Alguns... M. O. — Alguns até se comprazem em arrasar o cinema português duma vez para sempre. Não se lembram de que se estão a arrasar a eles próprios. Mas as nossas condições são limitadíssimas, paupérrimas. E o que se faz é rico pela liberdade e pela autenticidade; é o caso do António Reis, do Paulo Rocha, do João Botelho, do César Monteiro e de outros... São cineastas marcantes. Este desapego a formas e o facto de não ter pressões políticas nem de ordem social que perturbam e infestam a cultura, é raro. Porque o cinema é uma arte, não é uma mercadoria. E querer fazer do cinema uma mercadoria é poluir a cultura. É horrível. Não tem senso. Não se pode ir vender fitas para o mercado como quem vende roupa. Não é a mesma coisa. A. R. T. — O Manoel de Oliveira falava há pouco dos seus dois momentos de tortura. M. O. — Ah, pois. O primeiro é a escolha dos actores. Uma vez escolhidos os actores, é um alívio. O segundo momento é quando começo a filmar. Eu tenho um découpage e tenho uma ideia do que é o filme. Antes de rodar, sei o que é o filme duma forma abstracta, difusa. O découpage já é um bom ponto de partida. Mas o que vai ser exactamente o estilo? Como vão ser os enquadramentos? Como se vai desenvolver a ideia? Eu não sei verdadeiramente nunca antes de principiar o filme. São os primeiros passos, os primeiros planos que me dão o indicativo. Quando apanho o indicativo, entro num certo esquema. A partir do momento em que sinto o esquema, sei o que posso e o que não posso fazer, o que está bem e o que está mal. Daí em diante, fico preso a um esquema que tenho de seguir até ao fim porque já estou orientado. Antes de chegar aí, vivo os momentos mais difíceis. Quanto aos planos fixos: aquela sequência em que o Raskolnikov chega e começa a conversar, pela primeira vez, com a Sónia dura aproximadamente 40 minutos e é realmente dura. Se os sentasse lado a lado e os filmasse vinte minutos, os dois, num plano só, seria muito bonito. Mas seria outra coisa. Não dava para este filme que já estava encarreirado. O esquema obrigava-me à seguinte contradição: fazer o maior número possível de planos no menor número de planos. O que implica um rigor e uma selecção muito grande. Tenho que multiplicar os planos, mais não posso fazer, nem um a mais, nem um a menos. Isto é difícil de conseguir. Optei por dividir a cena em vários blocos: um bloco num canto, outro noutro, outro naqueloutro, etc. Se repararem bem há mudanças: é como se se mudasse de ambiente, de sala, de situação. Esses blocos correspondem de facto a tempos dramáticos diferentes. S. — O desequilíbrio traduz-se no filme, contrariamente ao que é habitual no cinema, pelo facto de não haver espaço na direcção em que os personagens olham mas do outro lado e adquire um sentido pertinente em relação àquilo que eles tentam exprimir: a dificuldade de se encontrarem. M. O. — Isso por um lado. Mas por outro lado eles estão a falar para fora. Não para dentro do quadro mas justamente no limite do enquadramento, como quando se chega a uma porta e se chama para fora: «ó fulano!» S. — Pessoalmente, achei que neste filme o Manoel de Oliveira, mais do que nunca, mostra uma grande liberdade em relação a um sistema de convenções e inclusivamente em relação a expectativas que se poderiam projectar nele. Ao mesmo tempo, o humor tem uma presença, não direi mais forte, mas mais descarada. Há, em certos momentos, contrapontos que deviam ser cómicos se não fosse o contexto. Gostava que nos falasse do papel do humor que me parece cada vez mais relevante nos seus filmes. M. O. — É um humor digamos agressivo. Fere as pessoas antes de provocar o riso. Quando o riso desponta, já vem tarde. É a impressão que eu tenho quando observo o público. Às vezes, levanta-se assim um rumor, mas é tímido e tardio. Mas eu gosto que seja assim. É um valor para a intensidade dramática. Porque o assunto de que se fala é extremamente sério. Fala-se da condição humana: a divina comédia é a comédia humana. A. R. T. — No momento em que o Manoel de Oliveira substitui o Ruy Furtado, sente-se que faz um esforço por não parecer o Manoel de Oliveira. O director surge com um ar trágico (aliás suicida-se depois). Mas também brincalhão.
M. O. — O que eu tento fazer é muito influenciado pelo Ruy Furtado e pelo que eu via nele, na figura dele. Ele tinha uma cara um pouco arredondada. O meu rosto é mais esguio, mais comprido. Fiz uma contracção dos músculos que era uma maneira de achatar a minha cara. Mas para mim não era demasiado importante. Eu entendi que não era grave que se entendesse que não era a mesma pessoa. O que era grave seria não se entender que era a mesma personagem. Penso que não restam dúvidas ao espectador que se trata da mesma personagem. Alguns nem deram conta que era outra pessoa. Aliás ele foi substituído por mim e já o tinha sido por um terceiro anteriormente, na cena do jantar. Nessa cena ele não falava... mas a construção da sequência estava limitada. Não podia fazer um grande plano dele, por exemplo. Quando me filmei a mim, pedi ao director da fotografia que baixasse a luz... S. — Está em contra-luz. M. O. — Só que ele não baixou tanto como eu queria. Os directores da fotografia gostam sempre que as coisas se vejam. A. R. T. — Quando o Buñuel fez um filme com duas actrizes a desempenharem o mesmo papel, estava-se nas tintas para a diferença e joga mesmo com ela. O Manoel de Oliveira não. M. O. — Isso é Buñuel. Este caso é diferente. A. R. T. — É só por dizer que há dois actores com o mesmo papel, o que é uma situação rara no cinema. M. O. — Neste filme há três. A. R. T. — Sim, mas o outro é um duplo numa cena que não é tão capital. O Manoel de Oliveira não ilude completamente a diferença apesar de tudo. Haveria talvez outras maneiras de resolver o problema... M. O. — Podia ter feito tudo em off, mas achei que não ficava bem porque a situação é virtual. O que era menos importante, ficou em off. O resto não. Tive mesmo de dar respostas e exprimir espanto perante certas frases. Foi o que se conseguiu. Acrescento que as cartas de amor, que são esta sucessão de filmes, não acabam ainda aqui. O DIA DO DESESPERO será um prolongamento do que vem de trás, dessas cartas. A. R. T. — Quer dizer alguma coisa sobre isso. Quando a entrevista for publicada, o filme estará rodado... A expectativa no entanto era que o Manoel de Oliveira rodasse agora a Madame Bovary. M. O. — A Madame Bovary é conhecida. Mas o Vale Abraão, que é o romance da Agustina, contém outros dados, por exemplo. Entretanto, como se comemora o centenário da morte de Camilo e como vi coisas na televisão que me chocaram profundamente, decidi fazer este filme. Era uma coisa que eu já tinha mais ou menos na cabeça. Entretanto a Agustina escrevia e isso levava tempo. Eu pensei que tinha tempo para rodar O DIA DO DESESPERO antes. Pedi ao Alexandre Cabral que me assegurasse o controlo histórico, que averiguasse datas, texto, etc., e fui buscar outras fontes. Tudo se compôs rapidamente. A. R. T. — A questão do suicídio e de estar à beira dum suicídio... M. O. — Não sei se vão cair em cima de mim, mas não tenho culpa que o Camilo tivesse aquela maneira de ser um tanto funesta. Era um homem inquieto, de uma certa resignação apesar dos humores variáveis. Sobretudo era um homem funesto que declarou abertamente que amava a morte. Isso é a última carta de amor. É isso que é bonito. Pode ser estranho. Eu não sou muito culto e muito menos erudito, mas das histórias de escritores que conheço não vejo nada parecido com este fim do Camilo. O desespero, o sofrimento que ele vive roçam o macabro. A grande paixão dele, a sua grande amante era a morte. A. R. T. — Chama-se O DIA DO DESESPERO no singular. M. O. — É «o dia» mas trata-se duma soma dos últimos dias. Concentro tudo no dia final, mas é o desespero que se vai acumulando até ao momento exacto. Porque é preciso notar que a ideia da morte pairava no Camilo desde muito novo. Ele próprio diz que sabia que ia ter aquele fim e que nunca pensou que a cegueira fosse o impulsor. Portanto o motivo profundo não foi a cegueira. A. R. T. — Haverá talvez uma certa ligação com a cena da agonia do NON. A morte filmada com aquele olho a observar. No texto que na altura escrevi, valorizei muito esse aspecto. Até chamei ao artigo «verificado o óbito». Porque dá a impressão que, em certa medida, é uma coisa inverificável.
Há uma folha clínica, com a data 25 de Abril e a frase «verificado o óbito», um comentário muito médico, mas dá a sensação de que, cinematograficamente, é inverificável. Por mais que se veja, não existe. Não é filmável. M. O. — Aquele olho seduziu-me desde o princípio. E não foi muito correcto porque puseram um adesivo que eu não queria porque ficava menos branco e tirava um bocado de força. As coisas, às vezes, por precipitação e falta de tempo, escapam-me. Mas escolhi aquele olho e escolhi o actor. Aquele olho rimava bem com aquele actor. A. R. T. — E vai filmar o suicídio do Camilo da mesma maneira? M. O. — Eu sou incapaz de filmar da mesma maneira. A. R. T. — Foi força de expressão, queria dizer equivalente. M. O. — Digo-lhe mais, se ensaiar uma sequência e não a puder filmar no próprio dia, no dia seguinte já nunca sai exactamente a mesma coisa. Mas em relação ao suicídio do Camilo, não. Não é pela forma que haverá ligação. É por linhas mais subterrâneas, talvez. A. R. T. — Reparei que A DIVINA COMÉDIA é dedicada à memória dum neto. Não sei se podemos perguntar que ligação é que isso tem com o filme ou com a altura em que o fez. M. O. — É um neto que tinha falecido de forma inesperada cujo desaparecimento nos chocou profundamente. A DIVINA COMÉDIA coloca o problema da ressurreição e de uma possibilidade de reencontro. É nessa medida que eu dedico o filme à memória do meu neto. Claro que houve um pateta qualquer dum crítico que disse que eu andava a dar conselhos aos netos. Ora contra isto, não há mais nada a fazer. Eu a dar conselhos? Conselhos dão-se só a quem no-los pede. E mesmo assim, às vezes, hesita-se. Eu nunca dei conselhos a ninguém, nem nunca ensinei cinema a ninguém. Nunca fui professor de cinema; tão pouco me convidaram, mas também não aceitava. Para falar verdade até convidaram. Convidaram-me para ser professor na Universidade do Porto e rejeitei. Eu não tenho que ensinar. Sou um aprendiz do cinema. Estou à procura, como é que eu hei-de ensinar? Ensinar o que eu já fiz? S. — Fazendo os filmes que faz, é a melhor forma de ensinar. Fala o discente. M. O. — Muito obrigado.